Há 100 anos, os irmãos Horace Elgin Dodge e John Francis Dodge decidiram usar os componentes automotivos que fabricavam desde 1900 e construíram um carro para rivalizar com o Ford Modelo T. O ano era 1914 e o nome do carro é Model 30, o primeiro modelo produzido pela Dodge.
Até então, os irmãos Dodge produziam peças de precisão para motores e componentes de chassi e as vendiam às centenas fabricantes de automóveis estabelecidos em Michigan naquele começo de século, em especial a Oldsmobile e a novata Ford Motor Company. Para se ter uma ideia da efervescência industrial daquela época, mais de 140 novos fabricantes de automóveis surgiram naquele ano, e a “nova” Dodge Brothers engrossou essa contagem no dia 17 de julho de 1914.
O começo
A Dodge Brothers era conhecida pela qualidade dos seus componentes e, por isso, quando Horace e John anunciaram que fariam um modelo próprio, eles receberam mais de 22.000 pedidos de concessão de vendas. O carro foi lançado em novembro de 1914, e trazia várias inovações que se tornariam padrão na indústria anos mais tarde. Uma delas foi o sistema elétrico de 12 Volts, que só se popularizou mesmo nos anos 1960.
Outra inovação foi o uso integral de aço na construção da carroceria e estrutura. Mesmo com a carroceria metálica, os fabricantes ainda usavam quadros estruturais de madeira. O Modelo 30 também inovou em seu sistema de transmissão, que usava engrenagens deslizantes — como é até hoje — no lugar das engrenagens planetárias. Seu motor era um quatro-cilindros de 35 cv, 15 a mais que o Ford T.
Com as inovações agregando valor à conhecida qualidade dos produtos dos irmãos Dodge, o carro foi um sucesso, e se tornou o segundo mais vendido do País em apenas dois anos. Os irmãos Dodge eram acionistas da Ford, que não gostou nem um pouco de ver seus parceiros lançando um rival tão forte. Diante disso, Henry parou de pagar os dividendos a James e Horace. Os irmãos então processaram Ford para receber sua parte — cerca de US$ 1 milhão —, mas em vez de pagá-los, Henry Ford comprou a parte dos Dodge por R$ 25 milhões.
Os dias de glória da marca, contudo, não durariam muito. Em 1920 os dois irmãos fundadores da marca morreram em um intervalo de cinco meses e a empresa acabou vendida pelas viúvas por US$ 126 milhões (a maior transação em dinheiro, até então) para o grupo de investimentos Dillon, Read & Co. No período sob o domínio da investidora, a Dodge caiu do segundo para o sétimo lugar no mercado americano e acabou sendo vendida para a Chrysler.
Desenhando com o vento
Agora parte do Grupo Chrysler, a Dodge foi posicionada acima de Plymouth e De Soto, e logo abaixo da Chrysler — a marca topo de linha do grupo. Para fazer jus ao seu posicionamento como um carro de luxo, a Dodge ganhou uma nova linha de modelos baseadas em motores de oito e seis cilindros.
Mas a principal característica da marca nessa época foi a adoção de modo sutil da linguagem estética conhecida como “Wind Stream” (corrente de vento, em português), inspirada no conceito aerodinâmico Chrysler Airflow, que deu aos carros formas mais curvas e linhas fluidas, ainda que de forma mais conservadora nos Dodge (veja acima). O conceito “airflow” de design nunca chegou a ser plenamente aplicado à linha Dodge, o que no fim das contas acabou sendo bom para a marca, pois ele foi o principal responsável pela queda nas vendas da Chrysler e da De Soto entre 1934 e 1937.
Dodge vai à Guerra
No final da década de 1930, a linha Dodge foi renovada com os modelos Luxury Liner, e continuaram recebendo atualizações anuais até 1942, quando o japoneses atacaram a base de Pearl Harbor e os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial. A produção de carros de passeio foi interrompida para os esforços de guerra. A Dodge compareceu ao front com seus modelos da série WC, que teve diversos tipos de carroceria aplicados às necessidades do exército, e ficou tão famosa nos EUA quanto os jipes da Willys Overland. O serviço militar deu aos modelos Dodge uma reputação ainda mais forte entre o público que procurava qualidade e robustez.
A produção de automóveis de passeio da Dodge foi retomada logo ao fim da guerra, no fim de 1945. A ausência de carros novos durante a guerra tornou fácil vender os novos carros, mesmo que eles fossem projetos do começo da década. A Dodge, por exemplo, vendeu os modelos anteriores à guerra até 1948, com uma linha baseada no motor seis-em-linha e dois tipos de acabamento: Deluxe e Custom.
La Femme, de 1955: um carro exclusivamente projetado para mulheres
Como se imagina, o estilo não era o forte desses carros, mas isso começou a mudar em 1953, quando o designer Virgil Exner assumiu a chefia de design corporativo. Para ajudar o trabalho de Exner, a Dodge desenvolveu seu primeiro V8, o Red Ram Hemi, uma versão menor do já famoso Hemi da Chrysler. Em dois anos as coisas começaram a mudar para a Chrysler. Com atualizações estéticas e motores cada vez mais potentes, a Dodge encontrou um nicho de mercado pronto para seus produtos com o novo sistema rodoviário baseado em grandes rodovias que cruzavam os estados, as famosas Interstates.
Potência para as massas
Nessa época surgiram os modelos mais famosos da Dodge, como o Dart, o Coronet R/T e, mais tarde sua versão coupé-fastback, o Charger R/T, e o Super Bee. Os muscle cars da Dodge fizeram sucesso entre o público que procurava ainda mais desempenho para curtir as estradas e as retas de arrancada espalhadas pelo país. Mais adiante, teremos um post especialmente sobre eles.
Em 1970 a Dodge lançou o Challenger e engrossou a briga dos pony cars, que já contava com o Ford Mustang, Chevrolet Camaro, AMC Javelin e até o primo corporativo Plymouth Barracuda. No ano seguinte, o Challenger foi promovido a ícone do cinema com o clássico politicamente incorreto “Corrida Contra o Destino”.
Versão brasileira
Em 1969 a Chrysler começou a produzir modelos Dodge no Brasil. O primeiro deles foi o Dart, uma variação da quarta geração do modelo americano oferecido com duas e quatro portas. Em 1971 ele deu origem ao Charger R/T brasileiro, diferente do americano, que era baseado no Coronet. Mais tarde vieram os modelos mais luxuosos Magnum e Le Baron, também baseados no Dart e com o mesmo motor 318 (5,2 litros).
Além deles, havia o Polara, que apesar de ter o mesmo nome de um sedã americano, era o compacto britânico Hillman Avenger rebatizado e com emblemas Dodge. A marca ainda produziu por aqui uma linha de picapes e caminhões, mas com o preço do combustível subindo e empurrando as vendas para baixo, a marca acabou comprada pela Volkswagen em 1981.
Em 1998, a Dodge voltou ao Brasil para produzir as picapes Dakota nas versões SE, Sport e R/T, com motores de quatro cilindros, V6 e V8, respectivamente, além das variações com motor diesel. Todas eram oferecidas com cabine simples, estendida e dupla. A produção durou até 2001, quando a DaimlerChrysler AG decidiu encerrar a produção da fábrica brasileira devido à reestruturação do grupo para os anos seguintes.
Downsizing e os tempos de crise
Tudo parecia correr muito bem para a Dodge quando, em 1973, os árabes promoveram um embargo petrolífero e o preço do barril do ouro negro disparou. Com exceção dos modelos oferecidos com os motores slant six, toda a linha da Dodge passou a ser rejeitada pelos consumidores preocupados com o consumo de combustível. A solução foi ampliar a linha com modelos do seu braço europeu, como o Omni, e de sua parceira oriental, a Mitsubishi, caso do Dodge Colt (um Lancer rebatizado) e do novo Challenger (baseado no Galant Coupe).
Como se não bastasse o problema do consumo, a Dodge substituiu o Dart pelo Aspen, que tinha bom desempenho e dinâmica, mas uma péssima qualidade de construção que afetou a imagem da marca. Para contornar o problema, a Dodge passou a usar suas marcas antigas para novos modelos bem diferentes daqueles que o público conhecia. Confusos, os consumidores partiram para a concorrência em vez de tentar entender a nova linha de modelos. Em 1979, o chairman da Chrysler Lee Iaccoca precisou pedir ajuda financeira do governo americano para evitar a falência.
A invenção de um ícone americano
Melhor dizendo: das mamães americanas. O primeiro fruto do projeto de recuperação da Chrysler foi a plataforma K, que deu origem a vários carros bem sucedidos nos EUA e em mercados internacionais, como o Dodge Spirit R/T e o Dodge Daytona Shelby. Mas a redenção da Dodge veio em 1984 com o lançamento da minivan Dodge Caravan. Ela não apenas garantiu a subsistência de todo o grupo Chrysler, como também deu origem a um dos segmentos mais fortes do mercado americano.
Substituindo as polegadas cúbicas
Outra iniciativa de Lee Iaccoca foi trazer para a Dodge seu amigo Carroll Shelby. A missão de Shelby não poderia ser outra que não cuidar dos modelos esportivos da marca, em especial em um certo “Team Viper”. Antes da criação do Viper, contudo, Shelby deixou a sua marca em alguns modelos compactos da marca, como o Dodge Charger Shelby e o Dodge Omni GLH.
E como o Shelby GT350 dos anos 1960, Carroll também vendeu modelos Dodge sob sua marca, que resultaram em alguns dos esportivos americanos mais interessantes da década de 1980 — embora pouco conhecidos fora dos EUA: o Shelby Lancer (acima), o Shelby Charger, e o Shelby GHLS — um hot hatch de 1.000 kg e 175 cv (abaix).
Tanto os modelos Dodge, quanto os modelos Shelby tinham tração dianteira e usavam motores de quatro cilindros sobrealimentados por turbocompressores, em uma abordagem diferente da famosa frase de Shelby sobre melhorar os motores com mais deslocamento.
Cobra ainda mais venenosa
A missão de Shelby na Dodge, contudo, não era apenas transformar uns carros esquisitos em esportivos baratos. Ele estava lá para ajudar a projetar o que o presidente da Chrysler, Bob Lutz, chamou de “versão moderna para o Cobra”. Shelby seria o “consultor de performance” do Team Viper, uma equipe formada por 85 engenheiros escolhidos a dedo pelo engenheiro-chefe do grupo, Roy Sjoberg, para construir um novo esportivo à moda antiga para a Dodge — muito motor, visual matador, baixo peso, e dinâmica afiada.
Os trabalhos começaram em março de 1989. Na época a Lamborghini fazia parte do Grupo Chrysler, e ficou encarregada de produzir um bloco de alumínio baseado no motor V10 usado nas picapes Dodge. Enquanto isso, o “Team Viper” desenvolvia carroceria e chassi — com Shelby na supervisão para manter o carro o mais leve possível. No mesmo ano a equipe testou um protótipo de testes equipado com um motor V8, pois o V10 só ficaria pronto em fevereiro de 1990. Dois meses depois de receber o novo motor de alumínio, o chairman do grupo, Lee Iaccoca, deu o cartão verde para produzir o carro.
Shelby pilotou uma versão de pré-produção como Pace Car nas 500 Milhas de Indianápolis de 1991. Em novembro desse ano a imprensa avaliou o carro e os primeiros modelos vendidos chegaram às lojas em janeiro de 1992. Em um tempo no qual o Mustang havia perdido sua essência, o Corvette desatualizado e o Camaro cada vez maior e desajeitado, o Viper reinou como o grande esportivo americano durante toda a década de 1990.
Tempos modernos
Em 1998 a Chrysler uniu-se aos alemães da Daimler-Benz, formando o grupo DaimlerChrysler. A parceria visava racionalizar a linha Chrysler e a Dodge foi transformada na marca de entrada e modelos esportivos do grupo.
Foi durante a joint-venture que a Dodge voltou a ter uma plataforma de tração traseira, que deu origem às encarnações modernas do Magnum e do Charger, que formaram uma família de peruas e sedãs, respectivamente, com motores V6 e V8 e edições esportivas de até 430 cv. Essa mesma plataforma ainda serviu de base para o novo Challenger, inspirado pelo modelo original de 1971.
A união entre americanos e alemães não atendeu às expectativas de ambos os lados. A Chrysler trouxe uma série de prejuízos ao longo do período, que levaram a Daimler a vender a marca em 2007. Sem conseguir se recuperar após a parceria, a Chrysler recorreu novamente ao governo americano, mas teve a ajuda negada e foi obrigada a declarar falência. Depois de se recusar a vender a marca Jeep aos coreanos da Hyundai, o grupo Chrysler acabou comprado pela Fiat, que desmembrou a divisão SRT da Dodge, bem como as picapes RAM, transformando-as em marcas independentes.