Nos últimos dias o Lancia Delta foi assunto meio recorrente aqui no FlatOut. Primeiro falamos sobre o o Delta Martini, na segunda parte do especial sobre carros de rua com pinturas de competição; e logo em seguida mostramos o Automobili Amos Futurista, um restomod feito com base no Lancia Delta HF Integrale com doses generosas de fibra de carbono e um motor 2.0 turbo 16v preparado para entregar 330 cv.
Com isto, era inevitável que a gente acabasse dando uma pesquisada a respeito do Lancia Delta para refrescar a memória. E, durante esta busca, acabei topando com um carro interessante – o Lancia que deu origem ao Fiat Uno. Tecnicamente, dá até para dizer que o Fiat Uno já foi um Lancia. Quer entender melhor esta história?
Uma boa forma de começar é deixar claro que o Lancia Delta e o Fiat Uno têm mais em comum do que aparentam. Ou melhor: o que eles têm em comum está exatamente em sua aparência: ambos foram desenhados pelo mesmo projetista, Giorgetto Giugiaro, do estúdio Italdesign. Giugiaro é um dos maiores designers automotivos de todos os tempos, e uma das características mais vistas nos carros projetados por ele é a forte presença de linhas retas e formas limpas, sem elementos desnecessários. As proporções costumam ser harmônicas e agradáveis, e as silhuetas são facilmente reconhecíveis.
Giugiaro, que na primeira metade dos anos 70 foi o designer escolhido pela Volkswagen para dar forma a seus primeiros modelos com motor de arrefecimento líquido e tração dianteira – o Passat, o Golf e o Scirocco – não era homem de trabalhar com uma empresa só. Tanto que, ainda naquela década, ele se juntou aos italianos da Lancia para lançar um de seus modelos mais importantes – o Delta.
Nos primeiros protótipos do Lancia Delta, que foi lançado em 1979, era visível a influência dos projetos da Volks – especialmente na traseira
Na época a Lancia já pertencia à Fiat, assim como a extinta Autobianchi. Até que é recente o post no qual contamos a história da Autobianchi, de julho de 2017, mas não custa relembrar. A Autobianchi surgiu em 1955 de uma parceria entre a Bianchi, que começou em 1885 fabricando bicicletas e migrou para os carros no início do século 20; a Fiat, que queria ingressar no mercado dos carros de luxo e precisava de uma companhia para produzir carrocerias; e a Pirelli, que naturalmente buscava mais clientes para fornecer pneus. O primeiro modelo da Autobianchi foi o Bianchina, que era feito com base no Fiat 500 porém tinha uma carroceria de três volumes mais espaçosa e melhor acabamento. Seu maior sucesso, porém, veio em 1969: o Autobianchi A112, desenvolvido em parceria com a Fiat.
Com motor dianteiro transversal, carroceria de dois volumes e tampa traseira de hatchback, o Autobianchi A112 estava à frente até mesmo do Golf em concepção, embora o Volkswagen costume ser citado como o carro que popularizou o layout moderno de um hatch compacto. Dois anos depois a Fiat colocou no mercado a sua própria versão, o 127 – que só chegou ao Brasil em 1977 como Fiat 147.
Se nos acompanhou até aqui, deve estar se perguntando por que começamos a falar sobre o Fiat Uno, depois passamos para o Lancia Delta e agora estamos falando do Fiat 147. “Eu já sei que o Uno foi o sucessor do Fiat 127 na Europa e do Fiat 147 no Brasil, FlatOut“, talvez você esteja pensando.
Acontece, caro leitor, que tudo está ligado. Graças a seu trabalho no Lancia Delta, Giorgetto Giugiaro acabou contratado para projetar outros carros para as marcas do Grupo Fiat. Em 1980, por exemplo, foi lançado o Fiat Panda, criado para ser um carro intermediário entre o 126 (o pequeno compacto de motor traseiro derivado do Fiat 500, porém com uma carroceria mais retilínea) e o 127. É notável a diferença estética entre os três – o Fiat Panda inaugurava uma nova identidade visual criada por Giugiaro, com grandes faróis retangulares, linhas ainda mais retas e para-choques envolventes de plástico, além de incorporar um novo logo para a Fiat, maior em relação à grade dianteira.
Naquela época a Fiat colocou a Autobianchi sob o controle da Lancia, que na época estava sob o comando de Gian Mario Rossignolo. E caiu sobre ele a responsabilidade de dar início ao desenvolvimento de um sucessor para o A112, que fazia muito sucesso mesmo do alto de seus dez anos de idade sem grandes mudanças.
Seguindo o script, Rossignolo convocou Giorgetto Giugiaro para dar forma aos primeiros protótipos do novo Autobianchi. Existem imagens de alguns deles, mas nem todas acompanham detalhes técnicos. Até porque a maioria deles não passou da fase estática, e alguns sequer chegaram a sair do papel.
A certa altura do projeto, foi decidido que o novo carro seria vendido como Lancia, e não Autobianchi. Era o início do processo de descontinuação da Autobianchi, ao final do qual, em 1995, a marca seria totalmente absorvida pela Lancia. O protótipo Lancia BCDE, como foi chamado, é esse cara aí embaixo.
Familiar? Pois é a cara do Fiat Uno! As proporções são quase idênticas às do Uno e os faróis têm praticamente o mesmo formato. A grade, contudo, tem a identidade visual da Lancia na época, e a traseira difere significativamente do que se veria no Fiat.
A semelhança continua no interior, com direito a uma versão mais sofisticada do painel conhecido como “satélite”, com comandos em pequenos consoles ao lado do cluster de instrumentos.
As principais diferenças são as maçanetas das portas, que não tinham o desenho embutido do Uno, e a presença de dois limpadores de para-brisa. Estava praticamente pronto, mas no fim das contas acabou se transformando no Uno. E como isto aconteceu?
A questão é que Rossignolo tinha certas diferenças ideológicas com Vittorio Ghidella, então presidente do Grupo Fiat. Ainda em 1979 Gian Mario Rossignolo decidiu deixar o grupo Fiat, migrando para uma fabricante de componentes mecânicos sueca chamada Skf Industrie, onde assumiu o cargo de diretor. Com sua saída, o projeto do sucessor do Autobianchi A112 mudou completamente, e acabou se tornando um compacto baseado no Fiat Panda, também com design de Giorgetto Giugiaro e uma semelhança mais do que passageira com o Fiat Uno. Ele foi, de fato, lançado em 1985 – dois anos após o Uno.
Na maioria dos mercados ele era vendido como Lancia Y10, usando apenas na Itália o nome de Autobianchi Y10. Em 1995 a Autobianchi afoi enfim absorvida pela Lancia, desaparecendo do mercado.
Vittorio Ghidella tinha uma ideia para aproveitar o Lancia BCDE: usá-lo como base para o sucessor do Fiat 127, que havia passado recentemente por uma reestilização que não foi muito bem sucedida, e tornou o desenho do carro mais pesado e envelhecido em vez de renová-lo de forma satisfatória.
Um dos protótipos do Fiat Uno em testes, disfarçado de Panda. A imprensa italiana se referia a ele como “Fiat Panda Super”
Giorgetto Giugiaro foi, enfim, encarregado de finalizar o design do carro, dando a ele o desenho que foi revelado ao mundo em 18 de janeiro de 1983, durante um evento no Cabo Canaveral, no estado da Flórida. A ideia era associar o Fiat Uno ao futuro: era no Cabo Canaveral que ficava uma das bases de lançamento de foguetes da NASA.
Com sua carroceria quadrada, entre-eixos longo em relação ao comprimento, ampla área envidraçada e excelente aproveitamento de espaço, o Fiat Uno de fato foi um dos carros mais modernos de seu tempo – recepção que também teve no Brasil um ano depois, em 1984. Mesmo que o Fiat Uno brasileiro mais em comum com o 147 do que o Uno europeu tinha com o Fiat 127.
É aqui que cai a ficha: o carro que inaugurou o segmento dos populares; conseguiu unir preço baixo, desempenho satisfatório, economia de combustível e comportamento dinâmico da melhor forma possível; e não por acaso sobreviveu até 2013, começou sua vida como um Lancia. E tudo começou quando Giorgetto Giugiaro foi chamado para desenhar o Delta. Ou a gente está exagerando. Mas tudo bem.