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Pensatas

O auge do automóvel

O fim de semana na estrada me meteu em uma encrenca. Uma encrenca boa, até frutífera, diria. Foi um domingo de primavera, com o sol voltando a esquentar a paisagem depois do longo inverno. Depois de deixar São Paulo para trás, nos enfiamos em uma região de pequenas cidades instaladas entre os morros de um vale verde e muito panorâmico. Inevitavelmente, o passado veio à mente — a época que me fez entusiasta, quando meus pais distraíam os três filhos em regiões remotas de um mundo analógico e desconectado, simplesmente passeando de carro nos finais de semana. As cidades pequenas, aquela sensação de deslocamento que só temos nas viagens de carro… era como se eu tivesse voltado no tempo, agora com a minha nova família — a família que eu e ela estamos construindo.

Então, em um trecho sinuoso de asfalto, entre um rio cristalino e pedregoso e um morro coberto pelo verde renovado, o rádio começa a tocar Free Fallin’, do Tom Petty. A música fez sucesso em 1990 e tinha um videoclipe gravado na “golden hour” — aquela hora em que o sol está se pondo e a luz fica mais dramática e tudo parece mais poético. Naquela hora a nostalgia bateu forte. Forte a ponto de incomodá-la, como se eu estivesse presente apenas fisicamente, mas com a mente em outro lugar — um tipo de distração que, se frequente, pode corroer relacionamentos.

Foi um instante muito breve, coisa de um ou dois minutos, uma quase-hipnose que foi quebrada pela mudança da música, acompanhada por uma reclamação em tom de desabafo sobre o efeito indutor de nostalgia saudosista que “Free Fallin'” provoca em mim. Essa foi a encrenca. Na verdade a encrenca foi a conversa mais animada sobre esse suposto saudosismo. Tudo se resolveu com uma parada para um sorvete. Mesmo assim, não consegui tirar a ideia da cabeça.

O apelo nostálgico não é uma característica da minha personalidade, como ela pensa. É algo comum deste nosso tempo — os sinais estão por toda parte: séries de TV e filmes apelam a esse sentimento, instrumentos musicais carregam o charme “vintage”, e o antigomobilismo nunca foi tão forte, ao ponto de fabricantes reviverem modelos do passado ou incorporarem elementos nostálgicos em carros novos. Isso nunca aconteceu antes — ao menos não com a intensidade atual.

Essa overdose de nostalgia me deixou intrigado. Seria eu mesmo uma vítima (ou causador) dela? Uma percepção comum sobre nostalgia ou saudosismo é que eles surgem quando estamos insatisfeitos com o presente ou temerosos do futuro — o oposto da ansiedade, que aparece quando o presente nos incomoda, mas tememos repetir o passado. Será que a sociedade desenvolveu uma insatisfação coletiva com o presente e, sem perspectivas de melhora para o futuro, se voltou ao passado como refúgio?

Redes sociais e excesso de estímulos digitais amplificam imagens e narrativas de vidas “perfeitas”, conquistas alheias ou momentos idealizados, reforçando a sensação de que nosso presente é insuficiente, caótico ou menos significativo. A velocidade com que o cotidiano se transforma — notícias que chegam a cada instante, mudanças políticas e econômicas rápidas, crises persistentes — cria uma sobrecarga mental que dificulta vivenciar o agora de forma plena.

Nesses casos, o passado surge como um porto seguro, carregado de memórias afetivas selecionadas, onde momentos de pertencimento e realização se destacam em contraste com a ambivalência do presente. Não seria apenas um refúgio emocional — talvez a sociedade, coletivamente, queira voltar para onde estava antes de tudo evoluir demais.

Notou que ultimamente os Salões do Automóvel deixaram de atrair o público — mas os concursos de elegância e os encontros de clássicos seguem muito bem? E que as novidades que mais empolgam os entusiastas não são inovadoras, mas remissões ao passado? Talvez o automóvel moderno tenha mesmo passado dos limites do que o público deseja.

Foi pensando nisso que comecei a perceber algo maior por trás daquela nostalgia domingueira. Não era apenas o efeito de uma música, nem simples saudade da infância — era a clara sensação de que vivemos em um mundo diferente daquele onde nossos gostos e nossos anseios se formaram. A nostalgia bate por que, naquele momento entre o céu e o asfalto, ao volante de um carro manual, com uma música clássica, sem sinal de telefone, voltamos, mesmo que por instantes, para aquele mundo.

Era um mundo no qual os carros eram feitos sobre um ponto de equilíbrio entre emoção e tecnologia, entre simplicidade e avanço, entre segurança e estética, entre desempenho e eficiência, e entre sonho e realidade. E talvez esse ponto tenha ficado em algum lugar dos anos 2000, quando o futuro ainda parecia possível e os carros eram imperfeitos — e, por isso, tinham alma. Afinal, qual é a mais humana das características, se não a imperfeição?

No passado o carro ainda era um personagem — com voz, gestos, humor e manias. Alguns riam no asfalto, outros gritavam, outros apenas sussurravam. O que os unia era o fato de responderem ao condutor, de exigirem dele atenção e sensibilidade. O ato de dirigir era um diálogo. Não havia mediadores. E o motorista sabia que, se errasse, o carro não o salvaria. Era um pacto honesto entre homem e máquina. Um pacto que criou gerações inteiras de apaixonados — gente que hoje tenta reviver aquela emoção comprando carros usados, restaurando esportivos esquecidos, ou simplesmente assistindo a vídeos antigos com o mesmo brilho nos olhos de quem vê um filme da própria juventude.

Entre meados dos anos 1990 e o início dos 2000, os automóveis chegaram ao auge de uma longa jornada evolutiva. Tudo o que a indústria aprendeu durante um século de experimentação se cristalizou naquela década: os motores já eram potentes e confiáveis, as carrocerias tinham rigidez e elegância, os interiores misturavam couro, alumínio e plásticos sólidos. A eletrônica ainda não havia tomado o volante; era coadjuvante, não protagonista. O controle de tração e o ABS surgiam como avanços discretos — auxiliares da habilidade humana, não substitutos dela. Os carros eram modernos, confiáveis e seguros, mas ainda vibrantes, sonoros e orgânicos — portanto, imperfeitos, humanos, cheios de vida.

Pense em nomes como Toyota Supra, Mazda RX-7, Nissan Skyline GT-R, Mitsubishi Lancer Evolution, Honda NSX, BMW M3 E36 e E46, Ferrari 355 e 360, as peruas turbinadas da Volvo, o Lamborghini Diablo e o Murciélago. Todos nascidos na interseção mágica entre o fim da mecânica pura e o início da eletrônica inteligente. Eles representavam o auge da engenharia aplicada à emoção.

Culturalmente, o carro ainda era uma extensão da identidade. A garagem era uma declaração de gosto, de personalidade. E o cinema, a música e os games reforçavam esse imaginário: Initial DGran TurismoThe Fast and The FuriousGone in 60 SecondsTop Gear (o jogo de Super Nintendo). Todos mostravam o carro como um símbolo de liberdade, velocidade e pertencimento.

Mas o que veio depois foi um desmanche gradual. As regulamentações apertaram, as emissões foram controladas, os airbags se multiplicaram, e a digitalização se infiltrou em tudo. O automóvel deixou de ser produto emocional e passou a ser software sobre rodas. O prazer de dirigir foi substituído por métricas, a experiência por eficiência. Consumo, conectividade e conveniência passaram a ser o centro de tudo — e, com isso, o carro perdeu sua característica mais humana: a imperfeição, a necessidade de ser compreendido, o risco.

Mas o que realmente se perdeu foi o sentido simbólico do automóvel. Durante o século XX, o carro era mais do que transporte — era o passaporte para a vida adulta, o primeiro passo da liberdade, o espaço íntimo entre o lar e o mundo. Até pouco tempo atrás essa aura ainda era muito viva. Hoje, ela parece ter evaporado nas nuvens digitais e nas políticas urbanas que tratam o carro como um inimigo. Logo ele, o melhor amigo da liberdade.

É impossível não sentir falta dessa pluralidade e liberdade — criativa e de uso. Os carros modernos podem ser mais rápidos, limpos e seguros, mas também mais anônimos, mais distantes. Eles apenas funcionam. Não convidam — observam, vigiam. O que resta é o eco de uma era ainda viva no imaginário coletivo. Quando olhamos para um Supra MK4, um NSX ou um 993 Turbo, não vemos apenas um carro — vemos o último suspiro de uma civilização que acreditava que progresso e prazer podiam coexisistir.

A nostalgia por essa era não é mero sentimentalismo. É uma resposta ao esvaziamento sensorial e simbólico do mundo contemporâneo. É o McDonalds pintado de preto. Os logotipos minimalistas e as casas quadradas iguais em qualquer lugar do mundo. A perfeição digital é fria; o erro humano é poético. É natural que busquemos no passado aquilo que o presente nos nega: autenticidade, vivacidade, sensibilidade e imperfeição.

É por isso que os carros dos anos 1990 e início dos 2000 continuam nos perseguindo, como memórias de uma época em que tudo parecia mais simples — e mais verdadeiro. Não porque o mundo fosse realmente melhor, mas porque havia uma harmonia entre o que se esperava e o que se recebia. Ainda era permitido esperar que um carro fosse transporte e emoção ao mesmo tempo. Hoje, o futuro parece distante e o presente parece falso. O passado é a única coisa que ainda nos soa autêntica.

Quando dirigimos um carro daquela época, sentimos mais do que nostalgia. Sentimos presença. Lembramos que dirigir já foi uma experiência íntima, física e honesta — algo que acontecia entre você, a máquina e a estrada. Talvez seja isso o que buscamos quando olhamos para trás: não apenas os carros, mas o tempo em que as coisas não precisavam ser perfeitas para serem boas, nem rápidas para serem intensas. Um tempo em que a gente sentia o que estava fazendo. Um tempo em que a gente vivia o momento naquele momento.

(aperte o play no vídeo antes de ler o último parágrafo)

E talvez seja por isso que, em uma tarde de primavera, no interior, com Free Fallin’ tocando no rádio, um simples trecho de estrada seja suficiente para despertar essa sensação. Não é só nostalgia — é reconhecimento. É a memória de um tempo em que os carros ainda falavam com a gente, e a vida, mesmo com seus solavancos, seguia em ritmo constante, firme e cheio de sentido.

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