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Automobilismo História

Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 6: a vitória totalmente americana

Depois de vencer as 24 Horas de Le Mans em 1966, a Ford queria provar que sua conquista não havia sido uma mera casualidade. Sendo uma das maiores fabricantes de carros do planeta, eles não mediram esforços para garantir mais uma vitória em Mans.

Em março de 1966 a Ford completou o protótipo de uma evolução do GT40 que ficou conhecida como “J-car”, visto que era baseado no regulamento do apêndice J da FIA. O carro usava um revolucionário monocoque tipo colméia, muito mais leve que os demais GT40 — consta que ele pesava apenas 39 kg e o carro completo 1.207 kg, 136 kg a menos que o GT40 Mk II. Ele foi usado no início da temporada de 1966, mas para não correr o risco de perder mais uma edição de Le Mans, a Ford optou por usar o GT40 Mk II na corrida.

Com a vitória, os testes foram retomados, mas em uma sessão no Riverside International Raceway, no mês seguinte à vitória, um acidente gravíssimo destruiu o protótipo e matou o piloto Ken Miles, o principal responsável pelo desenvolvimento dos GT40 até então.

Após a morte de Miles, a Ford modificou radicalmente o desenvolvimento do carro, usando como base o chassi do J-car reforçado, e o mesmo conjunto de motor e câmbio do Mk II. A carroceria era aerodinâmica e alongada, com a dianteira baixa e um visual não muito diferente de protótipos como a Ferrari 330 P4 e o Porsche 910. Isso permitia uma melhor penetração aerodinâmica e maior velocidade final, algo essencial para Le Mans naquela época.

Ele também recebeu uma gaiola de proteção feita de tubos de aço — que no fim das contas eliminaram a vantagem de peso em relação ao MkII. Uma diferença crucial do GT40 Mk IV para seus antecessores, é que eles foram totalmente desenvolvidos e fabricados nos EUA, pela Kar Kraft — a divisão “desburocratizada” da Ford.

O carro acabou batizado como GT40 Mk IV (nunca houve um Mk III) e, diferentemente dos seus antecessores, não teve uma campanha antes das 24 Horas de Le Mans. Ele estreou nas 12 Horas de Sebring de 1967, venceu a prova, e depois já foi enviado para a França.

 

O Dia D

Para provar que a vitória não fora um mero acaso, e garantir uma segunda conquista em Le Mans, a Ford levou nada menos que dez carros, dos quais quatro eram GT40 Mk IV — dois com a Shelby American e dois com a Holman & Moody. As duplas da Shelby eram Dan Gurney e A.J. Foyt, e Bruce McLaren e Mark Donohue. Na Holman & Moody, os pilotos seriam Mario Andretti e Lucien Bianchi, e Denny Hulme e Lloyd Ruby. Os outros carros da Ford eram três GT40 MkIIB — um com a Shelby, outro com a Holman & Moody e outro com a Ford France. Os outros três eram Ford GT40 Mk I inscritos por equipes independentes.

A Ferrari, apesar da derrota no ano anterior, estava motivada para Le Mans pois tinha vindo de uma vitória em Daytona — uma trinca, na verdade — superando justamente a Ford. A Scuderia levou três 330 P4, três 412P (uma com a NART, outra com a Scuderia Filipinetti e outra com a Maranello Concessionaires) e uma 362 P2 com a NART.

A estratégia da Ford seria usar um carro-lebre para forçar o ritmo das Ferrari, uma tentativa de aumentar o desgaste dos carros italianos enquanto a Ford conservava seus carros em um ritmo mais brando. Os pilotos escolhidos para o carro-lebre seriam A.J. Foyt e Dan Gurney. A dupla foi criticada pela imprensa americana, porque, segundo os jornalistas, a rivalidade de Gurney e Foyt nas pistas os levaria a duelar nos stints e acabaria forçando demais o carro. Além disso, Foyt nunca tinha pisado em La Sarthe e tampouco pilotado o GT40. Os treinos para as 24 Horas foram sua primeira vez no circuito e sua primeira vez ao volante do carro.

 

Correndo contra o azar

Apesar da manhã nublada, a corrida começou com o tempo bom. O Ford GT40 de Ronnie Bucknum e a Ferrari P3 de Pedro Rodriguez saíram na frente, mas Dan Gurney logo tomou o segundo lugar antes do fim da primeira volta. Com o Mk IV Gurney desenvolveu um método de frenagem para conservar os freios, que ele considerava o ponto fraco do carro. Ao final da Hunaudières/Mulsanne, ele tirava o pé a cerca de 300 metros da zona de frenagem e deixava o carro desacelerar com o freio-motor. Antes da curva ele freava com o pedal e então retomava a velocidade. Foyt fez o mesmo e se concentrou em conservar o carro.

Os problemas da Ford começaram logo nas primeiras voltas, quando Denny Hulme teve problemas no acelerador do seu Mk IV e precisou encostar. Em seguida, Lucien Bianchi precisou trocar o para-brisa de seu Mk IV. Ao fim da primeira hora, contudo, a Ford liderava com Bucknum no GT40 MK II da Shelby.

Em seguida, os líderes da prova entraram nos boxes e Foyt assumiu a ponta e começou a apertar o ritmo como planejado. Na segunda hora da corrida, a Ford já tinha uma vantadem de uma volta sobre as Ferrari e o restante dos carros, exceto o Chaparral de Graham Hill, que estava em segundo, entre Foyt e Andretti. Mais rápidos que todos os outros carros na Hunaudières, os Ford começaram a abrir vantagem e baixar os tempos de volta. Hulme baixou o tempo da pole position antes do anoitecer.

Por volta das 22 horas a Ferrari teve seu primeiro problema: a Ferrari de Chris Amon teve um pneu furado quando estava em quinto lugar e era o melhor carro da Scuderia na prova. Sem ferramentas ele teve que voltar para os boxes, mas no caminho o contato das rodas com o asfalto geraram faíscas que deram início a um incêndio. Amon conseguiu sair ileso, mas o carro queimou completamente. 

Acontece que a Ford também começou a ter problemas durante a madrugada. Primeiro foi o GT40 de Bucknum, que teve sua linha de arrefecimento soldada, mas como o regulamento exigia um mínimo de 25 voltas para reposição dos fluidos, ele precisou dar duas voltas com metade do volume necessário para arrefecer o motor, perdendo preciosas posições.

Depois foi a vez de Lloyd Ruby, que saiu da pista duas vezes. Na primeira ele perdeu a vantagem aberta pelo ritmo forte de Hulme por ter danificado o fundo do carro numa caixa de brita. Na segunda o carro ficou irremediavelmente danificado.

Por volta das três da manhã, a Ford estava nas três primeiras posições: Gurney na frente, Andretti em segundo e McLaren em terceiro. Foi quando Mario Andretti sofreu um acidente gravíssimo — que seria um dos maiores de sua carreira. Apesar de Lucien Bianchi ter reclamado dos freios na hora da troca de pilotos, Andretti entrou no carro e começou a baixar tempo volta após volta.

Ao se aproximar dos Esses o carro perdeu a traseira, e foi escorregando de lado até bater no muro de proteção. Em seguida o carro foi arremessado para o outro muro com tamanha violência que a dianteira se separou do resto do carro. Andretti saiu do carro com três costelas quebradas.

Logo após o acidente, Roger McCluskey, que estava em nono com um dos GT40 MkII acabou batendo no muro para evitar a colisão com o GT40 de Andretti. Ele pensou que o americano ainda estava dentro do carro destroçado e escolheu bater no muro. Quase no mesmo instante Jo Schlesser, que estava no outro GT40 MkII tentou desviar de ambos, mas também bateu. Em menos de um minuto a Ford perdeu mais três carros.

E como se não bastasse, McLaren furou um pneu ao passar pelo local do acidente e ainda perdeu tempo nos boxes com problemas na embreagem. E para piorar ainda mais, a cobertura do motor de seu GT40 Mk IV se soltou na Hunaudières e saiu voando. Sem uma reserva, a Ford perdeu 45 minutos procurando o componente, o que o colocou na sexta posição.

 

Uma vitória americana

O plano da Ford tinha ido por água abaixo. Antes mesmo do sol raiar o único Ford com chances de vitória era justamente o carro lebre de Gurney e Foyt, que tinham uma vantagem de 5 voltas sobre a Ferrari de Ludovico Scarfiotti, que agora estava em segundo, seguida pelo Chaparral de Graham Hill.

A Ferrari ainda tentou provocar Gurney: Scarfiotti, a quatro voltas do americano, piscava os faróis pedindo passagem sempre que eles se aproximavam na zona de frenagem. Depois de algumas voltas Gurney simplesmente encostou na Arnage, mas o italiano em vez de passá-lo parou junto. Foi somente depois de alguns segundos que Scarfiotti decidiu arrancar e passar Gurney, que ainda tinha as quatro voltas de vantagem.

Ao amanhecer a Ford sofreria outro revés: Bucknum forçou o ritmo para recuperar as posições perdidas, mas o motor não aguentou e teve uma válvula quebrada na 18ª hora. Àquela altura haviam restado somente 16 carros na pista, dos quais somente dois eram Ford GT40: o Mk IV de Gurney e Foyt na liderança, e o Mk IV de McLaren e Donohue em quarto, a 18 voltas do terceiro colocado. E foi assim que o carro-lebre se tornou o único com chances de vencer.

O que aconteceu foi que a estratégia de Gurney e Foyt de frenagem “covarde”, como eles mesmos definiram,  preservou não apenas os freios, mas também o motor e demais componentes mecânicos do carro, uma vez que eles nunca aceleravam ao máximo na Hunaudières. Além disso, eles também consumiram menos combustível. Quando o sol raiou, Gurney somente manteve o ritmo, administrou a liderança, como se diz hoje em dia, e esperou o relógio marcar a 24ª hora.

E foi assim que Daniel Sexton Gurney da Califórnia, Anthony Joseph Foyt Jr. do Texas e o Ford GT40 MkIV de Michigan conquistaram as 24 Horas de Le Mans em uma vitória completamente americana… e totalmente improvável.

E antes mesmo de sair do circuito, Gurney deixou uma segunda contribuição para a história…

 

O início de uma tradição

Gurney estava empolgado demais com sua vitória. Ignorando a estratégia da Ford durante toda a corrida, e com uma técnica improvável de frenagem, formando dupla com um piloto que todos diziam que iria detonar o carro, eles venceram o desafio sobre a Ferrari.

Sem pensar muito, Gurney pegou a garrafa de Moët & Chandon que lhe entregaram pela vitória, e espontaneamente a sacudiu loucamente antes de sacar a rolha, dando um banho em todos os que estavam por ali “como se fosse uma mangueira de incêndio”, diria mais tarde.

Depois disso, o gesto de Gurney foi repetido de forma cada vez mais frequente até se tornar uma tradição mundial. A garrafa foi dada de presente ao fotógrafo Flip Schulke, que a guardou por 30 anos como uma base de abajur em sua casa, até que um dia a devolveu a Gurney, que a colocou na sede da AAR, onde está até hoje.


 

Capítulos anteriores:

Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 1: Davi vs. Golias
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 2: o nascimento do GT40
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 3: a última derrota
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 4: enfim a vitória
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 5: o indomável Ken Miles