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Car Culture

Lendas do WRC: Peugeot 206 e a volta dos franceses ao topo do mundo nos ralis

Até agora nossa série especial “Lendas do WRC” tivemos nada menos que 13 campeões do mundial de rali. Na primeira delas, contamos a história do primeiro campeão de todos — o francês Alpine A110, em 1973. Os franceses ainda alcançaram a glória com outros dois carros: o Talbot Lotus Sunbeam (1981) e o Peugeot 205 T16, sendo que este último é um dos lendários monstros do Grupo B — quer dizer, ele foi o maior vencedor na curta história da categoria mais insana da história dos ralis.

O caso é que, depois do sucesso estrondoso do 205, os franceses passaram longos anos sem chegar perto de um título do WRC. A Lancia, com seu Delta, certamente tem parte da culpa, mas não toda ela: a partir de 1992, o Mundial de Rali virou um festival de japoneses campeões: Celica, Impreza WRX, e Lancer Evolution e até o Corolla levaram canecos a suas equipes de fábrica.

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Acontece que o WRC mudou bastante ao longo daquelas quase três décadas — saindo dos esportivos modificados dos anos 1970; passando pelos montros de motor central-traseiro do Grupo B e especiais de homologação do Grupo A nos anos 1980; até chegar aos World Rally Cars, que eram baseados em carros de produção mas não exigiam que fossem fabricadas unidades para uso nas ruas, no fim dos anos 1990 — e permanecem assim até hoje.

Foi exatamente nesta época que a Peugeot decidiu que era hora de sair da hibernação e mostrar ao WRC que ainda tinha fôlego. Naturalmente, o carro escolhido foi o carro que veio logo depois do 205 na linhagem da marca: o 206 que, seguindo os passos de seu antecessor, era leve, ágil e excelente para vencer estágios de rali. Hoje, vamos contar sua história.

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Em 1999 o Peugeot 206 ainda era novidade — e das grandes. Você deve lembrar que seu estilo inovador, com faróis alongados e inclinados como os olhos de um gato, linhas dinâmicas e curvas arrojadas, era um dos seus principais chamarizes. As propagandas da época não nos deixam mentir:

Um verdadeiro clássico entre os reclames automotivos

O fato é que, apesar de ser vendido como um carro fashion e estiloso, o 206 era um sucessor à altura do 205 e uma base bastante sólida para um carro de rali. Não o fosse, não teria conseguido três títulos de pilotos entre 2000 e 2002, e outros dois títulos no mundial de construtores. Como foi que ele fez isto?

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O 206 tinha tudo o que um bom World Rally Car tem até hoje: tamanho compacto, peso relativamente baixo e tração dianteira com motor transversal, que era adaptada em um sistema de tração integral com relativa facilidade — levando em conta todos os recursos dos quais dispõe uma boa equipe de fábrica com vastos recursos humanos e financeiros, como a Peugeot.

Em 12 anos longe do WRC, a Peugeot teve tempo para observar a concorrência e descobrir o que um campeão do WRC deveria ter; em 1999, tinha muito a ver com eletrônica —  do módulo de controle do motor ao diferencial —, mas definitivamente não era só isso.  Até por que, apesar do 206 ser um dos carros compactos mais modernos da época, com uma plataforma totalmente nova e visual que permaneceria relativamente atual vários anos depois, a Peugeot olhou para o passado na hora de transformá-lo em um vencedor nos ralis.

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Como ditavam as regras do WRC, o 206 de competição era baseado no modelo de rua — os modelos de homologação não eram mais exigidos, mas o carro deveria ter uma versão de produção com as características básicas de acordo com o regulamento, que exigiam comprimento mínimo de quatro metros. Como o 206 tinha apenas 3,83 m, a Peugeot lançou o modelo 206 GT (também conhecido como GT WRC) com para-choques mais pronunciados na dianteira e na traseira, bem semelhantes aos que seriam usados no modelo de rali. Com os sete centímetros a mais, o 206 GT foi aceito como base do carro de corridas.

A transformação, contudo, não se limitou aos para-choques bicudos. Os para-lamas originais foram substituídos por peças mais largas e o capô trazia respiros e dutos NACA. A suspensão, originalmente com eixo de torção na traseira, passou a usar torres McPherson nos quatro cantos, todos com braços triangulares inferiores.

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Outra mudança era o motor, que não tinha uma versão equivalente no carro de rua. Em vez disso, usava exatamente o mesmo bloco de seu antecessor do Grupo B, cujo motor de 1,8 litro equipado com turbocompressor e conhecido como XU9J4 entregava até 500 cv (declarados, pois a potência real chegava perto dos 700 cv).

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Logicamente um motor insano do Grupo B precisaria de algumas modificações para se adequar ao novo regulamento. A cilindrada foi aumentada aumentando o curso para 88 mm e o diâmetro para 85 mm, resultando exatamente em 1.997 cm³ — logo abaixo do limite de 2.000 cm³. Do Grupo B restou apenas o comando duplo no cabeçote, as quatro válvulas por cilindro e os tuchos hidráulicos. Com a ajuda de um turbocompressor Garrett T30R e uma central Magneti Marelli, a potência era de 300 cv, o máximo estabelecido pelo regulamento, a 5.250 rpm, enquanto o torque era de 64,8 mkgf de torque já às 4.000 rpm.

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O 2.0 turbo trabalhava acoplado a uma caixa sequencial de cinco marchas desenvolvida pela própria Peugeot em parceria com a X-Trac. A potência era levada para as quatro rodas através de um diferencial central eletrônico que, como já era de praxe entre os carros de rali na época, dividia o torque entre os eixos dianteiro e traseiro na proporção 50-50, mas podia variar de acordo com as condições do piso.

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Conceito do Peugeot 206 WRC, apresentado no Salão de Paris de 1998

A estreia do 206 WRC aconteceu ainda em 1999 — ano em que, como sabemos, o campeão foi o Toyota Corolla. De qualquer forma, o 206 conseguiu um segundo lugar no Rallye Sanremo, na Itália. Coincidência ou não, foi nesta etapa que o 206 estreou o diferencial dianteiro eletro-hidráulico no lugar do antigo diferencial mecânico, o que pode tê-lo ajudado a ganhar alguns segundos de vantagem com Gilles Panizzi ao volante.

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No ano seguinte aconteceria a consagração — rápido assim, mesmo. Os pilotos da equipe francesa eram dois franceses e dois finlandeses: Panizzi, François Delacour, Sebastian Lindholm e Markus Grönholm, e foi este último quem levou a Peugeot a ficar com os títulos de pilotos e construtores em 2000, vencendo seis das 14 etapas disputadas com direito a dobradinha em duas delas — o Tour de Corse, em casa, e Sanremo. Logo atrás ficaram Colin McRae e sua equipe, a Ford, cujo Focus alcançaria a glória poucos anos depois.

Até 2002, não houve carro melhor que o 206 WRC — quer dizer, se em 2001 a Subaru não tivesse ensaiado uma volta por cima com Richard Burns e seu primeiro e único título de pilotos. A Peugeot, contudo, ainda ficou com o título de construtores, novamente com seis vitórias.

Contudo, nenhum ano seria como 2002: nada menos que oito das 14 etapas foram vencidas pelo compacto francês, que ainda recebeu a ajuda do próprio Burns, vindo da Subaru. O destaque ficou por conta do Tour de Course, cujo pódio foi dominado pela Peugeot — Panizzi, Grönholm e Burns foram primeiro, segundo e terceiro, respectivamente.

Onboard com Richard Burns na Espanha

O desempenho matador do 206 — que naquele ano recebeu um sistema eletrônico de barras estabilizadoras auto ajustáveis — garantiu 165 pontos para a Peugeot, que massacrou a Ford e seus 104 pontos. Grönholm, novamente campeão entre os pilotos, acumulou 77 pontos, ou 40 a mais que o vice Petter Solberg, da Subaru.

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Foi uma carreira meteórica, a do 206 no Mundial de Rali. No ano seguinte, um de seus companheiros de estábulo, o Citroën Xsara, seria campeão com a ajuda daquele que estava destinado a se tornar o maior campeão de todos os tempos na história do WRC: Sébastien Loeb. Mas calma, a gente já chega lá.