É bem conhecido o fato de que Enzo Ferrari só começou a fabricar carros de rua em 1947 por necessidade. Sem eles, seria impossível seguir construindo seus carros de corrida. Embora a Ferrari seja responsável por alguns dos esportivos mais potentes, velozes e tecnologicamente avançados do mundo, é desnecessário dizer que suas raizes no automobilismo só cresceram e ficaram mais fortes com o passar das décadas.
Confirma tal afirmação a existência do Ferrari Challenge, que desde 1993 proporciona aos proprietários verdadeiramente entusiastas dos supercarros de Maranello a oportunidade de disputar corridas nos principais circuitos do planeta, com todo o suporte necessário. Há quem forme equipes bem estruturadas e acabe dedicando todo o seu tempo livre às corridas. Também há os clientes ultra-especiais que adquiriram carros de competição utilizados pela Scuderia – na Fórmula 1, inclusive – em track days organizados pela própria Ferrari. Tem uma Ferrari? Então pode apostar que os italianos sabem como garantir que ela será bem usada – se você estiver disposto, claro.
Contudo, mesmo antes da inauguração do Ferrari Challenge. a companhia já sabia que clientes gostam de ser ouvidos. Eles sabem tratá-los bem. E foi por isto que, mesmo enquanto estava concentrando todos os seus esforços na Fórmula 1, a Ferrari atendeu aos pedidos de seu público e criou uma versão de corrida da Ferrari 512BB, que recebeu o sobrenome Competizione.
O já citado Ferrari Challenge disponibiliza aos participantes versões de corrida de seus modelos com motor V8 – eles custam menos, e também são mais acessíveis em termos de manejo e manutenção (guardadas as devidas proporções, claro). A Ferrari 512 Competizione, porém, era uma versão para gentlemen racers do modelo de topo de 1978, que tinha um motor flat-12 de cinco litros – muito mais próximo do que se via nas Ferrari de corrida da década de 1950.
Em 1977 a Ferrari havia conquistado seu segundo título com Niki Lauda – o primeiro havia sido o de 1975. Sendo assim, na segunda metade dos anos 70 os italianos não estavam muito preocupados com as categorias de turismo, dedicando-se totalmente aos monopostos.
A Ferrari 512 foi lançada em 1976, e trazia uma versão de cinco-litros do motor flat-12 usado em sua antecessora, a 365 GT4 BB – que tinha um motor de 4,4 litros. Embora tenha ficado 20 cv menos potente, com 360 cv (a 365 tinha 380 cv), a 512 tinha mais torque – 46 mkgf contra 41,7 mkgf — e ficou mais esperta em baixas rotações, além de receber uma embreagem com dois discos que tornava o pedal mais leve e melhorava a experiência de trocar as marchas.
A 512 BB também era um carro mais pesado e confortável do que a 365 BB – podemos dizer que a Ferrari decidiu enfatizar a vocação de grand tourer de seu modelo topo de linha.
O que só torna mais interessante a ideia de uma 512 BB de corrida. Era esta a proposta do chamado Le Mans Kit – o que era irônico, visto que o ano em que ela foi lançada (1976, como já dissemos) foi o primeiro sem qualquer Ferrari no grid das 24 Horas de Le Mans. A Ferrari criou o kit em resposta aos pedidos de proprietários, que queriam participar de corridas com a Ferrari 512.
É só olhar para ela. Chamar as modificações de “kit” soa até injusto – e talvez seja por isto que a Ferrari decidiu-se pelo sobrenome “Competizione”, muito mais sonoro. O carro tinha a carroceira consideravelmente modificada, perdendo os faróis escamoteáveis e adotando peças fixas; eram instalados alargadores de para-lamas, para instalar rodas mais taludas (9” na dianteira e 12” na traseira, respectivamente), e os para-choques eram trocados por peças de fibra, com desenho mais aerodinâmico. Também era colocada uma asa traseira fixa de bom tamanho.
Embora tivesse um acerto mais confortável, a construção da 512 BB não negava as raízes de sua fabricante: a estrutura era mista de monocoque para o habitáculo e tubular para o conjunto mecânico; e a suspensão utilizava braços triangulares sobrepostos, amortecedores hidráulicos, barras estabilizadoras e freios a disco nas quatro rodas.
Portanto, com um bom retrabalho de geometria, freios maiores e pneus mais bifudos, seu comportamento se transformava. A Ferrari também removeu a maioria dos itens de acabamento interno, incluindo o revestimento das portas, o carpete, o isolamento acústico, o tabelier do painel e quaisquer itens de conveniência. Também era instalada uma gaiola de proteção integral e um par de bancos concha de competição.
O motor também recebia alguns ajustes, incluindo a instalação de corpos de borboleta individuais sobre os quatro carburadores de corpo triplo, para entregar 460 cv – 100 cv a mais que a versão de rua. Com 170 kg a menos (1.230 kg contra 1.400 kg) a 512 BB de corrida também deveria ser bem mais rápida do que a versão de rua, esta capaz de ir de zero a 100 km/h em 5,4 segundos, com máxima de 272 km/h.
O carro que aparece nestas fotos é um dos poucos exemplares sobreviventes da 512 BB Competizione. Ela pertenceu ao alemão Markus Kiesgen, membro fundador do Ferrari Club Deutscheland, que comprou o carro em 1980 e imediatamente mandou instalar o Le Mans Kit.
Kiesgen teve o carro entre 1980 e 1985, período durante o qual participou de diversas provas de turismo pela Itália.
Depois de décadas guardada em um galpão, a 512 Competizione foi comprada pela equipe Bratke Motorsport, também alemã, que refez todo o conjunto mecânico e ainda realizou algumas modificações, como a instalação de uma célula de combustível homologada pela FIA, e também uma rollcage feita de acordo com os padrões atuais da organização para provas históricas.
Depois de participar de duas edições da Le Mans Classic, em 2016 e 2018, a Ferrari 512 Competizione será leiloada ela RM Sotheby’s no próximo dia 6 de fevereiro, durante um evento em Paris, na França. Espera-se que o valor de arremate fique entre € 395.000 e € 455.000 – entre R$ 1,48 milhão e R$ 1,70 milhão, aproximadamente.