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Car Culture Trânsito & Infraestrutura

Como seriam os humanos se evoluíssemos para resistir a acidentes de trânsito?

O humano moderno, também conhecido como Homo sapiens sapiens, é resultado de uma evolução de mais de três milhões de anos. Ao longo desse período todo (que foi quase “semana passada” na história do planeta) a adaptação dos nossos ancestrais ao meio em que viviam definiu como o corpo humano é atualmente — nossos braços ficaram mais curtos, nossa postura ficou ereta, nosso crânio aumentou de tamanho, nossos dentes ficaram menores, nosso organismo ficou mais complexo e resistente.

Nos últimos 200 anos a humanidade inseriu os veículos motorizados em seu meio — primeiro os trens, depois os carros e motos e finalmente os aviões, mas não chegamos nem perto de começar alguma evolução desencadeada pela interferência dessas máquinas. Se você sair correndo à velocidade máxima que conseguir e bater contra uma parede, dificilmente quebrará algum osso ou terá alguma lesão mais grave que um hematoma ou escoriações leves. Com as velocidades mais elevadas de um carro, moto, trem ou qualquer veículo motorizado a história é diferente.

Um pouco de treinamento e preparo físico até ajuda a resistir a variações súbitas e radicais de aceleração (e desaceleração) — pilotos de caça resistem a 9g —, mas ainda haverá um limite que pode ser letal se ultrapassado. E nem é preciso uma fratura ou perfurações: uma desaceleração súbita, por exemplo, pode fazer seus órgãos internos se chocar de forma violenta contra as paredes internas do seu corpo. Foi o que aconteceu com Dan Wheldon e Jules Bianchi, como explicamos neste post.

9g de aceleração: o futuro piloto de caça perde seus sentidos. Um acidente de carro pode passar facilmente dos 30g, e seu corpo  50g podem te matar

Agora imagine se daqui a milhares de anos o corpo humano acabasse evoluindo para resistir aos acidentes de trânsito. Se nosso crânio se tornasse mais robusto para proteger o cérebro. Se nosso pescoço se tornasse mais forte para não “chicotear” em uma colisão ou se nossa caixa torácica ficasse mais robusta para proteger costelas e órgãos vitais. A Transports Accident Commission (TAC – comissão de acidentes de transportes) da Austrália imaginou e foi além: fez um boneco em tamanho real chamado Graham, que representa o corpo humano evoluído para sobreviver a acidentes. O resultado é obscenamente grotesco — provavelmente proposital para chocar e conscientizar, como eles costumam fazer em suas campanhas.

Para chegar ao modelo de corpo resistente a acidentes, a TAC chamou dois especialistas e uma artista plástica: o Christian Kenfield, cirurgião traumatologista do Royal Melbourne Hospital, dr. David Logan, perito do Centro de Pesquisas de Acidentes da Monash University e a escultora Patricia Piccinini.

Graham é o que chamaríamos de monstro. Seu corpo é disforme, segundo os padrões humanos atuais, porque “evoluiu” para sobreviver às principais lesões fatais causadas pelos acidentes.

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A cabeça aumentada não significa que ele tem um cérebro mais desenvolvido, mas sim que seu crânio é maior, com paredes duplas, mais fluido e ligações internas. A parede externa deve se quebrar para absorver a força do impacto, evitando lesões cerebrais pelo movimento súbito da massa encefálica.

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O rosto largo, meio gorducho, com nariz e orelhas “afundados” também são uma forma de preservação de órgãos sensoriais e partes sensíveis da cabeça. As bochechas têm uma camada extra de tecido adiposo para absorver impactos e o nariz não é mais protuberante para preservar os seios paranasais, que têm função importante na ressonância da voz e no aquecimento do ar inalado.

Outra característica bizarra é que Graham não tem pescoço. Em vez disso sua cabeça é “travada” por costelas extra acima do omoplata (o osso do ombro) para impedir o movimento de chicote, causa de lesões cervicais temporárias ou permanentes como a paraplegia ou quadriplegia.

O show de horrores continua na caixa torácica, que mais parece um cachorro shar pei. Apesar das costelas e do esterno serem os ossos mais resistentes do nosso corpo (tão resistentes que o cinto de segurança depende deles para funcionar), eles ainda podem ser fraturados em um acidente. Por isso Graham tem pequenas bolsas de ar entre as costelas. Elas atuam exatamente como um airbag de carro, absorvendo o impacto e reduzindo o movimento do tórax e dos próprios ossos.

Mais abaixo, Graham desenvolveu pernas diferentes das nossas: seus joelhos têm tendões extras e podem ser dobrados em qualquer direção. Isso é resultado de séculos de atropelamentos, que geralmente atingem os membros inferiores dos pedestres, quebrando seus joelhos, tíbia e perônio e causando lesões temporárias, porém com sequelas permanentes, ou amputações. A parte inferior da perna de Graham também é diferente da nossa — e mais parecida com a de um gato: ele desenvolveu uma articulação na tíbia que impedem fraturas além de possibilitar melhor impulsão para escapar de um atropelamento (exatamente como um gato assustado). Além disso, na condição de passageiro ou motorista, a articulação absorve impactos provenientes da deformação do assoalho ou da parede anterior da cabine — por esse motivo também seus pés são menores.

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Se você acompanhou as imagens e a descrição até aqui numa boa, deve ter percebido que não precisaremos evoluir até esse ponto (até porque dificilmente isso aconteceria). Repare que esse mesmo exercício de imaginação mórbida-grotesca dos especialistas australianos foi praticado pelas empresas e engenheiros e médicos que desenvolvem equipamentos de segurança. Quer ver?

A parede dupla do crânio do Graham tem a mesmíssima finalidade do soft-wall dos autódromos e dos capacetes: absorver o máximo possível de impacto, mesmo que seja necessário se quebrar para isso. Nariz, seios faciais, mandíbula e dentes também são protegidos pelo capacete fechado — foi exatamente por esse motivo que eles foram inventados nos anos 1960. Não precisamos ser bochechudos e papudos.

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Aquelas costelas cervicais que deixam o Graham sem pescoço, como Barney Rubble dos Flintstones ou os Sontarianos do Doctor Who, também já existem em forma de equipamento de segurança. Seu nome é Head And Neck Support, mais conhecido como Hans. Sua função é “travar” a cabeça (o capacete nesse caso) nos ombros para impedir movimentos drásticos do pescoço para todos os lados.

Claro, você não tem como usar um HANS para ir ao trabalho, por isso os fabricantes desenvolveram encostos de cabeça mais pronunciados (que chegam a incomodar alguns motoristas) como o WHIPS da Volvo e até sistemas que se projetam contra a cabeça dos ocupantes em caso de colisão.

As bolsas de ar das costelas do Graham são mais comuns entre os kartistas e motociclistas: os coletes de proteção obrigatórios em competições servem para absorver impactos e reduzir movimentos bruscos das costelas. Dentro do carro já estamos usando cintos de segurança infláveis.

As únicas características do Graham que ainda não reproduzimos em forma de equipamentos de segurança pessoal são os joelhos, a articulação inferior da perna e os pés pequenos. Estes últimos são impossíveis sem a articulação inferior da perna. Nós até temos  joelheiras, mas elas não ajudam muito em impactos que forçam os joelhos ao contrário, comuns nos atropelamentos.

Para minimizar essas lesões desenvolvemos tecnologias de segurança aplicadas aos automóveis. Além dos para-choques plásticos deformáveis mais envolventes, que “machucam menos” os pedestres, digamos, também estamos desenvolvendo sistemas que ejetam o capô, airbags para pedestres e até um capô adesivo que gruda o atropelado em vez de jogá-lo longe (não é mesmo Google?). Para motoristas e passageiros, airbags de joelho.

Como se vê, não precisaremos “evoluir” como Graham para sobreviver a acidentes. Aliás, se fosse verdadeiro, Graham não seria um humano evoluído. Ele seria um cara do passado. De um passado no qual a humanidade não tinha capacidade de adaptar o meio às suas necessidades. A verdadeira evolução humana está no “sapiens” que designa nossa espécie. Somos humanos sapientes, capazes de encontrar formas de sobreviver sem ter que esperar essa tal “evolução”.