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Zero a 300

A odisseia do último Bugatti que correu nas 24 Horas de Le Mans

Hoje em dia a Bugatti é reconhecida como a fabricante dos supercarros mais luxuosos, caros e exclusivos do planeta – verdadeiros superlativos sobre rodas que existem por pura extravagância. O Bugatti Chiron, com seu motor de oito litros e dezesseis cilindros e quatro turbos e dez radiadores e 1.500 cv e duas toneladas na balança, provavelmente é capaz de passar dos 460 km/h, mas de acordo com a fabricante ainda não há pneus capazes de suportar tanto desempenho.

Pensando racionalmente o Chiron é um carro completamente sem propósito, mas a questão é que um Bugatti não é um carro racional. É uma demonstração pura e simples de como é possível escolher o caminho mais complicado e tortuoso para conseguir desempenho e, ainda assim, deixar embasbacado qualquer um que olhe para o resultado. É possível fazer um carro tão rápido quanto um Chiron de forma muito mais eficiente – com menos peso, menos turbos e menos cilindros. Mas aí o carro não seria um Bugatti.

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A companhia francesa original, fundada por Ettore Bugatti (que nasceu em Milão, na Itália, mas se naturalizou francês), fazia grand tourers extremamente belos e luxuosos nas décadas de 1930 e 1940 – talvez o incrível Type 57 Atlantic, por exemplo, fosse um carro tão chocante quanto um Chiron na época.

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Mas também era uma companhia que investia recursos no automobilismo e se saía muito bem: em 1937 e 1939 o Bugatti Type 57 Tank venceu as 24 Horas de Le Mans. Ele era movido por um oito-cilindros em linha com potência entre 180 cv e 250 cv, e seu perfil aerodinâmico garantiu que seu desempenho simplesmente obliterasse o dos rivais nas duas edições da prova.

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É por isso que achávamos estranho o seguinte: desde que a Bugatti voltou à ativa em meados dos anos 2000, a marca sequer havia mencionado seu passado nas pistas. Talvez por se tratar de outra companhia, abrigada sob as asas da Volkswagen – eles falavam sobre como o hipercarro era veloz, exclusivo, altamente tecnológico e luxuoso, jamais falando sobre como muitas décadas antes a Bugatti era uma potência do automobilismo. Até agora.

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Albert Divo

O mais recente modelo da Bugatti, porém, será batizado Divo  uma homenagem a Albert Divo, piloto parisiense que deu à equipe duas vitórias na Targa Florio em 1928 e 1929. A Bugatti já disse que o Divo, embora baseado no Chiron, terá visual distinto, será mais leve e mais potente e apostará na downforce para “conseguir tempos de volta mais baixos”. Como já foi dito por aqui, é a primeira vez desde seu retorno em 2004 que a companhia insinua a possibilidade de se levar um Bugatti para a pista.

Agora, por mais que a gente até já tenha contado a história da Bugatti em Le Mans no fim dos anos 30, ainda não falamos sobre a última vez em que um carro da marca foi levado para o Circuito de La Sarthe. Aconteceu em 1994, exatos 24 anos atrás, e nós vamos contar esta história hoje.

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Foto: Juergen Skarwan

Como você deve lembrar, na década de 1990 a Bugatti foi revivida pela primeira vez pelo empresário italiano Romano Artioli. Ele, aliás, foi quem teve primeiro a ideia de transformar a companhia em uma fabricante de superesportivos absurdamente potentes e exclusivos, algo que se concretizou com o Bugatti EB110.

Romano Artioli comprou a Bugatti em 1987 e uma nova fábrica, ao norte de Modena, foi construída. Era o fim de um hiato de 38 anos que começou logo por causa da morte de Ettore Bugatti, fundador da empresa, em 1949.

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Os primeiros protótipos com monocoque de alumínio já traziam as linhas ousadas da carroceria, com proporções imponentes, formato de cunha e qualidade de construção extremamente cuidadosa para um supercarro. Depois, os carros começaram a ser feitos com monocoques de fibra de carbono (que era fabricado pela francesa Aérospatiale, especializada em aviões).

Apesar de ter quatro cilindros a menos que o Veyron, o V12 de 3,5 litros e 60 válvulas do EB110 já era sobrealimentado por quatro turbocompressores e tinha velocidade máxima impressionante. Na primeira versão, EB110 GT, o motor entregava 560 cv a 8.000 rpm, suficientes para chegar aos 100 km/h em 4,2 segundos com máxima de 336 km/h — o que fez dele o carro mais rápido do mundo em 1991. Foram fabricadas por volta de 95 unidades do EB110 GT. Na SS, a mais rara com algo entre 31 e 38 exemplares fabricados, o motor entregava 612 cv a 8.250 rpm. Era o bastante para levar o esportivo aos 100 km/h em 3,2 segundos com máxima de 348 km/h.

Hoje em dia, por conta disto, os Bugatti EB110 que rodam atualmente são verdadeiras preciosidades e dificilmente são levados para a pista. Mas em 1994 o carro ainda era novidade e houve quem enxergasse potencial nele. Romano Artioli, ao contrário do que fez a Volkswagen com o Veyron, valorizou o legado da Bugatti nas pistas logo de cara.

Artioli acreditava que uma boa forma de provar a capacidade do EB110 seria disputar as 24 Horas de Le Mans. E, para a edição de 1994, havia a deixa perfeita.

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Nos anos 80, as provas de longa duração do WEC (World Endurance Championship, ou “Campeonato Mundial de Resistência), do qual faziam parte as 24 Horas de Le Mans, era quase exclusivamente disputado por protótipos do Grupo C, que não exigiam a fabricação de versões de rua (afinal eram protótipos) e, com isto, custavam bem menos dinheiro. No entanto, em 1994 a FIA introduziu uma nova categori: a GT1. Era uma divisão de turismo voltada para superesportivos com pelo menos 25 unidades fabricadas. O regulamento era bastante liberal e permitia praticament qualquer tipo de configuração mecânica, desde que o carro tivesse assoalho plano (sem efeito solo) e potência de até 600 cv. Como resultado algumas companhias decidiram-se por criar seus carros de corrida primeiro e depois pensar na versão de rua – a Porsche com seu 911 GT1 e a Mercedes-Benz com o incrível CLK GTR foram duas delas.

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No caso da Bugatti o approach foi o oposto: o EB110, com seu V12 quadriturbo de 3,5 litros e 612 cv na versão SS, precisaria ser amansado para se classificar. Na visão de Romano Artioli aquilo era um sinal de que o supercarro poderia se sair bem e reviver os dias de glória da Bugatti em Le Mans.

Encontrado um patrocinador, o colecionador francês Michel Hommell, começaram os preparativos. Apenas um carro seria inscrito na prova. A versão escolhida foi a SS não apenas por causa da potência, mas também porque era um carro mais leve, pesando 1.600 kg – o que não era pouco, mas em comparação o EB110 GT pesava 1.800 kg.

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A Bugatti decidiu manter o sistema de tração integral com três diferenciais por questões de dinâmica, então foi preciso encontrar outras formas de reduzir o peso do carro. Esta era a questão crucial, e não apenas por conta do desempenho bruto, mas também do desgaste extra nos freios e pneus e no consumo de combustível elevado que se teria em um carro de corrida com mais de 1,5 tonelada.

Removendo componentes desnecessários do interior, adotando componentes de alumínio na suspensão, freios de carbono-cerâmica e amortecedores Bilstein mais leves, a Bugatti conseguiu eliminar cerca de 300 kg do carro.

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Para garantir que fosse ter chances, a Bugatti contratou um time de pilotos que incluía Éric Hélary, vencedor das 24 Horas de Le Mans de 1993 com o Peugeot 905. Ele revezaria com Alain Cudini, que já havia competido na DTM e no Grupo C da FIA ao volante do Sauber C9; e com o jovem Jean-Christophe Boullion, revelação na Fórmula 3000 na temporada de 1993. Ainda que Romano Artioli fosse italiano, ele achava importante que os três pilotos fossem franceses para valorizar o legado de Ettore Bugatti.

Não seria, porém, uma tarefa fácil. Para usar a analogia que o próprio Ettore Bugatti jocosamente fez sobre seus rivais da Bentley, o carro eram um verdadeiro elefante se comparado a alguns de seus rivais: Ferrari F40, Dodge Viper e Porsche 964 Turbo – carros mais leves e ágeis, com tração traseira. Havia ainda o Dauer 962 Le Mans, que não tinha este nome por acaso: ele era uma versão modificada do imbatível Porsche 962 do Grupo C, feito para as ruas, o que tecnicamente lhe garantia um passaporte para a categoria GT1.

Estes carros também tinham outra vantagem que talvez fosse ainda mais importante em uma corrida de 24 horas: eram conceitualmente mais simples – V10 naturalmente aspirado no caso do Viper, V8 biturbo na F40 e flat-six biturbo no Dauer 962, e todos com tração traseira e muito menos coisas para quebrar.

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Ainda assim o EB110 se saiu bem nos treinos preliminares: o único carro inscrito na corrida virou 4:16,940 em sua melhor volta, sendo o 17º na classificação geral e o 5º em sua categoria. Claro, a F40 foi quase dez segundos mais rápida e a dupla de Dauer 962 superou o Bugatti em mais de 25 segundos, mas para uma primeira tentativa era uma excelente classificação que alimentava esperanças de ao menos uma vitória na classe. O que, como você deve ter deduzido, não aconteceu – ou a Bugatti atual provavelmente faria questão de nos lembrar do feito o tempo todo.

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Foi uma corrida difícil para o supercarro. Logo de cara os mecânicos descobriram um vazamento no tanque de combustível, o que poderia ter impedido o EB110 de largar – a solução ideal seria substituir o tanque, mas não havia tempo hábil para isto. Em um ato que beirava o irresponsável, um dos membros da equipe decidiu tapar o furo com selante. O resultado: nas primeiras horas da prova o Bugatti teve que correr com apenas meio tanque de combustível, o que forçou os pilotos a pararem mais vezes nos boxes até o adesivo secar e custou à equipe algumas posições.

Prova da capacidade do carro, porém, foi a recuperação: em pouco tempo, com o tanque já consertado, o EB110 conseguiu subir para a terceira posição na categoria GT1. Não parecia nada mau para uma estreia –até porque a dupla de Dauer 962, com suas raízes no Grupo C, tinha desempenho visivelmente superior ao de qualquer outro carro no grid e dava sinais claros de que venceria a prova. Mas a sorte não sorriu mesmo para a Bugatti naquele dia.

Problemas frequentes nas turbinas forçaram os pilotos a parar várias vezes nos boxes, e eventualmente todas as quatro tiveram de ser trocadas. Sabe quando dizem que “menos é mais”? A Bugatti deveria ter pensando nisso. E quando uma das turbinas reserva quebrou, a equipe teve de aceitar que o pódio estava fora de questão. Terminar a corrida já seria uma vitória. Mas isto também não aconteceu.

Não foram problemas mecânicos que tiraram a Bugatti das 24 Horas de Le Mans, porém. Em sua 230ª volta em La Sarthe, Jean-Christophe Boullion perdeu o controle do EB110 enquanto freava para entrar na primeira chicane da reta Hunaudières. Não se sabe exatamente o motivo, mas especula-se que foi um pneu furado que levou o carro a virar repentinamente para a esquerda, fechar o Dodge Viper que vinha atrás (e no fim das contas seguiu seu caminho) e bater no muro. Boullion não se feriu, mas o carro ficou com a dianteira toda destruída e teve de abandonar a prova.

No fim das contas o lugar mais alto do pódio ficou com um dos Dauer 962 Le Mans, seguido do protótipo Toyota 94C-V da categoria LMP1 e do outro Dauer – como contamos neste post, aliás. A Bugatti jamais retornaria a Le Mans outra vez e, de volta ao início deste post, jamais mencionou novamente seu legado e sua tradição nas pistas.

O documentário abaixo, produzido por Davide Cironi (aquele italiano que de vez em quando aparece aqui no FlatOut com suas análises passionais de carros esportivos), conta com imagens de época de depoimentos dos envolvidos na empreitada da Bugatti em Le Mans. Há legendas em inglês, mas é possível traduzi-las automaticamente pelo YouTube.

O carro prata que aparece ao lado do EB110 azul é outro carro de corrida – que também já apareceu aqui no FlatOut, aliás. Trata-se do EB110 “Competizione”, no qual o entusiasta Gildo Pellanca Pastor chegou aos 296,34 km/h sobre a superfície congelada de um lago na Finlândia em março de 1995. O carro tinha pneus de rua comuns e carregava algumas dezenas de kg de lastro para ter mais aderência.

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Depois disto, Pastor decidiu que também tentaria correr as 24 Horas de Le Mans com o carro. Antes disto, porém, Pastor inscreveu o Bugatti no campeonato da IMSA, disputado nos EUA, que seguia as regras da FIA GT1. O EB110 participou de prova em diversos circuitos entre 1995 e 1996, como Watkins Glen, Daytona e Suzuka, para que a equipe formada por Pastor, Patrick Tambay (ex-Fórmula 1) e Derek Hill (filho d Phill Hill, que era um dos consultores), pudesse conhecer o carro. E também para acertá-lo para as 24 Horas de Le Mans de 1996.

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Com Tambay comandando o carro nos treinos de classificação, o carro foi muito bem. No entanto, durante as últimas voltas, Tambay acabou batendo o carro. A Bugatti até tentou consertá-lo, mas não deu tempo, e o carro acabou nem participando da corrida.