FlatOut!
Image default
Trânsito & Infraestrutura Pensatas

Ok. Vamos reduzir os limites de velocidade de novo. E depois?

Lá vamos nós mais uma vez… chegando ao meio da década, o debate sobre limites de velocidade voltou à praça pública — agora por meio de uma consulta pública realizada pelo Ministério dos Transportes entre julho e agosto, visando atualizar o Guia de Gestão de Velocidades no Contexto Urbano.

Mais uma vez, a narrativa dominante é simplista: “reduza a velocidade para salvar vidas” — as palavras mágicas que transformam políticos em anjos. O problema é que essa conversa, repetida à exaustão pela mídia e por autoridades, ignora o verdadeiro quadro do trânsito brasileiro. O foco obsessivo em radares e limites de velocidade transforma uma questão complexa em espetáculo de fiscalização — e, convenhamos, arrecadação.

Em 2023, 35.000 pessoas morreram no trânsito brasileiro. A taxa geral caiu de 21,2 para 16,2 por 100.000 habitantes. Por quais razões? Te desejo boa sorte tentando encontrar estes dados processados e analisados. Mas o que eu encontrei foi que as mortes de motociclistas continuam subindo — dos 35.000 mortos no trânsito em 2023, 13.000 eram motociclistas — 37%, mais de um terço. Mais de 3.000 morreram em colisões com automóveis, 1.730 com caminhões, 1.380 com objetos estáticos.

Pior: a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), identificou que metade dos proprietários de motocicletas do Brasil não têm habilitação — o que nos permite especular que eles dirigem sem CNH ou registram as motos em nomes de pessoas sem habilitação para fugir dos pontos das multas — quando o veículo está em nome de uma pessoa sem habilitação, os pontos não são computados, uma brecha grotesca na legislação brasileira. E também vergonhosa para quem quer salvar vidas no trânsito.

Ao mesmo tempo, 11.000 mortes envolveram condutores embriagados — também correspondente a cerca de um terço do total de fatalidades. Os atropelamentos fatais chegaram a 5.600 (16% do total de mortes) — metade deles “não especificados”, ou seja: não se determinou se o atropelamento foi causado por um automóvel, por uma moto, por um caminhão ou por um trem (sim, eles estão na estatística do DataSUS). Mas mesmo assim, estamos concentrando toda a discussão na redução dos limites urbanos como um plano nacional.

E é justamente este o problema. A OMS tem suas diretrizes para redução da mortalidade no trânsito, mas elas não são uma mistura pronta de bolo de microondas, na qual você adiciona leite e resolve o problema. Veja: a OMS pretende reduzir globalmente as mortes no trânsito em 50% nesta década. Segundo os dados da própria OMS, em 2021 morreram 1.163.469 pessoas no trânsito. Metade destas mortes ocorrem em duas regiões do planeta: Sudeste Asiático (26,5%) e Pacífico Oeste (25,5%). As Américas têm 12,5% das mortes no trânsito global — em números absolutos. Em números relativos, as Américas ficam atrás somente da Europa. Claramente temos um trânsito muito mais seguro que o destas demais regiões. Por que deveríamos adotar medidas ainda mais restritivas onde já estamos melhorando?

O Brasil já segue as diretrizes da OMS em partes — justamente nas partes em que estamos discutindo, que são os limites de velocidade. Lembra dos limites de 30 km/h onde há pedestres, e da redução para 40 km/h e 50 km/h nas vias urbanas, mantendo 60 km/h ou mais somente em vias expressas? É parte do plano da OMS para esta década. Também somos referência na legislação anti-alcoolismo no trânsito e em prestação de socorro às vítimas de trânsito.

Brasil já vinha diminuindo o número de mortes no trânsito desde 2014

Só que há uma outra parte que menciona “abordagem holística para a segurança viária”, “melhorias contínuas no projeto de estradas e veículos”; “aperfeiçoamento das leis e da aplicação da lei”. Onde está a discussão — e, principalmente, as ações — a respeito destes fatores?

Há mais de 60 anos que a engenharia de tráfego descobriu que o verdadeiro risco não é a velocidade absoluta, mas a disparidade de velocidade entre veículos — especialmente entre carros e motos. Mas o que temos é uma blitz permanente de radares e lombadas eletrônicas, um controle obsessivo que não resolve o cerne do problema: motoristas sem habilitação, consumo de álcool, fiscalização incompleta e infraestrutura precária.

Segundo a pesquisa anual de rodovias da Confederação Nacional dos Transportes, 40% das rodovias brasileiras estão em estado “regular”, 20,8% ruins, 5,8% péssimas — ou seja: mais de dois terços das estradas (~67%) estão abaixo do ideal. A geometria é ruim ou péssima em 40%, e a sinalização, em 23,2%. Mas quem discute isso? Qual o plano nacional para melhorar estes fatores? Em 2021, o ritmo de manutenção de rodovias era de 170 km por mês — ou 2.040 km/ano, menos de 10% da malha pavimentada total.

Atualmente, com DataSUS fornecendo dados confiáveis, distribuídos geograficamente e demograficamente, é possível identificar pontos críticos do trânsito por município e aplicar políticas específicas, que realmente salvariam vidas. Agir localmente para ter um efeito global.

Mas a obsessão da mídia e das autoridades pelo controle eletrônico mantém o debate preso a um círculo vicioso: reduzir limites que forçarão a mudança de hábitos seguros dos motoristas. Instalar mais radares que, por causa das mudanças de hábito, irão gerar multas e alimentar o discurso da “velocidade que mata”. É confortável, é rápido, e dá a impressão de ação enquanto as mortes de motociclistas seguem aumentando, estradas seguem precarizadas e a fiscalização de tudo o que não for licenciamento, velocidade e escape de motos, segue invisível e não-temida.

Essa é a verdade que quase ninguém quer ver: reduzir limites mais uma vez não resolve o problema que mata brasileiros todos os dias. Mortes não caem por radar; caem quando políticas sérias enfrentam educação, infraestrutura, fiscalização inteligente e análise rigorosa de dados. No Brasil, a discussão sobre limites virou um jogo politiqueiro, enquanto a verdadeira tragédia continua acontecendo fora das câmeras — literalmente. E vidas continuam sendo perdidas por negligência estrutural, não por alguns quilômetros a mais no velocímetro.

Esta matéria é uma amostra do nosso conteúdo diário exclusivo para assinantes, e foi publicada sem restrições de acesso a caráter de degustação.

A sua assinatura é fundamental para continuarmos produzindo, tanto aqui no site quanto no YouTube, nas redes sociais e podcasts. Escolha seu plano abaixo e torne-se um assinante! Além das matérias exclusivas, você também ganha um convite para o grupo secreto (exclusivo do plano FlatOuter), onde poderá interagir diretamente com a equipe, ganha descontos com empresas parceiras (de lojas como a Interlakes a serviços de detailing e pastilhas TecPads), e ainda receberá convites exclusivos aos eventos para FlatOuters.