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Técnica

A revolução está acontecendo agora – e ninguém parece empolgado com ela

Não é muito fácil notar, mas as palavras “ser” e “essência” têm a mesma origem etimológica, o verbo latino “sum”. Ser vem de “esse”, que significa, literalmente, “ser”, “existir”. Essência vem de “essentia”, uma derivação de “esse” que designa algo inerente à existência de algo, como o calor é a essência do fogo.

Essa relação me veio à mente durante o FlatOut Podcast #70, no qual eu e o Juliano falamos sobre o novo carro de Gordon Murray, o GMA T.33. Na ocasião, ficamos embasbacados com a capacidade de Murray em reduzir um esportivo à sua essência de forma tão brilhante e elegante. E o que é reduzir um esportivo à sua essência? Concentrar-se no mínimo necessário para que ele seja um esportivo, para que ele faça o que se espera de um esportivo. Quando falamos em “reduzir um esportivo à sua essência”, é isso o que estamos dizendo: que o T.33 tem apenas o que é inerente à sua existência. É uma questão muito mais filosófica do que técnica. Qual o objetivo? Por que esse carro existe? O que este parafuso deve segurar? Quando um volante deixa de ser apenas um volante para se tornar algo além de um volante?

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Em um mundo de excessos, de esportivos fingindo que pesar 1.800 kg é vantajoso para o desempenho em pista e que ter tração integral se tornou fundamental para conseguir controlar potências de quatro dígitos, as obras de Gordon Murray provocam essa reflexão sobre a essência. Mas… já que estamos falando de filosofia, que tal trazer um conceito inverso? Algo que representa o completo oposto de Gordon Murray, mas não no sentido dos excessos, ou do distanciamento da essência de um esportivo, e sim na reinvenção da engenharia.

Se Gordon Murray busca a essência dos esportivos pela simplificação, eu diria que Christian von Koenigsegg é o seu antagonista, alguém que busca a essência dos automóveis através de soluções inovadoras e complexas. Não uma complexidade gratuita, como uma máquina de Rube Goldberg (aquelas máquinas que usam reações em cadeia mirabolantes para fazer coisas simples), mas soluções complexas para realizar coisas complexas e, em muitos casos, jamais imaginadas pelo público.

Como Gordon Murray, Christian von Koenisegg também criou o carro mais rápido do planeta em seu tempo, usando soluções tão inovadoras quanto Murray em sua obra-prima, o McLaren F1. Foi uma destas inovações, por exemplo, que trouxe ao mundo um motor 2.0 de três cilindros e 600 cv.

Como a Koenigsegg tirou 600 cv de um 2.0 de três cilindros?

Lembra dele? É o Tiny Friendly Giant (algo como “o pequeno gigante amigo”), o motor que equipa o Gemera. A base para esse desempenho quase insano é a tecnologia Freevalve, um sistema de comando de válvulas que dispensa as árvores de cames que conhecemos como “comando de válvulas” e adota atuadores eletro-pneumáticos para ter controle absoluto e variação praticamente infinita da atuação das válvulas. É uma tecnologia que vem sendo desenvolvida há mais de 20 anos pela Koenigsegg e que só agora está sendo colocada em produção — e, talvez por isso, seja a mais promissora de todas elas.

A base do funcionamento do motor sem comando de válvulas é a boa e velha eletrônica. Sim, se você usa a ordenação lógica de elétrons para controlar a alimentação do motor, a ignição do combustível, o acelerador, suspensão e até sistemas importantes de segurança — tudo de forma integrada e harmonizada — por que não incluir na receita o trem de válvulas?

 

A ideia é realmente simples (a execução que não é): em vez de usar uma árvore de cames sincronizada mecanicamente com o virabrequim, você troca essas peças pesadas e antiquadas por atuadores eletropneumáticos — esse negócio na imagem abaixo.

Koenigsegg-Free-Valve-Concept

A sincronização é feita pelo mesmo sensor que mede a velocidade e posição do virabrequim, bastando apenas programar a ECU para enviar aos atuadores o sinal elétrico de abertura das válvulas. É basicamente o mesmo princípio de acionamento das válvulas injetoras, mas com abertura de válvulas do motor em vez de injeção de combustível. O retorno das válvulas continua sendo feito por molas.

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Da mesma forma que as válvulas injetoras podem pulsar simultaneamente ou sequencialmente, você poderia fazer o mesmo com as válvulas do motor acionadas por atuadores eletropneumáticos.

Koenigsegg-Freevalve-Engine-2-626x382

Além disso, cada atuador é independente dos outros, e pode variar tempo e duração de abertura e o levante da válvula usando apenas programação eletrônica — o limite é o comprimento da haste da válvula. Isso significa você pode ter quantos perfis de abertura de válvulas precisar. Em motores de quatro válvulas por cilindro, por exemplo, é possível manter duas fechadas e trabalhar somente com as outras duas.

E tem mais: como os atuadores permitem qualquer abertura, qualquer levante e qualquer duração, Christian Von Koenigsegg afirma que eles podem eliminar até mesmo o corpo de borboleta, acelerando o motor diretamente nas válvulas — o que traria respostas mais rápidas em relação à admissão com borboleta. Por último, você poderia ter um sistema mais eficiente de desativação de cilindros.

Outra vantagem que favoreceu a produção de tanta potência em um 2.0 de três cilindros é o fato de não haver sincronização física entre o virabrequim e os comandos de válvulas — ou seja: há menos carga sobre o virabrequim, então em vez de gastar energia com uma polia de sincronização, ele apenas envia potência para a transmissão.

Este, aliás, foi outro campo em que Christian von Koenigsegg inovou — e com duas propostas. Uma delas é não ter câmbio algum e, no lugar dele, usar motores elétricos e um acoplamento hidráulico variável.

O negócio se chama…

Koenigsegg Direct Drive (ou KDD)

Ele funciona em conjunto com o V8 do Regera. O arranjo usa um motor elétrico conectado ao virabrequim do V8, Além de propulsor, esse motor elétrico funciona como motor de partida e recuperador de energia.

Ele fica na parte da frente do motor. Na parte de trás o motor V8 é conectado ao eixo traseiro por um diferencial com acoplamento hidráulico que tem, em cada lado, um motor elétrico conectado à sua respectiva roda por uma árvore de transmissão. O desenho abaixo ajuda a compreender melhor esse layout:

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Na arrancada, o acoplamento hidráulico/diferencial está totalmente aberto — as rodas são movidas somente pelos motores elétricos, e o motor elétrico de partida continua operando movendo o virabrequim para compensar a parte baixa da curva de torque do motor V8 e dar ao carro força total mesmo sem uma primeira marcha. Aos 50 km/h esse acoplamento hidráulico (que funciona como uma embreagem) começa a se fechar progressivamente, passando a usar cada vez mais a força do V8 para mover as rodas traseiras.

BATTERY

Em alto giro, o motor elétrico de partida, agora movido pela rotação do virabrequim, passa a produzir energia para recarregar as baterias, enquanto os motores elétricos do eixo traseiro funcionam como um diferencial eletrônico, vetorizando o torque.

Embora seja mais complicado que um câmbio comum, Christian von Koenigsegg afirma que a perda mecânica desse sistema é 50% menor graças à sua simplicidade.

Agora… se o KDD é simples, o outro câmbio da Koenigsegg é seu exato oposto, como veremos a seguir.

 

Light Speed Transmission

A Light Speed Transmission — ou “transmissão na velocidade da luz” — é o câmbio que Christian von Koenigsegg desenvolveu para equipar o carro que leva o nome de seu próprio pai, Jesko. Trata-se de um câmbio de nove marchas e oito embreagens, que dispensa os anéis sincronizadores e engrena as marchas de forma mais rápida — daí o nome “light speed”.

E mais: segundo a fabricante, é possível “saltar” as marchas — fazendo uma redução de sétima para quarta sem passar pela sexta e pela quinta, por exemplo — sem precisar aguardar a sincronização.

 

Mas como isso funciona? Como é esse sistema de “múltiplas embreagens”? Para entender como ele funciona, precisamos lembrar como funciona o câmbio de embreagem dupla convencional. Pense nele como um câmbio formado por duas metades de uma transmissão, uma delas tem as marchas 1, 3 e 5 em um eixo conectado a uma embreagem, a outra tem as marchas 2, 4 e 6 conectadas a outra embreagem. Estas duas embreagens são concêntricas — uma delas fica dentro da outra, como a roda e o pneu do carro.

Quando você seleciona a primeira marcha, a embreagem dela é quem se acopla ao motor, enquanto a outra metade  pré-seleciona a marcha seguinte, nesse caso a segunda. Na hora de subir a marcha, em vez de selecionar a engrenagem seguinte, o câmbio apenas troca as embreagens: libera a embreagem ímpar enquanto acopla a embreagem par — um processo mais rápido que a seleção da engrenagem seguinte. Enquanto isso, a meia-transmissão ímpar já pré-selecionou a terceira marcha e está pronta para a troca de embreagens acopladas.

Embora isso permita trocas ultra-rápidas, o sistema só permite o uso sequencial das marchas — se você está na quinta, só é possível subir para a sexta. Para reduzir, o câmbio precisa de mais tempo para trocar a engrenagem pré-selecionada pela engrenagem anterior e não é possível “pular” marchas — reduzir de quinta para terceira, por exemplo. Foi esta limitação que a Koenigsegg tentou contornar em sua Light Speed Transmission (LST).

Normalmente os câmbios usam um eixo de entrada e um eixo de saída, e as marchas são formadas por pares que conectam estes dois eixos com diferentes relações entre si. Quando os pares se conectam, você tem uma relação entre ambos que é o que chamamos de marcha.

No caso do Jesko, a Koenigsegg colocou um eixo intermediário que multiplica as relações. Ele é o responsável pela grande sacada da fabricante: em vez de ficar limitado ao seu par, cada engrenagem do eixo de entrada pode formar uma relação tripla com uma das engrenagens do eixo de saída. Como são três relações diferentes em três eixos, o resultado são nove marchas.

Cada engrenagem do eixo intermediário e do eixo de saída tem sua própria embreagem, controlada por um sistema chamado “Ultimate Power On Demand” (UPOD), que pode ser traduzido como “Potência Total Sob Demanda”. O sistema é, resumidamente um mapa que aciona as embreagens com base no movimento, carga e demanda do pedal acelerador (o quão rápido você pressiona ou solta o pedal) e nas rotações do motor para mantê-lo sempre em sua faixa de rotações ideal. É como uma transmissão continuamente variável, porém com embreagens e marchas.

Como o câmbio pode acoplar qualquer uma das velocidades de forma independente, ele pode saltar da nona para a primeira marcha se assim for preciso. Apesar de parecer uma complexidade desnecessária, os atuadores múltiplos são mais leves que as três engrenagens “economizadas”, de forma que o câmbio completo — com a sétima embreagem da marcha à ré e a oitava do diferencial — pesa apenas 90 kg incluindo seus fluidos,  motor de partida e bombas de óleo. Como comparação, um câmbio manual de seis marchas pesa entre 40 e 80 kg sem o volante e o conjunto de embreagem, e um câmbio automatizado de embreagem dupla pesa cerca de 120 kg, caso do PDK de sete marchas da Porsche.

 

A revolução debaixo do nosso nariz

Quem acompanha o FlatOut há algum tempo certamente já percebeu que eu, Leo, tenho muitas críticas à apatia com a qual a sociedade moderna tende a receber verdadeiros milagres na forma de inovações tecnológicas. Não sei se tudo ficou muito fácil ou normal, mas é um pouco triste que as pessoas — em especial os jovens — deixem de ficar maravilhados com tudo de incrível que está acontecendo debaixo do seu próprio nariz. Estamos vivendo um dos melhores momentos da história da humanidade, mas parece que ninguém percebeu isso, por alguma razão.

Gordon Murray e Christian von Koenigsegg estão aí, ativos, revolucionando os esportivos de formas antagônicas, mas igualmente admiráveis. Fazendo coisas que pareciam impossíveis até o momento em que cada um deles veio a público mostrar como são feitas. Tem a ver com o fato de só percebemos a relevância da revolução depois de nos afastarmos o suficiente para ver de longe, sem envolvimento. Mas releia tudo isso que Cristian von Koenigsegg realizou nos últimos 20 anos e reflita. Depois responda para si mesmo: quando foi a última vez que tivemos dois gênios da engenharia fazendo tudo isso ao mesmo tempo? Só depois disso você pode ousar reclamar do mundo moderno. Se conseguir…

 


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