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Tafheet, ou Hajwalah: o perigoso mundo do drift ilegal na Arábia Saudita

Você já deve ter se deparado, na Internet e nas redes sociais, com vídeos de caras fazendo “drift” em vias públicas do Oriente Médio. Geralmente os carros são sedãs grandes e relativamente caros, mas às vezes SUVs de luxo, pick-ups e alguns carros esportivos também podem ser vistos. Os caras dirigem de forma extremamente perigosa, provocando saídas de traseira em alta velocidade e às vezes causando acidentes bem feios. É o tafheet, também conhecido como hajwalah, e seu auge de exposição na internet aconteceu mais ou menos em 2014. Lembra?

Definitivamente não é o tipo de comportamento ao volante que a gente estimula no FlatOut, é óbvio. Mas é impossível não ficar impressionado com a ousadia (ou falta de responsabilidade) dos caras – e não faltam vídeos no Youtube, o que torna possível passar horas e horas assistindo às manobras arriscadíssimas que eles fazem. Mas… de onde veio a ideia, e como os caras conseguem promover este espetáculo bizarro sem se encrencar com as autoridades? Vamos procurar as respostas neste post.

 

Como surgiu?

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A barreira do idioma e a natureza ilegal do tafheet tornam difícil a tarefa de decifrar sua origem. Se procurar a respeito na Internet, você vai encontrar artigos em sites de notícias e na Wikipedia dizendo que a “cena” drifter da Arábia Saudita começou a se formar “no fim da década de 1970” – ou seja, sua origem foi paralela ao drift japonês. Mas esta é uma explicação extremamente vaga.

Vasculhando um pouco mais, encontramos algo mais concreto e convincente em um livro publicado em 2014 por Pascal Menoret, antropólogo da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que passou quatro anos investigando de perto o mundo do drift ilegal na Arábia Saudita. Em Joyriding in Riyadh: Oil, Urbanism and Road Revolt (sem edição em português), Menoret afirma que a prática do “drift” no país começou em Riyadh, a capital saudita.

Localizada no coração da Península Árabe, Riyadh era uma cidade de porte médio, com pequenos bairros espalhados por seu amplo território. Nos anos 50, porém, com o crescimento da economia vindo da exploração de petróleo, teve início um processo de crescimento que incluiu um projeto de expansão urbana, idealizado pelo recém-coroado rei (ou melhor, shah, ou xá) Saud bin Abdulaziz, que em 1950 começou a desenvolver o distrito residencial real de Annasriyyah, seguido por novos bairros planejados, sempre com rua retas e largas, com quadras dispostas como as casas de um tabuleiro de xadrez, conectadas ao centro da cidade por avenidas pavimentadas de alta velocidade.

O que deu-se a partir dali foi um período de acentuado crescimento populacional – entre 1974 e 1992, o aumento da população de Riyadh foi de, em média, 8,2% ao ano. Atualmente, mais de 6 milhões de pessoas vivem na capital da Arábia Saudita. “De repente, você tinha estradas mais largas e muito mais jovens de 18, 19, 21 anos com acesso a carros e espaço para praticar o que conheceríamos mais tarde como drift”, Menoret contou ao site El Arabiya em 2016.

Ao longo dos anos, a moda foi se espalhando para cidades e países vizinhos, mas a capital da Arábia Saudita permaneceu como o grande polo do drift ilegal. Mas por que apenas no século 21 a prática ficou conhecida mundialmente? É provável que por uma questão tecnológica: a internet como conhecemos hoje, onde se compartilha tudo o tempo todo para que o mundo inteiro veja instantaneamente, só começou a tomar esta forma na segunda metade da década passada.

 

Por que eles fazem isto?

Talvez (é preciso entrar no campo da probabilidade aqui, por falta de informações completas) as primeiras filmagens tenham sido feitas para que os jovens envolvidos no hajwalah queriam mostrar suas peripécias para os amigos – os primeiros vídeos publicados no Youtube nos anos 2000 tinham este propósito, porque naquela época as pessoas não tinham tanta noção da capacidade que o material postado na internet tem de se espalhar para todo o planeta.

Foi, então, questão de tempo até que o ocidente encontrasse as filmagens, que se espalharam rapidamente e ajudaram a tornar o “drift árabe” mundialmente famoso. Houve até um clipe da cantora M.I.A., Bad Girls, que foi filmado na Arábia Saudita e dá destaque ao tafheet.

Além do impulso natural de registrar e compartilhar seus feitos, o que leva os jovens árabes a ter este tipo de comportamento em vias públicas? Muitos dos que já falaram com a imprensa a respeito dizem que, além de não ser difícil ter carros potentes o bastante para o tafheet, um fator que contribuiu para a difusão do “drift árabe” é a falta de opções de entretenimento para os jovens, que acabam atraídos pela adrenalina das exibições ilegais ao volante.

Você deve ter reparado que estamos nos referindo ao “drift”, entre aspas. Isto porque, na verdade, o tafheet/hajwalah não é drift de verdade. Como explicamos neste post, há diferenças sutis aos olhos, mas enormes na parte técnica, entre o powerslide, o drift de fato e a derrapagem controlada. O drift realizado com um carro de tração traseira envolve retirar subitamente a aderência dos pneus traseiros, geralmente usando de mão hidráulico; preservar o momentum da derrapagem usando técnicas como o powerslide e dosando freios e acelerador; e muito contra-esterço para manter um ângulo de guinada muito agressivo.

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No caso do tafheet, o “piloto” de rua simplesmente puxa o freio de mão para fazer a traseira escorregar repetidas vezes, geralmente em velocidades acima dos 160 km/h. É comum fazê-lo no meio do trânsito, tirando finas dos outros carros e colocando em risco a integridade física de todos ao redor. No entanto, a maioria das filmagens acontece mesmo em trechos mais desertos das vias rápidas de Riyadh, com aglomerações de jovens em seus carros. Nestas ocasiões, existem algumas manobras que são vistas com mais frequência:

Ta’geed: rodar o caro 360°

Sefty: rodar o carro 360°, fazer um pequeno powerslide e depois virar para o lado oposto

Tatweef: ultrapassar um ou mais veículo andando de lado em alta velocidade

Axeyat: virar o carro em 180° de um lado para outro, completando um giro completo de 360°

Harakat Alamawt: um powerslide no qual o motorista precisa manter uma linha reta pelo maior tempo possível, até o carro parar por completo, sem acertar nada e sem fazer correções no volante.

Tanteel: fazer pelo menos quatro powerslides conectados a pelo menos 160 km/h. A partir daí, emenda-se com outras manobras, como Ta’geed, Sefty, Tatweef e Axeyat.

Alguns praticantes do hajwalah, porém, são ainda mais ousados e realizam manobras que não tem a ver com drift – como andar sobre apenas duas rodas, geralmente com um jipe ou pick-up, usando o volante e o acelerador para equilibrar o carro. Alguns chegam a trocar um dos pneus com o carro em movimento, como se pode ver no vídeo abaixo.

 

E como estes caras não são pegos?

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Se você foi um dos que acompanharam a onda de vídeos de hajwalah que inundou a internet nos últimos anos, deve ter percebido que eles não são mais postados com tanta frequência. Isto porque em meados de 2016 houve uma verdadeira ofensiva da polícia saudita para capturar os praticantes da exibições ilegais.

Como mostra este documentário realizado pela Vice Sports em 2016, o patrulhamento das vias foi aumentado de forma drástica, assim como a punição para quem for pego. No início, quem fosse flagrado dirigindo desta forma nas ruas passaria até cinco dias na prisão, e teria seu carro apreendido por um mês. Então, a pena foi aumentada para até dois anos de prisão, e os carros poderiam ser retidos para sempre. Além disso, existem punições corporais.

O caso mais notório foi o de um jovem de 23 anos conhecido como “King Al Nazeem”, um dos mais famosos adeptos do hajwalah. Ele aparecia em vídeos no Youtube não apenas dirigindo perigosamente pelas ruas, mas também atirando para cima com metralhadoras em plena luz do dia, com parte do corpo para fora de um carro andando em duas rodas – visão relativamente comum nos tempos “áureos” do drift árabe, aliás. Depois de provocar um acidente no qual dois de seus colegas perderam a vida, o rapaz foi detido, condenado a dez anos de prisão e 1.000 chibatadas nas costas. Além disso, ele perdeu o direito de dirigir para o resto de sua vida.

Punido de forma a “dar o exemplo”, de fato o Al Nazeem acabou contribuindo para que os casos de tafheet diminuíssem em Riyadh.

No mesmo documentário, porém, é mostrada outra forma de combater o drift ilegal: com competições regulamentadas de drift – de verdade, com carros de tração traseira, em locais fechados, com o aval das autoridades e participação de pilotos profissionais. A equipe Drif Force é uma das que se dedicam a “caçar talentos” nas ruas e colocá-los em competições legais, com instrutores profissionais encarregados de ensiná-los técnicas de verdade ao volante.

Ainda é possível encontrar vídeos recentes de tafheet/hajwalah no Youtube, mas a “moda” parece mesmo caminhar rumo ao ostracismo. O que definitivamente é uma coisa boa, por mais impressionantes que fossem os feitos dos praticantes.

Sugestão de Rodrigo Leite