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Car Culture

Quando um “Rolls-Royce” chamado Jules correu no Rali Paris-Dakar para vencer uma aposta

Primeiro grande evento do ano, o Rali Dakar está acontecendo neste exato momento pelas paisagens desérticas da América do Sul. Porém, como como você já deve saber, durante boa parte de sua história de quase quatro décadas a competição era disputada na Europa e na África — e é desnecessário dizer que muita coisa já aconteceu nas areias quentes do outro lado do oceano. Como na edição de 1981, quando um Rolls-Royce foi um dos únicos a percorrer todo o trajeto entre Paris, na França, e Dakar, no Senegal. Sim, um Rolls-Royce chamado Jules.

Até quem não entende muito de carros associa imediatamente a Rolls-Royce a carros de alto luxo — seja no início do século passado, com modelos como o Silver Ghost, ou nos anos mais recentes, já sob a asa da BMW, que fornece a plataforma de seu Série 7 como base para verdadeiras barcas de luxo, como o Phantom, o Ghost e o Wraith — este último, o mais potente Rolls-Royce da história, com seu V12 biturbo de 6,6 litros e 632 cv.

Na década de 1980, porém, a Rolls-Royce dividia carrocerias, motores e recursos materiais e financeiros com a Bentley. Um de seus modelos era o Corniche, um cupê de duas portas (também disponível como conversível) que tinha um motor V8 de 6,75 litros e foi fabricado praticamente sem alterações significativas por 24 anos, de 1971 a 1995. O motor do Corniche, chamado L410, foi apresentado em 1959 e, acredite se quiser, é utilizado até hoje pela Bentley no Mulsanne em uma versão altamente modificada chamada L410HT, com dois turbos e 512 cv — quase o triplo da potência original, que nunca foi divulgada oficialmente.

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Nosso ponto é que o Corniche era um carro de luxo equipado com um motor V8 de 6,75 litros e câmbio automático de três marchas. Não era exatamente a configuração ideal para disputar um rali do calibre do Paris-Dakar.

Contudo, foi exatamente isto que o experiente piloto francês Thierry de Montcorgé fez depois de um jantar com os amigos no fim de 1980: eles apostaram que ele não conseguiria chegar ao fim do Paris-Dakar ao volante de um Rolls-Royce.

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Montcorgé já tinha experiência neste tipo de corrida, com participações no Rali Bandama, na Costa do Marfim; e no Rali Nice-Abidjan que, obviamente, acontecia entre as cidades de Nice, na França, e Abidjan, a capital econômica da Costa do Marfim. Sendo assim, certamente ninguém duvidava que o francês fosse capaz de cruzar os quase dez mil km de distância que separavam Paris de Dakar com um carro feito especialmente para tal aventura. Mas um Rolls-Royce?

Obviamente Montcorgé aceitou o desafio. Dizem que o nível de álcool em seu sangue naquela noite contribuiu para tal, mas isto é só um detalhe: o que importa é que ele, de fato, conseguiu um Rolls-Royce e o preparou para enfrentar o árido deserto africano.

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Com a ajuda do engenheiro Michel Mokrycki, Montcorgé conseguiu finalizar o carro em cerca de dois meses, bem a tempo da partida no dia 1º de janeiro de 1981. Mockrycki decidiu que o chassi original do Rolls-Royce não era adequado para as condições hostis do deserto e, por isso, ele e seu companheiro de projeto desenvolveram um chassi tubular do zero. Sobre ele, foi instalada uma réplica em poliéster feita usando a original como molde (com portas, capô e tampa do porta-malas em alumínio). Por dentro, o painel e alguns detalhes de acabamento foram mantidos.

O conjunto de motor e câmbio também foi trocado: em vez do V8 de 6,75 original acoplado à transmissão automática de três marchas de origem Chevrolet, o carro agora tinha um V8 Chevy small block de 5,7 litros (350 pol³) e respeitáveis 355 cv — mais do que a maioria dos carros que competem hoje no Dakar. A transmissão original deu lugar a todo o conjunto do Toyota Land Cruiser, o que significa que o câmbio agora era manual de quatro marchas e a tração, integral.

Suspensão elevada e pneus off road completavam o pacote, bem como um gigantesco tanque de combustível com capacidade para nada menos que 330 litros. Com o tanque cheio, o Rolls-Royce pesava 1.400 kg  — acredite, um peso relativamente baixo para um carro totalmente equipado para enfrentar milhares de quilômetros no deserto em 1981.

E o nome do carro, “Jules”? Simples: o principal patrocinador do projeto era Christian Dior, que havia acabado de lançar no mercado a fragrância Jules. A marca foi escolhida para estampar a carroceria do Corniche e acabou batizando o carro.

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E como ele foi na corrida, afinal? Surpreendentemente bem, se querem saber: até cerca de metade da prova, que durou 17 dias, o Rolls-Royce de Thierry de Montcorgé se segurou na 13ª posição na classificação geral. Se mantido até o final este seria um excelente resultado, mas nem tudo acontece da forma como a gente prevê.

Em determinado momento, o Rolls-Royce sofreu uma quebra no sistema de direção — um reparo relativamente simples em condições normais, porém uma tragédia quando se está no meio do deserto. Thierry de Montocorgé e seu navegador, Jean-Christophe Pelletier, não desistiram de ganhar a aposta e tentaram consertar o carro. Eles conseguiram, mas a mão de obra tomou muito tempo e a dupla acabou oficialmente desclassificada.

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Extra-oficialmente, porém, não havia nada que impedisse os dois de seguir seu caminho. E foi exatamente o que fizeram — e assim, no dia 17 de janeiro de 1981, o Rolls-Royce Corniche “Jules” se tornou um dos 40 carros a cruzar a linha de chegada em Dakar, dos 170 carros inscritos. Mesmo fora da lista de participantes, não havia como não considerar aquilo tudo como uma vitória.

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Depois do rali de 1981, Jules jamais foi colocado para correr de novo. Em 2012 o carro apareceu à venda por € 200 mil no site CarClassic.com, mas não se sabe se ele já foi vendido. O anúncio está no ar até hoje.

Montcorgé, por outro lado, se aventurou pelo Dakar novamente três anos depois — dessa vez, com um protótipo de seis rodas chamado Jules II. Mas esta história vai ter que ficar para outro dia…