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Técnica

Uma introdução técnica aos pneus: estrutura e dinâmica

É bastante comum que nas conversas entre entusiastas nos encontros de posto e dentro das oficinas, a maioria das discussões técnicas fique centrada nos motores dos carros, seja em aspectos mais genéricos, como curvas de torque e relação peso-potência, seja em detalhes de componentes, como comandos de válvulas, pistões e sistemas de admissão.

Quando se fala em dinâmica de carros, é muito comum ouvir gente idolatrando a tração traseira, difamando a tração dianteira, falando em understeer e oversteer em função do eixo motriz e a discussão vai acabando por aí. Até pela onda dos track days e eventos de drift, surgem tópicos como a rigidez das molas, pneus mais grudentos e freios maiores, mas tende a ser uma discussão mais superficial do que as sobre motores. Trabalhar a suspensão de um carro é uma arte um pouco desconhecida do senso comum.

Gonçalo Reis Bispo

Foto: Gonçalo Reis Bispo

Fazer com que seu carro tenha um bom comportamento em curvas não é necessariamente mais difícil do que fazer seu motor gerar mais potência. O que acontece é que não há informação tão difundida por aí, e o assunto por si só já é um pouco mais misterioso. Nesta pequena série, vamos jogar um pouco de luz técnica sobre este tema, começando pelos pneus.

Hilgram

Só andar em linha reta? Nah. Foto: Hilgram

Automóveis, em geral, têm duas funções básicas, duas coisas que devem fazer, não importa o preço que custem ou a aplicação para a qual foram desenvolvidos. Eles devem transportar pessoas e coisas, e também devem se comunicar com o condutor.

O condutor pisa no acelerador, o carro acelera. O condutor pisa no freio, o carro freia. O condutor vira o volante para a direita, o carro inicia uma curva para a direita. O carro deve sempre se comunicar com o condutor, respondendo às ações dele atrás do volante.

Peter Bromley

Foto: Peter Bromley

Imagino que todos já tenham percebido que um carro acelera, freia, vira pra um lado e vira pra outro, às vezes faz tudo isso ao mesmo tempo, e que alguns carros fazem curvas melhores que outros, alguns freiam e aceleram melhor do que outros. Por quê? Existem inúmeros aspectos a serem considerados nessa resposta. Muitos mesmo.

O que podemos adiantar é que a peça mais importante no quebra-cabeça que é a dinâmica de um carro é o pneu, sem dúvida.

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O que é mais importante? Mola? Amortecedor? Nope, pneu. Foto: Lamborghini

 

Um pouco da química dos borrachudos

Um veículo se move e se direciona por meio de reações com o solo. Automóveis, bicicletas, triciclos e veículos similares são considerados únicos na maneira em que essas reações são geradas e limitadas, pois estas reações ocorrem através da interação dos pneus com o solo. Grande parte dos assuntos relacionados à dinâmica veicular lida com características dos pneus, como a forma construtiva, compostos utilizados na banda de rodagem, entre outros. Pneus são feitos de diferentes compostos de borracha, que é um polímero, mais precisamente um elastômero.

O que significa o pneu ser composto de um elastômero? Significa que ele tem propriedades viscoelásticas. O que significa ele ter propriedades viscoelásticas? Significa que ele se deforma de um jeito e retorna ao seu formato original de outro, geralmente com um atraso no retorno à forma original.

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Gráfico: UTA

O gráfico da figura acima ilustra um material viscoelástico. O eixo vertical, Stress, representa a tensão (pode ser entendida como pressão, para facilitar) aplicada ao material e o eixo horizontal, Strain, representa a deformação que o material sofreu. A reta preta (Load) indica a aplicação da tensão, e quando se para de aplicar a tensão, o material retorna ao seu formato original pela curva azul (Unload).

Um exemplo mais cotidiano seria aquele travesseiro da NASA vendido por aí. Se alguém tiver um, é só deformá-lo e ver como ele demora um pouco para retornar ao formato original.
Beleza cidadão, o pneu se deforma de um jeito e volta ao normal de outro, e aí? Quando isso acontece o pneu dissipa parte dessa energia aplicada nele em forma de calor, num fenômeno chamado histerese. É daí que vem a maior parte da temperatura de um pneu, gerada de dentro para fora. Por isso quando se está na pista é importante checar as temperaturas dentro dos sulcos do pneu, não na superfície. É possível utilizar um termômetro tipo espeto ou agulha para medir dentro dos sulcos.

Supert Street Online

Medindo as temperaturas dos pneus. Foto: Super Street Online

Hoje em dia se fala bastante dos pneus com baixa resistência à rolagem. O que é isso? É um pneu que não perde tanta energia por histerese quanto os pneus projetados mais antigamente. Quando um pneu está parado, ele tem uma distribuição de pressão simétrica, porém, quando está rolando, devido à compressão dos sulcos até a linha de centro do pneu e devido à extensão a partir desta mesma linha, o pneu perde energia por histerese, o que acaba afetando a distribuição de pressão, causando um momento, também chamado de torque, contrário ao aplicado no pneu, daí o nome de resistência à rolagem.

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Gráfico: Gillespie

Outros dois fatores que afetam as propriedades viscoelásticas são temperatura e frequência dos ciclos de carregamento (compressão e distensão do pneu). Quanto maior a temperatura, mais fácil fica para as moléculas dos polímeros se reajeitarem, até que a temperatura acabe danificando a estrutura dessa cadeia de moléculas. Para a frequência é o oposto, quanto maior a frequência, mais rígido fica o material, ele perde elasticidade, não há tempo para as moléculas se reajeitarem.

 

Os deslizes

Um fator que geralmente causa confusão quando se fala de pneus é a questão do deslizamento. Sempre ocorre deformação e deslizamento dos pneus, é por causa dessa deformação e deslizamento que o pneu é capaz de gerar uma reação às forças impostas a ele. Imagine um elástico, daqueles de ficar jogando nos outros mesmo, quando você o estica é possível sentir ele se deformando e criando uma resistência a deformação, em alguns casos é possível sentir que ele vai se desprendendo conforme a força é aplicada.

Com o pneu acontece coisa semelhante, é necessário que o material viscoelástico se deforme para oferecer uma reação. O material do pneu se prende à superfície e é estirado, desliza, se prende de novo e é estirado de novo, é assim que se formam as reações do pneu no solo, e esse mecanismo de reação é o mesmo para todos os sentidos, aceleração em linha reta, curvas, frenagem e situações combinadas, como uma de curva e frenagem/aceleração.

Dave Wong

Asas, aletas e outros têm como uma de suas funções pressionar os pneus. Foto: Dave Wong

Mais para o final da área de contato (contact length, veja na ilustração de Gillespie, lá em cima), a curva de deslizamento relativo (relative slip) é maior, ou seja, nessa região há um deslizamento maior do que na região da frente da área de contato do pneu com o solo. Essa diferença ocorre por causa da compressão da parte dianteira da área de contato e da distensão da parte traseira. Na parte dianteira, onde há uma compressão, a força vertical é maior, obviamente, do que na parte traseira, e o material do pneu consegue se prender mais na superfície quando há uma força vertical maior sendo aplicada nele, gerando uma reação maior. Entende-se por parte dianteira da área de contato a parte em que o pneu toca o solo até a linha de centro do pneu, e traseira a parte da linha de centro até a parte em que o pneu deixa de tocar o solo. É por isso que as equipes de F1 estão sempre procurando por mais downforce, para poder utilizar mais esta característica do pneu.

Um contraexemplo neste caso seriam as rodas de um trem, feitas de ferro. Um trem necessita de trilhos pois o ferro não tem as características que a borracha tem. No vídeo abaixo é possível ver como a interação entre a roda do trem e o trilho se dá.

Voltando aos borrachudos, na imagem abaixo podemos observar um dispositivo para testes de pneus e um pneu sendo testado. Nesta situação a esteira está puxando o pneu para a esquerda da imagem, e podemos ver claramente que ele está deformado em relação à sua forma original.

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Pneu sendo deformado Foto: hendonpub

Notem que a roda está apontando para uma direção e o pneu para outra. A diferença entre a trajetória, o caminho que a roda seguiria, é diferente da trajetória que o pneu seguiria. Ao ângulo formado entre estas duas trajetórias distintas é dado o nome de ângulo de deriva (slip angle em inglês).

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Ilustração: Gillespie

Há também uma diferença de velocidade angular entre a roda e o pneu, o que causa uma razão ou relação de deslizamento (slip ratio em inglês). A roda gira mais rápido do que o pneu, podendo chegar até a deslizar dentro dele.

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A roda girando mais rápido do que o pneu. Foto: strangevehicles

Isso acontecia com o Camaro Z28 da geração passada nos testes de frenagem. No vídeo abaixo o pessoal da GM explica com mais detalhes e também mostram como eles resolveram o problema.

 

Alguns números

Bom, pneus precisam se deformar para gerar uma reação, mas qual a intensidade dessa reação? Quanto ele se deforma para gerá-la? Isso depende de vários fatores, perfil do pneu, tamanho da área de contato, composto do pneu, pressão interna, e varia de pneu para pneu, mas todos eles tem características similares.

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Gráfico: Milliken

A imagem acima ilustra uma curva de performance de um pneu, com o ângulo de deriva em função da força lateral, para uma força vertical aplicada, no caso 1800 lb, e 31 psi de pressão interna. Se mudarmos a força vertical aplicada, a curva muda, se mudarmos a pressão, a curva também muda. Do mesmo jeito que pode-se colocar em um gráfico a força lateral, pode-se colocar a força de frenagem, força de tração e outros parâmetros, como momento de auto-alinhamento (explicarei o que é isso em outro momento).

Analisando a curva, percebemos que há um ângulo de deriva, uma situação de deformação do pneu, que produz uma força lateral máxima. Também percebemos que há uma fase elástica ou linear, uma fase transitória e uma fase de fricção. Na fase elástica o material do pneu se comporta como um elástico, é a parte em que ele é estirado, como mencionei no exemplo acima, na fase de fricção, ou atrito, a área de contato do pneu com o solo está deslizando completamente, sem a característica de se prender, e a fase transitória é caracterizada pelas duas coisas acontecendo ao mesmo tempo.

Quando entramos forte em uma curva mas ainda assim conseguimos manter o controle do veículo é porque estamos na fase transitória, e como pode-se observar, haverá um momento no qual o pneu se desprenderá e começará a deslizar, ainda assim o pneu estará gerando força lateral, como pode-se observar no gráfico, após 6,5° de ângulo de deriva. É por isso que fazer curvas de lado, como em um drift, às vezes é possível. No vídeo abaixo é possível ver como os pneus são abusados em uma situação de pista e o quanto chegam a se deformar.

Outra coisa interessante sobre a deformação dos pneus é que quanto mais material o pneu tem, ou seja, quanto maior é a área de contato dele com o solo, o que se traduz em pneus de tala mais larga ou maior diâmetro, menos ele precisa se deformar para entregar uma reação, na prática, o ângulo de deriva ou a relação de deslizamento é menor (se mantida a mesma rigidez). Essa informação é importante.

 

Os componentes do pneu

Como escrevi anteriormente, pode-se plotar (colocar em um gráfico) diferentes valores em função do ângulo de deriva, como a força lateral, força de frenagem e força de tração. Também mencionei acima que o mecanismo de reação de um pneu é o mesmo para todos os sentidos, ele se deforma e gera forças do mesmo jeito tanto indo pra frente quanto indo pro lado. Pois bem, então todas as curvas, como de força de frenagem ou força lateral, deveriam ter a mesma forma e os mesmos valores para um mesmo pneu, não? Não.

Acontece que, apesar de o material do pneu se deformar e gerar reações por causa disso independentemente do sentido, o pneu não é feito somente de borracha.

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Foto: Michelin

O composto polimérico da parede do pneu é geralmente diferente do composto da banda de rodagem. Além disso, há geralmente pelo menos 3 cintas com fibras de diferentes materiais abaixo da banda de rodagem, além da cinta que une a banda de rodagem com a parede. Essas cintas podem ser de vários materiais, como por exemplo nylon e aço, e o sentido das fibras das cintas também podem ser variados. Entre as diferentes cintas há material polimérico também, e todos esses componentes mencionados acima estão colados, formando uma coisa só.

A cinta que geralmente une a banda de rodagem e a parede é orientada de forma radial ou diagonal, daí o nome dos pneus radiais e dos pneus diagonais.

Cada pneu tem uma característica construtiva própria, assim, um certo pneu pode ter 5 cintas na banda de rodagem, outro pode ter 3, apesar de manterem as mesmas características gerais, os pneus são bem diferentes entre si e são bem complexos.

Os componentes do pneu têm como função primária transmitir esforços. As cintas são orientadas de forma que possam enrijecer certas áreas do pneu, e a mesma coisa é válida para os aros metálicos localizados próximos às bordas, que estarão em contato com as rodas. No caso do pneu da foto, é possível perceber que a cinta de cor azul tem como função enrijecer a área dos sulcos do pneu. Já a amarela (a cinta radial) tem como função transmitir esforços das paredes aos sulcos e vice-versa.

Como em todo material compósito (sim, um pneu é feito de material compósito, assim com a fibra de carbono), a orientação das fibras têm grande influência em como o material resiste às tensões aplicadas, ou em palavras menos técnicas, como o pneu se segura quando o solo e a roda o puxam e deformam, por isso os valores de força de frenagem não são iguais aos valores de força lateral para um mesmo ângulo de deriva, o sentido em que a fibra é puxada é diferente.

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Reparem que o sentido das fibras deste cardã é diferente do guidão do vídeo acima. Foto: PST

Para tentar clarear um pouco mais essa questão da direção das fibras, quando um material é tracionado, por exemplo quando estamos puxando um fio de cobre, ele vai resistir mais do que quando sofre flexão, ou seja, quando esse mesmo fio for dobrado. Aplicando esse raciocínio no pneu, isso quer dizer que pneus radiais, por terem as fibras na mesma direção das forças laterais, são menos sensíveis à mudanças de cambagem, quando comparados com pneus diagonais (estes últimos com as fibras inclinadas em relação às forças laterais).

Todos esses diferentes componentes requerem um controle de qualidade nos seus respectivos processos de fabricação e também no processo de fabricação do conjunto final, o pneu.
Como é comum em linhas de produção, as coisas se parecem, mas não são iguais e saem do controle de vez em quando. Na fabricação de pneus, se as cintas não estão simétricas, ou se a borracha não está balanceada, bem distribuída, o pneu adquire uma conicidade, que é responsável por gerar uma força lateral quando o pneu rola. O que isso quer dizer? Quer dizer que seu pneu pode rolar de lado, em vez de rolar em linha reta por causa dessa conicidade, ou seja, se este pneu for colocado no seu carro, mesmo sem você fazer nada na direção, seu carro pode ter tendência a ir para um lado por causa dessa conicidade do pneu.

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Foto: Racer_86

Ainda sobre as características construtivas dos pneus, pneus de perfil baixo tendem a ter paredes e ombros mais reforçados, menos propensos à flexão, o que resulta em menos deformações, ângulos de deriva menores. Há desvantagens, pneus de perfil baixo não se conformam bem às ondulações das ruas, sendo menos confortáveis e mais sensíveis à mudança em amortecedores.

Rodas maiores em conjunto com pneus de perfil baixo podem pesar mais do que rodas menores e pneus de perfil maior, isso acaba sendo ruim para a performance, pois o conjunto fica com uma inércia maior, requerendo mais torque para vencer esta inércia.

Pneus de tala menor do que as rodas ficam com as paredes esticadas, estilo hellaflush, e terão menor deformação também (ocorre um efeito semelhante a uma pré-carga de mola), mas existe um risco muito maior de detalonamento (pneu se soltar da roda).

 

Um pouco de engenharia

Entrando um pouco mais na engenharia, na hora de prever o comportamento de um pneu é necessário um modelo matemático, uma fórmula para entrar com alguns parâmetros, ter uma resposta deste modelo (de preferência uma resposta que tenha uma relação com a realidade) e utilizá-la dentro de outro modelo matemático para prever o comportamento do veículo. O modelo matemático mais simples é o de forças de atrito de Coulomb, F=μN, no qual F é a força de atrito, μ é o coeficiente de atrito e N é a força normal aplicada, levando isso para o assunto dos pneus, F seria a força lateral ou de frenagem provida pelos pneus, μ seria uma variável relacionada com construção do pneu e N seria a força vertical aplicada ao pneu.

Esse modelo é linear e pode corresponder à primeira parte da curva de performance ilustrada nos parágrafos acima, mas quando se chega na fase transitória e de fricção a curva não é mais uma reta e se assemelha mais a uma parábola ou uma senoide. Existem alguns modelos matemáticos para tratar esses dados, sendo o mais famoso o modelo de Pacejka.

Esse modelo é destrinchado e explicado a fundo em um livro dedicado ao assunto. A leitura é complicada e um pouco entediante para quem não é da área, além disso, requer um certo entendimento de cálculo e dinâmica, de materiais, enfim, quem quiser se aventurar, o nome do livro deste cara é, sugestivamente, Tyre and Vehicle Dynamics, recomendo a leitura aos que forem persistentes.

Bonny

Foto: Bonny

Agora que os pneus foram apresentados com um pouco mais de profundidade técnica, podemos passar para os próximos tópicos, começar a discutir aspectos e conceitos dos carros em si. No entanto, isso vai ficar para a próxima postagem, na qual vamos discutir aceleração e frenagem, ou, como são chamadas no meio da engenharia, a dinâmica longitudinal dos automóveis.

Um último recado, se não deu para digerir todas as informações apresentadas, leiam e releiam quantas vezes acharem necessárias, o assunto é complicado mesmo. Até a próxima!