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Técnica

Os segredos do desempenho absurdo do Nissan GT-R – parte final

No post anterior desta série, vocês viram a evolução espantosa do desempenho do Nissan GT-R ao longo de pouco mais de seis anos – e também testemunharam que o engenheiro-chefe do projeto, Kazutoshi Mizuno, foi malandro como os chefes de equipe de antigamente ao “revelar” para a turma do Piston Heads os segredos do sucesso do Godzilla. Na verdade, sua retórica transformou um dos únicos defeitos do carro (o peso) no grande trunfo do superesportivo, fundindo as noções de massa e peso e transformando tudo em downforce. Agora é hora de entendermos o que realmente está por trás do desempenho espantoso do Nissan GTR.

Aqui temos três fatores em ordem crescente de importância que contribuem para o seu desempenho notável. O último mostra algo que não é muito comentado por aí. É o que Kazutoshi Mizuno disfarçou com a noção mais básica dos mágicos: desviar a atenção do olhar do público para onde ela realmente ocorre.

 

1) Torque mais tração integral mais transeixo

Potência vende carros, torque vence corridas. É curioso como esta frase, associada a Enzo Ferrari, representa tudo menos a própria marca do comendador. O V8 aspirado da Ferrari 458 Italia, por exemplo, rende 55 mkgf de torque a estratosféricos 6.000 rpm – os 64 mkgf do V6 biturbo do GT-R aparecem já aos 3.200 rpm. Em saídas de curva, ter este punch é fundamental. Ainda mais quando você se lembra de que a Ferrari só traciona nas rodas traseiras e o Nissan tem tração integral. Falaremos mais sobre isso adiante – o grande segredo do GT-R não está só na tração nas quatro, mas sim em como esta força efetivamente é aplicada aos pneus.

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Você tem visto por aí o torque absurdo dos motores downsized quatro cilindros em linha turbinados em carros como BMW 118i, o novo Golf GTI ou o Mercedes-Benz Classe A: todos estes possuem torque digno de um V6 aspirado – e disponível em rotações baixíssimas. O mundo dos supercarros não investiu de forma plena nos turbos ainda porque eles adicionam bastante massa ao conjunto – e quem foi nesta direção o empregou em motores longos, como o V8 com compressor mecânico do Corvette ZR1 ou o V8 biturbo do McLaren MP4-12C. Você pode falar sobre o boxer biturbo do Porsche 911 Turbo e GT2, mas aí chegamos ao parágrafo abaixo.

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Por que o GT-R usa o V6? Para ter o máximo de equilíbrio de massas entre os eixos dianteiro e traseiro: sua distribuição de peso é 53-47, respectivamente. O V6 é o motor de alto desempenho mais curto que existe: são apenas três cilindros por bancada, o que balanceia a massa extra dos turbos. É a contraparte perfeita do transeixo traseiro GR6 Z30A (que tem a caixa de transferência integrada), resultando em massas compactas e posicionadas de forma ideal: tudo entre os eixos (ou seja, o motor para trás do eixo dianteiro, o transeixo para a frente do traseiro – veja a foto acima).

Isso é especialmente importante para o GT-R porque ele traciona nas quatro rodas (o complemento perfeito para tanto torque) e porque é pesado – o momento de inércia precisa ser mais baixo para compensar a desvantagem da massa.

Um rápido comentário sobre a transmissão do Nissan: é o conjunto mais agressivo que eu já pilotei. A forma como a embreagem acopla quando você usa o controle de largada e as trocas de marcha subsequentes provam que o GT-R não se preserva da auto-mutilação para te entregar o máximo que ele pode oferecer – é seco, violento, brutal. É por isso que consta no guia de manutenção do Godzilla a troca de todos os fluidos de transmissão (câmbio e diferencial) a cada 5.000 km – para se ter uma ideia, os Porsche 911 da atual geração fazem esta troca com 120 mil km!

 

2) Pneus e aerodinâmica

Desenvolver um superesportivo com o fabricante de pneus é um dos passos fundamentais nos top runners – e a Nissan fez a lição de casa com primor. Os Dunlop SP Sport Maxx GT 600 foram desenvolvidos especialmente para o GT-R – composto, desenho da banda de rodagem, estrutura da carcaça, tudo foi projetado em conjunto com a Nissan, no meio de todos aqueles testes em Nürburgring Nordschleife. Note que, com exceção dos três canais para escoamento de água (deslocados para o lado de dentro, deixando o lado externo do pneu com área de contato maior), todas as ranhuras são extremamente rasas e riscam apenas parcialmente o bloco da banda de rodagem, formando assim anéis inteiriços, o que reduz muito a torção dos blocos da banda nas curvas. É uma solução parecida com a dos Michelin Sport Cup 2.

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As medidas dos pneus são 255/40 R20 (dianteira) e 285/35 R20 (traseira). As rodas grandes não são só para possibilitar o uso de discos de freio gigantescos (390 mm na frente, 381 mm atrás): com maior diâmetro, os pneus possuem uma área de contato com o asfalto mais comprida, o que faz a diferença em largadas e no tracionamento em saídas de curva.

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A aerodinâmica também esconde muitos segredos do Godzilla – alguns leigos, apaixonados e jornalistas especializados tendem a ignorar este fator no GT-R, talvez por sua carroceria do tipo cupê, que o faz remeter a algo de fora do universo dos supercarros. Mas alguns números circulam por aí: a 300 km/h, a primeira versão do GT-R gerava 140,16 kg de downforce na dianteira, o aerofólio traseiro gerava 99,7 kg e o difusor aerodinâmico, 49,8 kg – resultando em quase 300 kg. São números similares aos da Ferrari 458 Italia, que gera 360 kg a 320 km/h.

Mizuno não comentou nada disso. E nem deveria. Automobilismo sempre foi e sempre será assim.

Não bastando todo esse downforce, seu coeficiente de arrasto é de apenas 0,27 – o da Ferrari é de 0,33. Isso diminui os requerimentos de potência em alta velocidade – e é aí que começamos a entender porque o Nissan faz este estrago desproporcional em relação à sua ficha técnica. Junte isso com todo o torque do V6 biturbo nas saídas das curvas, combinado à tração integral. Hum…

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Mais um detalhe tenebroso: na época dos dados acima, o GT-R completava Nordschleife em 7:38,5. De lá para cá, o Nissan ficou mais potente, mais leve, recebeu melhorias na suspensão e nos freios, novos difusores e componentes aerodinâmicos e o tempo baixou 19,4 s. Imagine o quanto de downforce que ele gera hoje. Tentei tirar a resposta destes números lá no evento da Califórnia, mas fui respondido com um sorriso sem risada. Em japonês, isso quer dizer “não vai rolar, brôu”.

Tenha a certeza de que aí está a resposta para o grosso de sua aderência em curvas de alta, mesmo com os mais de 1.700 kg na balança. Afinal, peso é massa x aceleração – se a aceleração lateral do automóvel passa de 1 g, a inércia efetivamente está arremessando o carro para fora da curva. Apenas o downforce aerodinâmico, exclusivamente vertical (se mantido o ângulo de ataque correto – Mercedes-Benz CLR manda lembranças), é capaz de pregar o veículo no chão em altas velocidades.

 

3) Diferenciais e programação

Tudo isso eu poderia ter escrito sem tirar a bunda da cadeira. Sem nunca ter pilotado um Nissan GT-R – como os que dizem que este carro é sem graça e que faz tudo sozinho pelo piloto. Porque eu não conheço um único sujeito que realmente esteve a bordo do Godzilla numa pista e que não saiu completamente eletrificado. E eu estava para ser um deles.

Naquela tarde insanamente ensolarada na Califórnia, entrei no GT-R com apenas um propósito: buscar compreender como ele pode ser tão rápido. Com isso em mente, estava com todos os meus sentidos trincando de atentos. Imaginava que pudesse ser algo sutil. Mas, pra ser honesto, senti dois sintomas sendo arremessados na minha cara em todas as curvas – principalmente nas mais agressivas. E apenas um outro carro tinha me passado estas reações: o Mercedes-Benz SLS elétrico. Vocês já vão entender.

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Nas entradas, o Nissan era tragado para dentro da curva. Isso soa como aqueles clichês jornalísticos usados em toda matéria de Porsche, Ferrari e afins – “nas curvas, ele se comporta como se estivesse sobre trilhos” ou “aponta como um kart” -, mas o que quero dizer é que havia um torque de rotação anormal, que só poderia ser produzido por diferença de rotação entre as rodas. Como nas entradas de curva você não está acelerando e o powertrain não pode gerar torque negativo de forma independente nas quatro rodas (tire o SLS elétrico desta equação), isso só pode ser induzido pelo sistema de freios. Numa curva à esquerda, uma pinçada sutil na roda traseira esquerda produz um torque de rotação, que gira o carro para dentro da curva.

Sim, é exatamente o mesmo princípio do controle de estabilidade. A grande diferença, meu caro, é a forma como isso foi programado. Mesmo em superesportivos, a maior parte destes sistemas é reativo – as pinças só vão atuar desta forma quando os sensores e acelerômetros do ESP detectam perda de aderência, ou seja, quando você está fazendo cagada. No GT-R, o sistema transmite um feedback ativo, reagindo diretamente aos dados fornecidos pelo sensor da caixa de direção, acelerômetros, sensores de rotação das rodas e do acelerador e dos freios antes da perda de aderência. Ou seja, faz parte do fine tuning do conjunto – está integrado ao pacote dinâmico.

Na prática, o resultado é um ritmo de tocada diferente. Você não espera o carro apoiar nas suspensões do lado de fora da curva – ele simplesmente é puxado neste meio tempo.

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Essencial neste trabalho são os diferenciais, no sistema batizado ATTESA E-TS (Advanced Total Traction Engineering System for All-Terrain with Electronic Torque Split). O diferencial dianteiro do GT-R faz trabalho apenas complementar (o traseiro recebe de 50% a 98% do torque), e por isso ele é 100% aberto, sem bloqueio. É importante ser assim, pois se reduz o sub-esterço nas saídas de curva – pela mesma razão, quando o motor não está aplicando torque, o diferencial dianteiro é praticamente desativado, facilitando as entradas. O traseiro é um autoblocante multidiscos, que ainda recebe bloqueio complementar de forma eletrônica, induzido pelos freios de forma independente (como no McLaren MP4-12C).

O torque é transmitido às rodas dianteiras por um sistema de embreagens de acionamento eletroidráulico, com pressão de quase 300 psi – o resultado são transições suaves e feitas em poucos milissegundos, monitoradas mais de 1.000 vezes por segundo pelos sensores da transmissão. Vale lembrar que as árvores de transmissão do GT-R são de fibra de carbono (imagem abaixo), reduzindo a inércia e, assim, aumenta-se a velocidade de resposta.

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Todo diferencial autoblocante possui uma carga de bloqueio sob aceleração (power) e outra sem aceleração (coast). O tradicional em esportivos é você ter algum bloqueio (em torno de 20%) de power e muito bloqueio em coasting (o dobro ou mais) – quanto mais bloqueio, maior a tendência do carro seguir reto, pois cria resistência à diferença de velocidade entre as rodas. Por isso que o bloqueio em coasting geralmente é maior: o carro freia mais reto, fica mais seguro. Mas fica mais teimoso nas entradas de curva. Toma lá, dá cá.

Só que a impressão é que o GT-R trabalha com menos bloqueio de coasting do que os demais. Isso deixa o carro mais livre nas entradas de curva – a estabilidade direcional nas freadas é garantida pelo trabalho independente nas pinças via ESP, que ainda faz o “extra” de ajudar o Nissan a apontar de forma mais ativa nas curvas.

O segundo sintoma que senti na pista estava nas saídas de curva mais agressivas: o ângulo relativo do carro em relação à pista era sempre o mesmo. Ele estava sempre apontando um pouco para dentro, com levíssimo sobre-esterço. Nem mais, nem menos. Sempre o mesmo ângulo. Novamente, os diferenciais estavam trabalhando com os freios para causar um torque de rotação que deixava o carro no ângulo mais adequado para o tracionamento – quase como os motores de um foguete. Vetor de torque, lembra?

Curiosidade que reforça tudo isso: o módulo que controla o ABS fica no diferencial ATTESA E-TS. Mais ainda: sua central de processamento possui um acelerômetro de três eixos. O sistema de diferenciais está ligado à dinâmica de todo o carro não nos galhos nem no tronco – está direto na raiz.

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Com estes dois sistemas – os freios independentes e os diferenciais – trabalhando juntos, você cria dois torques de rotação: o primeiro mais na entrada, o segundo, na saída das curvas. Se um dia você tiver a chance de experimentar o GT-R em um autódromo, preste muita atenção em como a coisa é diferente. O Nissan é muito veloz porque seu pacote é incrível. Mas a cereja do bolo está neste parágrafo.

Meu erro foi ser direto demais na abordagem. Quando saí do GT-R, fui atrás do chefe dos engenheiros que estava cuidando do Nissan de GT3. Elogiei uma série de coisas no carro, falamos sobre suspensão, sobre pneus, e então eu lancei: “… e você poderia me falar sobre o torque vectoring produzido pelos diferenciais em conjunto com as pinças de freio?”. Deu tela azul no japa, sua expressão mudou. Não que ninguém nunca tenha falado sobre isso, imagino, mas ficou escancarado o desconforto. Logo depois ele me responderia com um sorriso sobre a aerodinâmica – mas aí já tinha perdido o sujeito.

Se um dia você tiver a chance de pilotar um Nissan GT-R, leia este texto (não esqueça da parte anterior) na véspera. Acelere sem dó, resista à adrenalina, deixe seu cérebro ativo e sentidos afiados, e depois me diga se você sentiu algo do que falei nesta reportagem!