Na semana passada a RM Sotheby’s anunciou que um dos únicos 25 Mercedes CLK GTR produzidos estará a venda em seu leilão durante a Monterey Car Week em Pebble Beach, quando também será realizado o Concours D’Elegance Pebble Beach e o Motorsports Reunion em Laguna Seca. O modelo é o número 09/25 e a casa de leilões espera que ele seja vendido por entre US$ 4.250.000 e US$ 5.250.000 no próximo dia 25.
Passeando pela galeria do carro no site oficial da Sotheby’s e admirando os detalhes deste ícone dos anos 1990, me dei conta de que até hoje ele não deu as caras em nossa seção de supercarros em detalhes e achei que esta seria uma boa hora para consertar esse deslize.
O CLK GTR, como você deve saber (se não sabe, leia este post) foi a aposta da Mercedes para o campeonato de GT1 da FIA. A ideia era usar supercarros de rua modificados para as pistas, mas em limite de orçamento e com a homologação mais frouxa da história do automobilismo, a maioria dos fabricantes construiu protótipos com cara de carro de rua e nem se preocupou em produzir o número mínimo de unidades exigidos para homologação.
O modelo foi construído sobre um monocoque de fibra de carbono com subchassis tubulares na frente e na traseira acomodando motor e suspensão. O motor era o V12 M120 de 6,5, 6,9 ou 7,3 litros — dependendo de quem comprou o carro, e seu interior era mais espartano que o de um Mercedes Classe A da mesma época. Mas com 650 cv, um câmbio sequencial de seis marchas e exatamente o mesmo visual do carro que disputou o mundial de GT1, isso não era nenhum problema.
Um fato curioso do CLK GTR é que, apesar de ter emblemas da AMG no volante, no quadro de instrumentos, nas rodas, no motor, nos abafadores de escape e nos cintos de segurança, ele oficialmente não é um AMG. Na verdade ele sequer foi construído pela AMG — mas é como se fosse.
Em 1998, quando o CLK GTR foi lançado, a Daimler-Benz já havia adquirido 100% da AMG e incorporado a ex-preparadora ao grupo, agora como divisão esportiva da Mercedes-Benz. Depois da venda, uma das metades da AMG, Hans Werner Aufrecht (o A da AMG), fundou uma nova preparadora sem o parceiro Erhardt Melcher (o M da AMG) e a batizou com suas iniciais: HWA. Na hora de construir o supercarro, em vez de usar sua recém-adquirida divisão esportiva, a Mercedes simplesmente procurou a HWA e encomendou à nova empresa a construção do esportivo. Ou seja: o “primeiro modelo exclusivo da AMG” foi construído por um dos fundadores da AMG na empresa que fundou depois de vender a AMG.
Agora que você já sabe um pouco mais sobre este supercarro para impressionar a galera no encontro do posto, vamos matar a curiosidade e conhecer em detalhes o primeiro Mercedes da história que foi desejado por menores de 50 anos.
Como você já deve ter percebido, o CLK GTR tem tanto do CLK quanto um mico-leão tem de leão: uma vaga aparência. Como a Porsche fez com o 911 GT1 Strassenversion, a Mercedes só usou a cara e a traseira do CLK neste protótipo para fingir que ele é um CLK de verdade. Grade, faróis e lanternas podem ser encontrados em qualquer CLK de primeira geração, mas todo o resto é exclusivo deste supercarro.
Nem mesmo a silhueta dos vidros laterais era a mesma, tampouco as proporções longitudinais ou o caimento do teto. E uma evidência de que ele não tem relação nenhuma com o CLK comum está nesta pecinha aí abaixo:
Nesta foto temos o ponto de ancoragem da suspensão no monocoque do CLK GTR. Note o número da peça “A297” indica que ela é exclusiva para o CLK GTR, cujo código interno é W297. Na Mercedes os componentes feitos para um determinado chassi/modelo/geração usam seu código interno antecedido pela letra A. Os números restantes identificam de qual sistema do carro ela faz parte, subsistema e diferenciação/versão. Se o CLK GTR fosse derivado do CLK convencional seus componentes seriam identificados com as iniciais A 208.
O mesmo vale para os motores: os componentes de um determinado motor são identificados pela letra A seguida do código do motor. No caso do CLK GTR que usa o M120, o código é A 120 seguido por mais sete números.
As lanternas são uma das poucas coisas usadas no CLK de verdade (C208). Elas são exatamente as mesmas do CLK 55 AMG da época, o que é evidenciado pela divisão da lanterna em duas partes, uma vez que a porção menor é afixada na tampa do porta-malas. É por isso que, ao olhar rapidamente para o CLK GTR, você tem a impressão de que ele tem realmente uma tampa traseira como o cupê original. Mas ao olhar com atenção na foto acima (e na de baixo) você verá que apenas as lanternas são divididas e o formato da tampa do porta-malas é um golpe de vista causado por um vinco e pelas formas do para-choque traseiro.
Ainda na traseira, você certamente já notou essa abertura ovalada entre as saídas de escape. Ela poderia ser muito mais uma saída direta, um cano que desvia dos abafadores e emite a sonoridade do V12 sem restrições. Mas aquela abertura não tem nada a ver com o escape — embora um outro tipo de gás seja expelido por ali. A foto abaixo mostra a traseira despida, e torna tudo mais fácil de compreender.
Os mais atentos já sacaram: é um duto de escoamento do ar que atravessa os dois radiadores que ficam ali, atrás do reservatório do cárter seco (aquele cilindro meio dourado que passa pela capa de fibra de carbono com a marca AMG). Nesta próxima foto dá para ver melhor:
O modo de montagem faz parecer que há apenas um radiador, mas note que eles são separados. É porque um deles arrefece o lubrificante do motor e o outro resfria o óleo do câmbio e diferencial. O escudo de fibra de carbono ajuda a direciona o ar de dentro do cofre do motor para os radiadores e, para otimizar o fluxo aerodinâmico, o ar aquecido pelos radiadores é escoado sobre o difusor traseiro.
Já o radiador do motor e o condensador do ar-condicionado ficam na dianteira, juntos:
O condensador é este radiador menor sobre um outro maior, mais ao fundo, que é o radiador do fluido de arrefecimento do motor. O duto maior, na parte de baixo, leva ar para os freios e para o radiador do motor. O duto do meio serve ao radiador do motor e ao condensador do ar-condicionado e o duto superior é o que ventila a cabine. Nesta foto acima também podemos ver as buzinas, as conexões do ar-condicionado, o gancho de reboque e, claro, a suspensão inboard ajustável. Mas ela aparece melhor nesta foto:
Também podemos vez um reservatório de nitrogênio para ajuste de carga dos amortecedores, a rosca de ajuste do coilover, o par de reservatório de fluido hidráulico para os freios, o terminal de direção e o duto de arrefecimento dos freios dentro da roda.
Nesta foto acima é possível ver que a grade inferior tem a largura da abertura do duto interno, porém o radiador do motor ocupa somente a parte central. As laterais direcionam ar para os freios junto das aberturas laterais do para-choque dianteiro. Os faróis são os mesmos do CLK comum, por isso têm projetores superelipsoidais. A grade também é a mesma usada nos modelos convencionais do CLK.
Quando o ar entra na caixa de roda para resfriar os freios, ele precisa ser escoado para não causar turbulência e arrasto e, assim, prejudicar o desempenho aerodinâmico do carro. Por isso o CLK GTR tem aquele respiro de ar imenso atrás dos para-lamas dianteiros:
Nessa imagem acima, aliás, é possível ver as travas do capô. Elas parecem dobradiças expostas, mas são, na verdade, as linguetas que travam a dianteira (e também a traseira) encaixadas sobre o monocoque e os subchassis. As dobradiças são mais discretas, como podemos ver na porta, logo à frente do retrovisor. As travas são assim:
Veja mais de perto:
As dobradiças são mais estreitas e ficam alinhadas com a carroceria:
Note também que o CLK GTR simula o recorte do capô do CLK convencional. Mas se você olhar atentamente verá que a abertura do farol não tem o corte.
Após soltar as travas, o único jeito de acessar o motor e a dianteira do carro é removendo a carenagem. Elas não são articuladas. O carro fica desse jeito:
Sem nenhuma cobertura na traseira é possível ver como tudo o que vem atrás do câmbio (que está alinhado com as rodas traseiras) tem função meramente aerodinâmica. Nessa foto acima também é possível ver aonde o scoop do teto leva o ar que admite: a imensa câmara (plenum) da admissão do V12 6.5 M120. Como em todo plenum, o ar acelerado pelo duto de admissão (e pela própria velocidade do carro) gera pressão positiva nessa câmara, o que ajuda aumentar o volume de ar admitido pelo motor. Veja mais de perto:
Lá dentro ele encontra 12 cornetas e 12 borboletas, como mostra este cutway:
Visto de cima ele fica assim:
Aproveitando as portas abertas, podemos entrar no carro e conhecê-lo melhor por dentro, não?
Mas antes uma observação: o CLK GTR usa portas borboleta (são ancoradas na base da coluna A e no teto) sustentadas por amortecedores a gás, como no 300 SL Gullwing e os protótipos C111 e C112. Esse tipo de porta é necessário devido à altura das soleiras, que são elevadas devido à forma natural do monocoque. Foi por este mesmo motivo que o 300 SL Gullwing ganhou portas asa-de-gaivota nos anos 1950.
Note que as soleiras abrigam um porta-luvas em cada lado — no lado do piloto ainda há o freio de estacionamento, que não tem vez no console central. Isso porque os bancos são moldados no monocoque e praticamente grudados um no outro, de forma que o único espaço entre eles precisa ser ocupado apenas pelos braços dos ocupantes.
Tudo o que você encontrará no console central é o botão para desligar o controle de tração (amplie a foto acima; é o ASR OFF), o botão do ajuste dos retrovisores, o pisca-alerta e um seletor do câmbio, que mais parece uma alavanca enterrada. Veja só de perto:
Enquanto no CLK GTR de corrida o câmbio manual sequencial tem uma alavanca longa que a coloca a centímetros do volante, o modelo de rua ganhou borboletas. A alavanca seleciona apenas ré e ponto morto.
As trocas manuais precisam ser feitas com o pedal de embreagem, embora seja possível aumentar e diminuir as marchas sem usá-lo. O único inconveniente é que você precisará revisar o câmbio a cada 5.000 km…
O interior ainda usa alguns elementos do CLK como o quadro de instrumentos, que tem o mesmo formato e disposição dos instrumentos, bem como as saídas de ventilação na parte central do painel e os comandos do ar-condicionado que, ironicamente, vêm das versões mais baratas do modelo apesar de o CLK GTR ser o carro mais caro do planeta em sua época.
Já o volante é exclusivo do modelo, talvez porque nenhum Mercedes era oferecido com borboletas no volante na época.