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Project Cars Project Cars #76

Project Cars #76: a compra e o começo da relação de Rodrigo Almeida e seu Puma GTS

Deu certo trabalho ir buscar a GTS. No dia combinado, a documentação ainda não estava pronta. Era noite e dada a primeira impressão durante o test-drive, julguei prudente levar um colega de trabalho como escolta para me auxiliar com eventualidades.

A Puma estava lavada e um pouco melhor apresentável que durante nosso primeiro contato. A vontade de levá-la para casa era tanta que decidi arriscar rodar alguns quilômetros apesar do licenciamento irregular. O Lisandro, minha escolta que deve estar lendo esse relato, conhecia um atalho “tranquilo e menos fiscalizado”. Semanas depois eu receberia três multas por ter cruzado por três radares infravermelhos de IPVA ao longo de sete quilômetros.

Paramos lado a lado em um semáforo que ficou sugestivamente vermelho. Com a primeira marcha engatada e ao sinal verde tirei o pé da embreagem descobrindo que as travas da capota não haviam sido presas corretamente. Em uma fração de segundo a capota se soltou do para-brisa e presa à armação passou por cima da minha cabeça mais rápido que notícia ruim. Acabou parando no compartimento atrás dos bancos, mas minha expressão pálida a la Família Adams agora era irreversível. Ainda assustado, olho para o carro do lado e vejo minha preocupada escolta abraçada ao volante, babando de tanto rir.

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Parei em um posto de combustíveis e não sabíamos quantos litros abastecer. O marcador não funcionava e eu sequer acreditava que havia qualquer bóia lá dentro. O gatilho da pistola não desarmava no tanque horizontal e no escuro exigíamos atenção redobrada do frentista. Com receio de transbordar, preferi colocar poucos litros de gasolina. O resto do caminho seria um martírio diante do medo de pane seca.

Nossa aptidão com o carro era tanta que nem com a ajuda de transeuntes achávamos a posição da ré. Tivemos de empurrar o carro para trás sob o olhar curioso de outros clientes. Manobrei de volta para estrada e extremamente tenso cheguei ao meu prédio sem maiores incidentes.

Chegara o momento da verdade. Eu sabia que meus pais me deserdariam, mas era o momento do meu derradeiro ato de rebeldia fincando a bandeira da maioridade e independência. Era agora ou nunca. Minha mãe fez uma cara de espanto que logo foi substituída por uma expressão intrigada. Perguntou se era isso que eu tinha comprado e diante da minha afirmativa surpreendentemente respondeu “que bonitinho, parece de brinquedo”.

Embora aliviado eu sabia que o problema seria realmente meu pai. Tradicional, não expressou absolutamente nada. Inerte, aguardou intermináveis vinte segundos para abrir a boca: “Sobe e traz minha caixa de ferramentas”.

Foi a primeira vez que nos debruçamos juntos sobre o boxer. Ele me mostrou onde ficava o distribuidor, como ao rotacioná-lo no próprio eixo se regulava o ponto e me indicou o que era aquilo embaixo do filtro de ar, um Solex H 30 Pic. Na manhã seguinte meu pai desmontou todo o carburador, mostrou onde ficava a bóia de nível, diafragma, giclê de ar, bengala e como acertar a mistura através dos parafusos. Me ensinou que para validar o resultado bastava encostar uma folha de papel na ponteira do escapamento. Caso os deslocamentos da folha provocados pelo ar estivessem uniformes, os quatro cilindros estariam queimando em sincronismo. Caso entre dois ou três deslocamentos a folha fosse abruptamente sugada pelo escape, um dos cilindros estaria com seus tempos de explosão e exaustão irregulares. O pai também me obrigou a aproximar meu olho da ponteira. Se ardesse, era mistura rica e o parafuso precisava retroceder um quarto de volta.

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Após a regulagem do carburador o motor melhorou bastante. Optei por uma mistura mais pobre para diminuir os pipocos VW que antes saíam pelo escapamento furado. Ainda era barulhento, mas eu já não era mais aquele cometa ambulante. Levei a GTS para o balanceamento e geometria. Ninguém sabia de que carro tirar a referência, pois não havia Puma GTS no sistema. Na época, usamos erroneamente os valores da Brasília. Apesar de incorreto, ficou muito bom.

Para quem dirigia um automóvel de 1978 como primeiro carro, as referências eram diferentes. A famosa folga no setor de direção não incomodava já que eu ainda não sonhava em descobrir a caixa elétrica com a relação direta do Civic Si. A Puma não me assustava mais e iniciei uma procissão de oficina em oficina. Inicialmente, eu era roubado por todo mundo ao perguntar por peças de Puma. Quando descobri com quem a GTS compartilhava suas intimidades e passei a perguntar por componentes de Fusca, Corcel e Brasília os valores despencaram. Seque o incentivo aqui para os antigomobilistas de primeira viagem: não há mecânica mais barata e fácil de manter que Volkswagen aircooled.

Motor revisado...

A GTS nunca, em nenhum momento, me deu moleza. Num dia quebrava uma maçaneta de porta, na outra o mecanismo de manivela dos vidros. Sempre havia uma coisa desmontando aqui, outra estragando ali. Mas não na mecânica. O Boxer 1600 e seu solequinho funcionavam inabaláveis como um relógio.

A exceção chegou veio em um domingo de sol. Em meio ao trânsito senti o motor engasgando sem parar. Tentei levá-la para o acostamento, sem sucesso. Parei no meio do tráfego. Inacreditavelmente ninguém buzinou ou reclamou. Apreciavam a cena com um misto de pena e nostalgia na expressão. Liguei para meu pai que apareceu logo em seguida. Pediu meu canivete suíço aposentado e com a ferramenta de abrir latas desaparafusamos a tampa e desmontamos o carburador. O pai colocou a palma da mão sobre a cuba tampando as entradas de ar que imediatamente sugaram a pele. Ao puxar a mão forçando vácuo, ouvi o característico barulho de ar sugando sólidos e vi sujeira se desprendendo após misteriosamente ter passado pelo filtro de combustível. Meu tanque de combustível com 30 anos de idade começava a se deteriorar.

Apesar do susto eu estava cada vez mais íntimo da pequena conversível. Durante um ano usei o carro no dia-a-dia. Ia para a faculdade sem capota saboreando o sol, apreciava o vento no rosto depois dos 100 km/h e estacionava rápido quando sentia pingos de chuva.

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Há fatos curiosos sobre conversíveis antigos. No inverno é muito frio para tomar vento no rosto. No verão é muito quente para andar embaixo da lona sem ar condicionado. Dois homens em um conversível são observados com desconfiança. Um homem com uma mulher em um conversível atrai comentários que relacionam o tipo de carro com a presença de uma mulher no banco do carona. Um homem sozinho em um conversível atrai comentários relacionados à inabilidade do sujeito em colocar uma mulher no banco do carona. Nos semáforos todos os pedintes focam no conversível e surge preocupação em relação aos pertences soltos atrás dos bancos. Estacionados na rua, conversíveis sempre despertam atenção de gatunos atraídos pela facilidade infantil de abri-lo com os braços por entre as frestas da capota.

Absolutamente nada disso me desanimou. Mesmo com pressão de familiares “racionais”, nunca cogitei comprar um carro normal. Eu adorava a GTS. Em manhãs de chuva eu ignorava completamente a goteira sobre o joelho esquerdo e saía para satisfazer as vontades de meus serelepes pneus traseiros. Visualizem Jeremy Clarkson no teste do R8 quando surge o 911 na pista molhada. A Puma GTS 1978 com todos seus componentes mecânicos subdimensionados para uma condução realmente esportiva era o unicórnio que mencionei no primeiro texto.

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Como todo ciclo tem um fim, contudo, a brincadeira começou a perder a graça. Certo dia dirigia em pista encharcada debaixo de muita água. Pisei forte no freio para desespero dos pneus originais. Os 670 quilos do carro eram uma pluma para os discos dianteiros que travavam as rodas com a menor pressão no pedal do meio. Não bati em ninguém, mas o carro passou reto do ponto de frenagem me provocando um choque de realidade. Segurança é prioridade independente da idade e propósito de um automóvel.

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Imediatamente mandei refazer todo o sistema de freios e encomendei do Japão um par de Toyo Proxes 4 195/60 R14 e um par de Toyo TPT 205/70 R14. O que era para ser um upgrade acabou se transformando em uma injeção de anestesia. O grip absurdo e poder de parada completamente desproporcionais ao resto do conjunto decretaram o fim de uma de minhas mais prazerosas eras automotivas. As limitações da minha mecânica se tornaram escancaradamente evidentes.

Após um ano de Daily Drive conversível e muita diversão, surgia enfim o pano para manga. Era chegada a hora de procurar os HPs e finalmente pensar em um Project Car de verdade.

Por Rodrigo Almeida, Project Cars #76

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