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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #42: Lexus LS400

O ano era 1983. Agosto de 1983, para ser mais exato. Eiji Toyoda convocou uma reunião confidencial na sede da empresa, na província de Aichi com uma pauta que surpreendeu o alto escalão da fabricante: “Podemos criar um veículo de luxo para desafiar os melhores do mundo?”

Toyoda tinha claro que aquele precisava ser o próximo passo da marca. Eles já haviam conquistado o mundo com seus utilitários e carros de passeio eficientes e confiáveis e começavam a ganhar território entre os esportivos. O próximo passo era entrar no segmento de luxo global. O problema é que a imagem que a Toyota construiu fora do Japão era exatamente o oposto do que se esperava de um carro de luxo. Mesmo o Toyota Century, que era a “limousine” da marca no mercado japonês, ou Crown, que era o modelo mais caro exportado pela Toyota, estavam muito aquém das expectativas de quem procurava algo como o Mercedes Classe S ou o BMW Série 7.

A resposta à pergunta de Toyoda foi o projeto Flagship 1. Ele não apenas faria um novo carro de luxo para brigar com os alemães. Ele faria uma marca completamente nova, descolada da reputação utilitária e econômica que a Toyota ganhou no ocidente.


Toyoda precisava de alguém que encarasse essa empreitada tão ambiciosa e chamou Ichiro Suzuki. O sobrenome rende piada pronta, mas dentro da Toyota ninguém ria: ele era conhecido justamente por entregar o impossível. Suzuki entendeu rápido que a “qualidade Toyota” não seria suficiente para entrar no território de Mercedes e BMW. Ser durável e confiável era o básico. Era preciso impressionar. Por isso, ele recebeu algo que a Toyota nunca dava a ninguém: liberdade total. Carta branca. Liberdade e orçamento infinito. É quase obsceno escrever isso em 1983.

Ichiro Suzuki

Não tinha teto de gastos nem um prazo final. E ele ainda tinha de seguir uma determinação de Toyoda: nenhuma peça de prateleira poderia ser usada no Flagship 1. Nada. Nem um botão de vidro, dobradiça ou sensor emprestado do Crown. Se não fosse o melhor possível, era descartado. Se fosse bom, mas não perfeito, o componente teria de ser refeito. Parece exagero, não?

Mas exagero mesmo são os números da equipe: 60 designers, 24 equipes de engenharia e quase 1.400 funcionários trabalhando em tudo o que se move, vibra ou produz ruído (NVH). Outros 2.300 técnicos montavam e desmontavam os componentes e sistemas dos protótipos. Havia 200 pessoas somente na logística do projeto. No total, o Flagship 1 ocupou quase 4.000 pessoas dedicadas ao objetivo de superar os alemães em qualquer métrica possível.

Os resultados desse processo parecem até números de marketing: a Toyota fez 450 protótipos do monobloco e quase 900 do motor. Todos foram testados até a falha para evitar problemas crônicos em um carro que precisava ser impecável e infalível. A validação dinâmica acumulou nada menos que 2,7 milhões de quilômetros rodados. Os testes de inverno foram realizados na Europa, onde também serviram para testar a resistência à corrosão devido ao sal usado para descongelar a pista. Na autobahnen foram realizados os testes de alta velocidade. Na Austrália, no oeste dos EUA e no Oriente Médio, a Toyota testou ar-condicionado, plásticos e borrachas sob temperaturas extremas. Nas highways americanas também foram testadas as reações da suspensão, ruído e vibração — simulando especialmente o uso do público-alvo americano.

Essa fase de testes revelou a filosofia central de Suzuki: a eliminação dos “trade-offs” (comprometimentos). Na engenharia tradicional, acreditava-se que para ter um carro veloz, ele acabaria sendo ruidoso; para ser estável, a suspensão se tornaria excessivamente firme; para ser aerodinâmico, a cabine acabaria apertada. O Projeto F1 rejeitou tudo isso. O carro deveria ser veloz e silencioso, estável e confortável, aerodinâmico e espaçoso.


O processo de design, iniciado em maio de 1985, foi um embate entre a emoção visual e a frieza da física. Os primeiros esboços e modelos de argila sugeriam um carro baixo, com frente em cunha, evocando a agressividade de um grand tourer. No entanto, a realidade do mercado de luxo exigia uma postura mais imponente e conservadora. Em 1986, a direção do design pivotou para uma configuração clássica de três volumes com uma grade frontal vertical e proeminente como a dos rivais alemães. Isso foi um desafio para a equipe de design, que refinou a dianteira do carro até chegar ao coeficiente 0,29 — enquanto Mercedes e BMW tinham 0,36 e 0,32, respectivamente.

Se a aerodinâmica lidava com o ruído externo, a engenharia de NVH (Noise, Vibration, and Harshness) lidava com a cabine. O interior do carro era mais uma sala de áudio hi-fi do que uma cabine de luxo. A seleção de materiais por exemplo, levou dois anos — a equipe avaliou, por exemplo, 24 tipos diferentes de madeira até selecionar a Nogueira da Califórnia pela sua granulação e tonalidade específicas, além de testar inúmeros tipos de couro para garantir que o cheiro, o tato e a resistência ao desgaste fossem impecáveis.

Mas o verdadeiro avanço estava onde ninguém jamais veria: a meta de ruído interno exigiu mais de 300 inovações específicas do modelo. A principal dela foi a construção “sanduíche” da carroceria em áreas críticas: eram paineis formados por duas folhas de aço separadas por uma camada de resina que atuava como um amortecedor das vibrações da chapa. Motor e transmissão usavam coxins hidráulicos controlados eletronicamente e as buchas de suspensão foram desenvolvidas para filtrar frequências específicas de vibração.

O nível de obsessão aos detalhes é ilustrado pelos mecanismos dos botões de plástico: a equipe achou que o clique destes botões remetia a algo barato, como os Corolla e Camry. A solução foi trocar tudo por mecanismos com amortecimento por fluido — uma fina camada de óleo que provocava uma resistência sutil e suavizava cliques e movimentos, transmitindo solidez e refinamento.

O resultado disso tudo foi algo jamais visto: a 100 km/h o ruído interno era de apenas 58 dB. Em testes posteriores, a 200 km/h o ruído era de 74 dBA, enquanto o BMW Série 7 já produzia essa intensidade sonora a 150 km/h.


Para mover transportar tudo isso com a dignidade necessária, a Toyota precisava de um motor que fosse, ao mesmo tempo, potente e suave. A escolha foi um V8 de 4 litros de alumínio, com camisas de ferro fundido, comando duplo no cabeçote, quatro válvulas por cilindro e foco em altas rotações. Seu nome era 1UZ-FE.

A potência declarada era de 245 cv a 5.400 rpm, com um torque de 35,6 kgfm a 4.400 rpm. Números respeitáveis, mas não impressionantes. O segredo, novamente, estava na entrega. O motor foi projetado com tolerâncias de usinagem tão estreitas que desafiavam os padrões de produção em massa. O balanceamento das partes móveis era tão perfeito que a Toyota ficou famosa pelo “teste da taça de champanhe”: uma pirâmide de taças de cristal cheias de champanhe, equilibrada sobre o capô do motor em funcionamento a 6.000 rpm, sem derramar uma gota.

A transmissão era uma nova caixa automática de quatro velocidades, a A341E, equipada com o sistema ECT-i (Electronically Controlled Transmission with intelligence). Pela primeira vez, o motor e o câmbio “conversavam” em tempo real através de uma ECU dedicada — tanto Mercedes quanto BMW só lançaram seus câmbios eletrônicos nos anos 1990. Durante a troca de marcha, o motor atrasava momentaneamente o ponto de ignição para reduzir o torque por uma fração de segundo, permitindo que o câmbio engatasse a próxima marcha com mais suavidade. O resultado era uma aceleração contínua, líquida, ininterrupta.

O desempenho era excelente para a época: zero a 100 km/h em 8,5 segundos e velocidade máxima limitada eletronicamente a 250 km/h.


Entre 1983 e 1987 o carro era conhecido internamente apenas como F1, abreviação simples de Flagship 1. Logo no primeiro ano, contudo, a Toyota percebeu que o carro precisaria de uma marca separada e contratou uma consultoria americana especializada em branding chamada Lippincott & Margulies. O briefing era simples e ao mesmo tempo impossível: o nome precisava soar premium para americanos, não parecer japonês, ser fácil de pronunciar, funcionar internacionalmente e transmitir tecnologia, precisão e luxo — tudo ao mesmo tempo.

Os publicitários de quase 200 nomes que incluía Alexis, Lexis, Calibre, Vectre, Verone, Chaparel e Pacer. O favorito, logo de cara, foi Alexis — soava elegante, fluido e aristocrático para os anglófonos. Os japoneses, contudo, acharam que “Alexis” soava como um nome de mulher rica de série de TV. E era mesmo: Alexis era o nome de uma das protagonistas da série de Dynasty, um sucesso de audiência da época, e ela era uma típica vilã de novelas.

A solução foi remover a letra “A” do início, e dar um novo significado à palavra, adaptando sua grafia de “Lexis” para “Lexus”. A defesa criativa dizia que a palavra era uma fusão semântica de “luxury”, “elegance” e “technology”, que soa latina ou europeia, mas não é de lugar algum, e não significa nada específico, então só pode significar aquilo que for associado a ele, no caso, aquele novo carro. Em 1987 o nome foi aprovado e, a partir dali, foi desenvolvida a identidade visual, como o logotipo e a tipografia.

Há uma versão alternativa sobre a origem do nome, que fala sobre significa Luxury EXport to US, mas não existe em documento nenhum da Toyota sobre isso, e nenhum dos criadores confirmou esta versão. Ela é apenas um acrônimo inventado por fãs anos depois.

Já o nome do carro, foi definido junto da marca: LS400, de “Lexus Sedan 400”, número que designa o deslocamento do motor em decilitros, como fazia a Mercedes-Benz na época.


O Lexus LS400 foi apresentado ao mundo em janeiro de 1989 no Salão de Detroit. Tanto os rivais quanto os jornalistas esperavam um preço altíssimo para compensar o desenvolvimento bilionário de quase sete anos. A Toyota, contudo, chocou o mundo ao anunciar preço inicial de US$ 35.000 — US$ 95.000 em valores corrigidos.

Isso não era apenas um preço competitivo; era uma declaração de guerra. O Mercedes-Benz 420 SE custava US$ 61.000 (US$ 160.000 em 2025) e um BMW 735i ficava nos US$ 55.000 (US$145.000). O Lexus oferecia mais tecnologia, mais silêncio, mais confiabilidade e mais equipamentos de série por quase metade do preço de um Mercedes similar.

A reação dos concorrentes foi de pânico e negação. Executivos da BMW acusaram publicamente a Toyota de dumping. Eles argumentavam que era impossível construir um carro com aquela quantidade de alumínio, couro, madeira e eletrônica por aquele preço e ainda lucrar. A Toyota, no entanto, tinha uma arma que os alemães não possuíam: o Toyota Production System, o famoso “Toyotismo”. A eficiência extrema das fábricas japonesas, combinada com a desvalorização cambial favorável no início do projeto permitiu essa agressividade. Mesmo que a margem de lucro fosse pequena inicialmente, o objetivo era a conquista de território.

Além do preço, a Lexus introduziu uma revolução no serviço ao cliente. As concessionárias Lexus nos EUA foram desenhadas para parecerem lobbies de hotéis de luxo. O conceito de “omotenashi” (hospitalidade japonesa) foi aplicado rigorosamente. Se um carro precisasse de um recall (e houve um, logo no início, para consertar uma luz de freio e o cruise control), a Lexus não esperava o cliente vir. Eles buscavam o carro, deixavam um veículo substituto de igual valor, lavavam o carro e devolviam com o tanque cheio e um presente no banco do passageiro. Era o início do famoso pós-venda pelo qual a Toyota é conhecida atualmente.

Diferentemente do que se imagina — e como o verdadeiro significado do nome deixa claro — o Lexus LS400 não foi voltado apenas ao mercado americano. Ele também foi vendido no Japão como Toyota Celsior. Lançado em outubro de 1989, o Celsior vivia em um ecossistema diferente. No Japão, a Toyota operava (e ainda opera) múltiplas redes de concessionárias distintas que trabalhavam com cada segmentação da marca: Toyota Store, Toyopet Store, Corolla Store e Netz Store. O Celsior foi alocado exclusivamente à rede Toyopet Store.

Parece um Lexus, mas é um Toyota

O posicionamento do Celsior era delicado. Ele precisava ser superior ao venerável Toyota Crown, mas não podia ofender a majestade imperial do Toyota Century — não por acaso, o carro da Família Real. O nome “Celsior”, do latim “mais alto” ou “supremo”, indicava sua ambição.

Para o mercado japonês, onde as ruas são mais estreitas e o asfalto varia, a Toyota introduziu tecnologias de suspensão ainda mais avançadas. O Celsior estreou os primeiros amortecedores twin-tube de alta performance do mundo em um carro de produção. Além disso, oferecia como opção uma suspensão a ar eletrônica integrada ao sistema Piezo TEMS (Toyota Electronic Modulated Suspension). Esse sistema usava sensores piezoelétricos para ler a superfície da estrada e ajustar a rigidez dos amortecedores em milissegundos, antes mesmo que a roda terminasse de passar pelo buraco. Era o precursor das suspensões ativas modernas.

O Celsior também enfrentava a realidade burocrática do Japão: seu porte e cilindrada o colocavam na faixa de tributação mais alta, o que fez dele um símbolo de status local.


O impacto do Lexus LS 400 foi imediato e devastador. As vendas do Mercedes-Benz Classe S e do BMW Série 7 nos Estados Unidos despencaram. A Cadillac e a Lincoln, que já sofriam com a mediocridade de seus produtos na década de 1980, se tornaram obsoletos e irrelevantes imediatamente.

Mas o legado mais profundo do LS 400 foi forçar a Europa a evoluir. A Mercedes-Benz, ferida em seu orgulho, adiou o lançamento da geração seguinte do Classe S, porque entendeu que precisaria superar aquele japonês ousado. O resultado foi o W140 um carro extremamente avançado, complexo e, claro, caro de produzir e de vender. Foi um projeto tão caro que a Mercedes ressuscitou a marca Maybach para aproveitar a plataforma em um modelo de maior valor agregado. No fim ele foi realmente superior ao Lexus LS400, mas a um custo altíssimo. A BMW acelerou o desenvolvimento de seus novos motores V8 para o Série 7 e a Audi, então uma marca premium de segundo escalão, viu o caminho aberto pela Lexus como um modelo a seguir com seu A8 de alumínio.

O Lexus LS 400 provou que o luxo não era um direito de nascença europeu. Ele democratizou a qualidade. Antes do LS 400, aceitava-se que um carro de luxo fosse “temperamentao” — um eufemismo para quaisquer tipos de falhas crônicas. O LS 400 mostrou que isso estava errado.

Hoje, quando entramos em um sedã moderno e notamos o silêncio da cabine, a suavidade do câmbio, o ajuste elétrico do volante e a iluminação eletroluminescente do painel, estamos vivendo no mundo que o Projeto F1 construiu. Eiji Toyoda e Ichiro Suzuki não apenas construíram um carro; eles forçaram todo o segmento de luxo a escalar um novo patamar, marcando também o fim da era do luxo analógico e o início da era da perfeição digital.


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