No final do Século XIX o Brasil vivia um momento de otimismo dos governantes. A Monarquia acabara de ser derrubada e a República, inspirada pelos ideais positivistas de ordem e progresso, via a ciência e a técnica como ferramentas para reformar e modernizar a sociedade.
Para a elite política e intelectual, a cidade do Rio de Janeiro era, na virada do século, uma vergonha e um obstáculo a esse progresso. Ela era caracterizada por ruas estreitas, esgoto a céu aberto, aglomeração e surtos endêmicos de febre amarela e varíola, o que alimentava a imagem — repetida em jornais e relatórios médicos — de uma capital profundamente doente. Foi quando o movimento higienista, já influente desde décadas anteriores e reforçado pelo ideário republicano, passou a orientar a saúde pública com mais força. Defendia-se que a cura para esses males estava na reforma física do espaço urbano. A lógica era brutalmente simples: a miséria social (e, consequentemente, a doença e o crime) era um produto do ambiente insalubre. Para reformar o homem, era preciso demolir o seu ambiente.
A referência arquitetônica e urbanística era Paris, a qual fora transformada pelo Barão Haussmann, décadas antes, pela abertura de avenidas e parques e pela implementação de um rigoroso sistema de saneamento, destruindo o labirinto medieval que era a Paris antiga. Essa visão de avenidas amplas, que facilitavam a ventilação e reforçavam o controle sobre a circulação urbana, logo tornou-se o sonho da elite carioca.
A partir desse movimento, consolidado e adotado pelo poder público na virada do século, começou a política que depois seria conhecida como Bota-Abaixo, com desocupações dos cortiços em uma velocidade inédita. A ciência — ou aquilo que se compreendia como ciência na época — passou a justificar a remoção sumária de milhares de pessoas que viviam espremidas nos cortiços. Até então, eles eram apenas um problema moral. A partir dali, tornaram-se um problema sanitário. E quando uma questão social muda de categoria, muda também a intensidade das ações autorizadas contra ela. O discurso higienista forneceu a legitimidade perfeita para a operação: a cidade precisava respirar, e para isso era necessário expulsar tudo o que, supostamente, a sufocava.

A demolição dos cortiços não foi apenas uma limpeza urbana. Foi também uma mensagem clara de que nem todo mundo iria se beneficiar daquela nova cidade de ruas amplas e arborizadas, porque não havia um plano de habitação para os moradores expulsos dos cortiços. Eles foram deixados à própria sorte. Sem alternativas, encontraram nos morros e nas áreas menos valorizadas — e por isso menos fiscalizadas — os únicos lugares onde podiam se estabelecer sem incomodar a política higienista. Assim se consolidaram, na forma como conhecemos hoje, as primeiras favelas. Enquanto o centro ganhava avenidas largas e prédios afrancesados para atender ao ideal de uma capital “civilizada”, o Rio real — o das pessoas pobres e marginalizadas — se deslocava para fora daquele panorama idealizado e elitista.

Existe um paralelo claro entre o elitismo higienista e a cidade ideal do urbanismo contemporâneo. No lugar dos cortiços, os automóveis. No lugar do esgoto e das doenças sanitárias, a poluição dos automóveis e as doenças respiratórias. Todo o resto é igual: a solução importada da Europa, a suposta melhora na qualidade de vida e, claro, os efeitos colaterais negativos. Porque, afinal de contas, fechar uma via expressa para fazer um parque não fará os carros desaparecerem. Eles simplesmente irão para outro lugar, levando seu problema para onde os olhos não conseguem enxergar.
Você sabe do que estou falando: aquela história em que a cidade remove os carros de uma avenida histórica, cria ciclovias e transforma o asfalto em parque linear. Seis meses depois, aparecem as fotos bonitas: crianças brincando onde antes passavam ônibus, pessoas tomando café em mesinhas charmosas, árvores onde antes havia barulho e poluição. É a cidade do futuro. Ordenada e próspera.
O problema é que essa história sempre acaba no momento exato em que a transformação parece mágica. Ela não mostra o que aconteceu três quarteirões adiante. Ninguém conta quanto custou essa transformação para quem não aparece na foto — e eu não estou falando de dinheiro. E, aparentemente, ninguém faz a pergunta mais óbvia a se fazer: para onde foram os carros que não podem mais passar por ali?
Afinal, carros não são como fumaça que se dissipa quando você abre a janela. São objetos físicos operados por pessoas reais que têm destinos reais. E quando você bloqueia uma via, esses carros não desaparecem — eles vão para outro lugar. Vão sempre, embora parte do tráfego realmente possa se reduzir quando há alternativas viáveis. O que as prefeituras adoram chamar de “evaporação do tráfego” é, na maioria das vezes, apenas uma transferência do problema dali para outro lugar.
Nos últimos dez anos, dezenas de grandes cidades ao redor do mundo implementaram mudanças radicais na mobilidade urbana. Barcelona criou os “superblocos”. Paris removeu carros das margens do Sena. Londres expandiu sua zona de baixa emissão. Bruxelas redesenhou o centro inteiro. Madrid reconfigurou sua zona de acesso restrito. San Francisco baniu carros da Market Street. Seul demoliu um viaduto inteiro para criar um parque. Oxford virou campo de batalha cultural. Estocolmo transformou o acesso ao centro em commodity. Nova York travou uma disputa logística consigo mesma. Até mesmo Curitiba, cidade-modelo do planejamento urbano, teve seus problemas.
Todas essas intervenções foram vendidas como avanços civilizatórios. E em certo sentido, foram. Mas o que raramente se discute — o que é quase um tabu no urbanismo contemporâneo — são os efeitos colaterais destas intervenções. As vítimas invisíveis. O custo que alguém pagou para que aquele parque existisse.
Foi pensando nisso que eu fiz a pergunta óbvia — para onde foi todo mundo depois destas intervenções? — e comecei a procurar as respostas.
Os superblocos de Barcelona
A ideia das “superilles” — ou “superblocos” — é simples e sedutora. Você pega nove quarteirões e os agrupa em um único grande quarteirão. O tráfego de carros é desviado para o perímetro. As ruas internas viram espaços de pedestres, bicicletas e lazer. O primeiro superbloco foi implementado em Poblenou em 2016. As fotos eram lindas. Crianças desenhando no asfalto. Idosos jogando dominó nas praças recém-criadas. A imprensa internacional celebrou. Barcelona virou modelo mundial.

Mas dentro daqueles nove quarteirões, outra história estava acontecendo. Donos de pequenos negócios — padarias, oficinas mecânicas, lojas de bairro — começaram a reportar quedas no faturamento. Clientes que vinham de carro de outros bairros simplesmente pararam de aparecer. A logística de entrega virou pesadelo. Fornecedores eram multados ou não conseguiam acessar as lojas. Alguns comerciantes organizaram protestos. Outros apenas fecharam as portas.
E os carros? É lógico que as pessoas não guardaram o carro na garagem para fazer tudo a pé. Só que agora, em vez de rodar distribuídos por nove quarteirões, estavam todos concentrados nas vias perimetrais. Vias como a Gran Via e a Carrer de Tarragona registraram aumento mensurável de tráfego após a implementação — especialmente nos horários de pico —, gerando congestionamentos persistentes, ruído constante e poluição concentrada. Os moradores dessas vias viram sua qualidade de vida despencar. A poluição do ar não foi reduzida de verdade. Ela só foi deslocada para outro lugar.

Mas o efeito mais problemático foi outro. Os superblocos funcionaram bem demais. Eles tornaram os bairros extremamente desejáveis. O resultado? Explosão nos preços de aluguel e imóveis. Os moradores originais — classe trabalhadora, idosos que viviam ali por décadas — começaram a ser expulsos porque não conseguiam mais pagar o aluguel. A “revitalização” beneficiou uma nova população mais rica e, principalmente, investidores imobiliários — um fenômeno tão intenso que a pressão do mercado ajudou a alimentar a crise dos alugueis de curto prazo (como AirBnB), que se tornou um problema sério e gerou uma reação popular que levou, em junho de 2024, à decisão de proibir novas licenças de aluguel turístico na cidade.
É o que os sociólogos chamam de “gentrificação verde”. Você melhora tanto um bairro que as pessoas que moravam lá não podem mais morar lá. O objetivo era outro, mas o resultado foi uma higienização social com cara de progresso ambiental.
A guilhotina automotiva de Paris
Desde que Anne Hidalgo assumiu a prefeitura de Paris em 2014, a cidade declarou guerra aos carros. A Rue de Rivoli virou quase exclusiva para bicicletas e ônibus. As vias expressas ao longo do Sena — a famosa Voie Georges Pompidou — foram permanentemente transformadas em parques. Paris removeu cerca de 60.000 vagas de estacionamento. Reduziu limites de velocidade para 30 km/h em quase toda a cidade.
Para quem mora dentro de Paris — especialmente a elite “bobo” (bourgeois-bohème) dos bairros centrais — foi maravilhoso. Você pode andar de bicicleta, pegar metrô, caminhar. A cidade ficou mais silenciosa, mais verde, mais agradável. É um paraíso urbano.

Mas Paris tem um problema estrutural que o urbanismo evita mencionar: a cidade não existe sozinha. Há milhões de pessoas que trabalham em Paris mas moram nas banlieues — os subúrbios afastados, muitas vezes fora de Paris, onde o famoso Metropolitain não chega. Essas pessoas não têm escolha. São prestadores de serviços de todos os tipos, de enfermeiras a encanadores, de eletricistas a zeladores, que precisam morar a 30, 40 quilômetros do centro, porque é onde conseguem pagar aluguel.
Para esses trabalhadores, o tempo de deslocamento diário aumentou em vários corredores viários — especialmente após a redução de faixas e a eliminação de parte das vias de circulação rápida. As poucas vias de acesso que ainda permitem carros têm engarrafamentos monstruosos. Quem antes levava 45 minutos agora leva até duas horas. E quando há greve — o esporte nacional dos franceses —, a cidade entra em colapso. Paris virou uma cidade para quem pode pagar para morar nela. Para todo o resto, virou um pesadelo logístico diário.
Empresas de entrega, taxistas, artesãos — encanadores, eletricistas — relatam que trabalhar em Paris virou inferno. Alguns simplesmente se recusam a prestar serviços em certos bairros. Ou cobram taxas exorbitantes para compensar o tempo perdido no trânsito e as multas inevitáveis, encarecendo o custo de produtos e serviços. A cidade ficou linda, mas virou inacessível para quem não mora nela.
Em Londres é caro ser pobre
Londres teve sua Taxa de Congestionamento implementada em 2003. Mas nos últimos anos, a cidade expandiu agressivamente o ULEZ — Ultra Low Emission Zone —, que penaliza carros mais antigos e poluentes com taxas diárias. Faz sentido: você desestimula carros velhos e poluentes, incentiva carros modernos, elétricos e híbridos, melhorando a qualidade do ar.

O problema, novamente, é a elitização. Para um médico que dirige seu BMW i5 elétrico, a taxa é zero. Para o empreiteiro que instala piso vinílico em salas comerciais usando sua van diesel 2010, a circulação diária nestas zonas pode comprometer 10% de sua renda mensal. Isso forçou milhares de trabalhadores essenciais a uma escolha difícil: gastar uma parte significativa da renda em taxas, ou vender o veículo com prejuízo (porque ele desvalorizou ao perder utilidade dentro da zona) e gastar uma parte significativa de sua renda no leasing. Claro: ele pode ainda simplesmente abandonar o emprego e procurar outro em outro lugar que não tenha taxas por rodar com um carro de 15 anos.
O comércio local que depende de clientes vindos de fora da zona de taxação também sofreu. Pequenos negócios reportaram quedas significativas no faturamento. Mas fica pior: estudos do próprio Transport for London mostraram que, embora os níveis de NO₂ tenham caído dentro da ULEZ, em alguns trechos do South Circular houve aumento localizado devido à redistribuição do fluxo, para onde parte dos veículos foi desviada. Moradores dessas áreas, frequentemente mais pobres que os do centro, viram sua qualidade do ar piorar.
Bruxelas e a solução que ninguém pediu
O plano “Good Move” de Bruxelas é um caso quase didático de como não fazer planejamento urbano. A ideia era reduzir o tráfego de passagem no centro criando “malhas” ou “loops” de circulação. Motoristas não poderiam mais atravessar o centro — seriam forçados a circular por um anel viário externo.
O plano foi implementado rapidamente em 2022, com pouca consulta pública. A reação evidente foi uma revolta popularMoradores e comerciantes foram às ruas, houve vandalismo da sinalização e bloqueios de ruas. A crítica central era simples: ninguém perguntou nada para eles. A decisão de cima para baixo, feita por tecnocratas que não seriam afetados por estas decisões.

Como se não bastasse a reputação incinerada, o plano criou um efeito colateral grotesco. Ao forçar todo o tráfego para o anel viário perimetral, essas vias entraram em colapso. E sabe quem usa essas vias? O transporte público que deveria se beneficiar do plano. Ele ficou preso no congestionamento que o próprio plano criou.
Os comerciantes, especialmente em bairros de imigrantes como Cureghem, foram os mais afetados. Os moradores argumentaram que o plano era elitista, feito para moradores ricos do centro que não precisam de carro e não compram nos estabelecimentos comerciais destes moradores — os clientes e fornecedores são de outros bairros e dependem do carro. Resultado: a logística de entrega se tornou um pesadelo e os custos aumentaram, claro. Muitos estabelecimentos familiares não conseguiram se adaptar e fecharam as portas.
Madrid tira o casaco, coloca o casaco
O caso de Madrid é fascinante porque mostra a divisão social e política que essas medidas causam. O “Madrid Central” foi implementado em 2018, criando uma ampla Zona de Baixas Emissões onde apenas residentes e veículos autorizados podiam entrar. A medida se tornou tão controversa que dominou a eleição municipal seguinte. O novo governo eleito em 2019 anunciou que iria cancelá-la e chegou a suspender multas por algumas semanas, mas o sistema nunca foi realmente desativado porque decisões judiciais mantiveram as restrições em vigor. Depois, mudou o governo de novo, e a medida foi substituída pelo “Madrid 360”, que preservou a estrutura do Madrid Central, mas com flexibilizações específicas para hotéis, comerciantes e serviços de entrega.
O vai-e-vem gerou caos. Comerciantes que haviam investido em frotas de entrega elétricas para se adaptar viram a regra mudar de repente. Os consumidores não sabiam mais o que era permitido ou não. A cidade ficou paralisada pela incerteza sobre as regras.

A crítica mais ferrenha, contudo, foi sociológica: o plano criou uma “fortaleza” para a elite. O centro de Madrid ficou caro e oficialmente restrito a veículos autorizados e/ou residentes — exatamente como nos loteamentos fechados do litoral de São Paulo. Embora a circulação de pedestres, ciclistas e transporte público tenha permanecido totalmente livre, a limitação para carros particulares reforçou a percepção de exclusividade. Ao restringir o acesso, a prefeitura beneficiou os residentes ricos — que viram seus imóveis valorizarem — e excluiu uma parcela significativa dos cidadãos da área metropolitana que tinham o centro da cidade como local de trabalho, compras ou lazer, mas dependiam do carro para chegar lá.
O setor de hotelaria e restaurantes sofreu. Embora houvesse exceções para entregas, o sistema era burocrático e confuso. Ainda assim, o impacto não foi uniforme: alguns estabelecimentos enfrentaram queda de fluxo no início, enquanto outros acompanharam o crescimento recorde do turismo na cidade em 2019. Mais importante: os funcionários desses estabelecimentos — garçons, cozinheiros, pessoal de limpeza — trabalham em horários alternativos, quando o transporte público é escasso. Como muitos moram na periferia, claro, ir e voltar do trabalho ficou mais caro e mais demorado.
San Francisco e o muro invisível
Em 2020, San Francisco implementou o “Better Market Street”, banindo carros particulares da maior parte da Market Street — a principal artéria da cidade — para priorizar ônibus, bondes, táxis e bicicletas.
A Market Street ficou livre. Mas as ruas paralelas — Mission, Folsom, Howard — viraram rios de carros parados. Essas ruas, muitas residenciais ou de comércio local, não foram projetadas para absorver o volume de uma artéria principal. A poluição e o ruído não diminuíram. Só mudaram de CEP, frequentemente impactando comunidades de menor renda como o SoMa.

E a implementação foi criticada por sua rigidez. Motoristas de aplicativo, serviços de entrega e — o mais crítico — serviços de paratransit (transporte para pessoas com deficiência) tiveram dificuldades imensas. Buscar um idoso ou deixar um cadeirante em um prédio na Market Street virou operação logística complexa e estressante, criando barreiras de acesso para populações vulneráveis.
Embora a COVID tenha sido o fator principal, muitos lojistas na Market Street culparam o banimento dos carros por agravar a crise do varejo. A chegada de clientes de outras partes da cidade ficou mais difícil, e a percepção de um centro “inacessível” contribuiu para seu esvaziamento.
Seul e o preço do cartão postal
O projeto de restauração do ribeirão Cheonggyecheon, concluído em 2005, é a joia da coroa do urbanismo sul-coreano e a inspiração para esta matéria. Uma antiga via elevada poluída de quase seis quilômetros foi demolida. No lugar, emergiu um parque linear com um riacho revitalizado. A ambição era ambiental e estética: resgatar um símbolo histórico e reduzir o efeito ilha de calor no denso centro.
O sucesso estético foi inegável. O parque agora atrai milhões de visitantes, melhorou a biodiversidade na área central e reduziu a temperatura local em alguns graus. Ganhou prêmios internacionais. Virou modelo global. Mas a pergunta que deveria ter sido feita era óbvia: o que aconteceu com os cerca de 160.000 carros que usavam aquela via diariamente?

Os urbanistas de Seul tinham uma resposta pronta, baseada no princípio da demanda induzida negativa. Se você remove a capacidade rodoviária, as pessoas mudam de hábito. Em parte, isso aconteceu. O transporte público aumentou sua participação modal na área. Mas a grande verdade é que a maioria do tráfego não evaporou. Apenas se reorganizou de forma mais ineficiente e desigual.
O tráfego de passagem e de carga que não tinha como usar o metrô foi empurrado para outras vias de grande capacidade e, principalmente, para os anéis viários periféricos da cidade. Seul limpou e acalmou seu centro para a elite de escritórios e turismo, mas o custo do congestionamento e da poluição foi transferido para os subúrbios e cidades-satélite. Embora o volume geral no centro tenha diminuído, a velocidade de tráfego nas rotas alternativas ficou mais lenta, aumentando o consumo de combustível e, ironicamente, as emissões totais de gases poluentes em certas horas do dia nas áreas adjacentes.

Além disso, a área sob o viaduto não era espaço vazio. Havia ali um distrito comercial de classe média, abrigando centenas de pequenas e médias empresas — oficinas, vendedores de ferramentas, lojas de eletrônicos, mercados. Esses negócios dependiam do acesso fácil para carros e caminhões e do baixo custo do aluguel. A demolição da via e a gentrificação imediata da área forçaram a realocação ou o encerramento de muitos desses pequenos estabelecimentos. A prefeitura tentou realocá-los para um complexo comercial moderno chamado Garden 5, nos subúrbios. Foi um desastre completo. Longe de sua clientela e do ecossistema de negócios, nem mesmo a estação de metrô adjacente evitou que cerca de 1.500 desses pequenos comércios falissem.
O parque verde foi construído, portanto, sobre a ruína econômica da classe trabalhadora local. A remoção custou cerca de US$ 900 milhões para a construção, mas o custo real foi, além do dinheiro público, o tempo e os transtornos para trabalhadores que moram fora da região, e a falência dos comerciantes realocados.

Foi uma melhoria que a Coreia do Sul, por ser rica e ter um transporte público de primeira, pôde se dar ao luxo de pagar. Mas não é modelo simples para cidades com menos recursos. No fim, é mais um caso de purificação central à custa do sofrimento periférico.
Estocolmo e a privatização do centro
Estocolmo costuma ser um modelo de eficiência e sustentabilidade. Desde 2007, a cidade implementou de forma permanente o Pedágio de Congestionamento, exigindo que veículos paguem uma taxa para cruzar os portais da zona tarifada em dias úteis. O objetivo era nobre e técnico: reduzir o tráfego em até 25%, diminuir o tempo de viagem e cortar as emissões. E tecnicamente, o sistema funcionou. O tráfego diminuiu e o centro é, de fato, mais agradável.
O problema não está na eficácia da engenharia de tráfego, mas na filosofia sociológica por trás da medida. Em vez de investir em alternativas para dissuadir o uso do carro, Estocolmo optou por uma solução elitiza o acesso ao centro da cidade.

O pedágio urbano não é uma medida “anti-carro”, e sim uma medida “anti-pobre-que-dirige”. O centro da cidade deixa de ser um espaço acessível a todos porque, na prática, passou a cobrar entrada. Para o rico pesa pouco, mas quem sente o peso é o trabalhador de classe média ou inferior que depende do carro para transportar material de trabalho ou simplesmente atende vários clientes ao longo do dia.
O sistema de pedágio reduz o volume, mas o que resta é o tráfego essencial — logística, emergência — e o tráfego dos que podem absorver o custo. A política privatiza a conveniência de dirigir no centro. Embora haja isenções para serviços de emergência, o custo é absorvido pelas empresas de entrega e logística, que repassam o preço para bens e serviços, criando aumentos de custo, resultando em custo de vida mais alto para quem vive ou trabalha na área central.
E quem mora nas áreas externas e precisa de carro para chegar a uma estação de transporte público ou cruzar a cidade para um emprego especializado ainda enfrenta o desafio do congestionamento e, se tiver que entrar na zona tarifada, o custo adicional. A vida na periferia continua dependente do carro, o centro fica elitizado.

Tem outro detalhe importante: o sistema de Estocolmo é amplamente automatizado, usando câmeras para ler placas e enviar as contas. O governo agora tem registro exato de quem, quando e como usa a malha viária, criando precedente para uso desses dados em outras formas de controle e fiscalização. Ainda que existam leis rígidas de privacidade de dados e informações, os habitantes da cidade não estão confortáveis com a ideia de ter seus deslocamentos monitorados pelo Estado.
No fim, embora Estocolmo tenha atingido seus objetivos de tráfego e clima, o preço disso foi a violação do princípio de que o espaço público da cidade central deve ser igualmente acessível a todos os cidadãos. Para um país que calcula o valor de algumas multas de trânsito com base no salário do infrator, essa medida soa, no mínimo, incoerente.
Nova York e o fim da carga e descarga
Enquanto as cidades europeias discutem gentrificação pelo preço, Nova York debate a gentrificação pelo espaço. As medidas recentes da cidade para se tornar mais amigável a ciclistas e pedestres — convertendo vagas de estacionamento em praças públicas e expandindo a rede de ciclovias protegidas — são símbolo do urbanismo progressista nos EUA. O objetivo é reduzir as mortes no trânsito através da Vision Zero, desincentivar a posse de carro e usar o espaço público de forma mais criativa e equitativa.

Mas em uma cidade que vive de entregas e de pequenos negócios que dependem do acesso viário, a diminuição de espaço para carros e, principalmente, de vagas de carga e descarga gerou caos logístico e insatisfação dos comerciantes e trabalhadores, que encontram cada vez menos espaços para estacionar os veículos de carga. O resultado não foi a redução do tráfego, mas um aumento nos estacionamentos em fila dupla — que reduzem a visibilidade dos outros motoristas e criam situações de risco.
Muitos moradores de bairros mais distantes, incluindo comunidades de baixa renda fora de Manhattan, dependem do carro para ir ao trabalho. Para eles, as políticas de restrição de tráfego são vistas como interferência elitista que não oferece alternativa de transporte público decente — percepção amplamente documentada em reuniões comunitárias e audiências do Departamento de Transporte de Nova York (DoT).
Além disso, o aumento da rede de ciclovias criou um novo problema de segurança: o choque entre a velocidade dos ciclistas, das bicicletas elétricas e das scooters — muitas vezes conduzidas ilegalmente na contramão ou em velocidade excessiva — e a segurança dos pedestres. O espaço “livre de carros”, se tornou um ponto de conflito entre veículos e pedestres: os relatórios oficiais do DoT, mostram um aumento significativo de atropelamentos de pedestres por e-bikes e scooters desde 2019.
Nova York é o perfeito exemplo da dificuldade em se aplicar o modelo europeu à realidade americana — especialmente em Nova York, uma cidade que depende de veículos de entrega, porque mais de 90% das mercadorias chegam por transporte rodoviário. Lembrou do Brasil? Temos um exemplo local também.
O modelo curitibano
Curitiba é a menina dos olhos do urbanismo brasileiro. Governada pelo renomado arquiteto e urbanista Jaime Lerner em três mandatos não-consecutivos, ela foi a primeira cidade do Brasil a implementar soluções modernas de mobilidade e planejamento urbano.
Um deles, são as Ruas da Cidadania. O conceito é nobre: espalhar pela cidade edifícios que concentram serviços municipais — setores da prefeitura, postos de saúde, assistência social — e que se tornam polos de comércio, lazer e convivência. O objetivo é que o cidadão não precise se deslocar até o centro da cidade para resolver questões burocráticas ou ter acesso a serviços básicos.

Funcionou e funciona até hoje, mas também deixa transparecer a realidade das cidades: não há urbanismo capaz de descentralizar os melhores salários. Os empregos de maior renda, o capital financeiro, a alta gestão, os serviços de maior valor agregado continuam concentrados no eixo Centro-Batel-Cabral e no corredor estrutural Sudeste – onde ficam os escritórios e serviços de alto padrão desde os anos 2000. O trabalhador que mora na periferia, próximo a uma Rua da Cidadania, resolve seus problemas de IPTU em 15 minutos. Mas ainda precisa enfrentar uma longa viagem de ônibus para chegar ao trabalho no centro expandido — a descentralização é de serviços públicos, não de oportunidades econômicas.
A maior parte dos empregos formais de média e alta renda permanece fortemente centralizada, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e do Ministério do Trabalho. O planejamento não quebrou a lógica da segregação socio-econômica: o centro é para o capital, a periferia é para a mão-de-obra. O próprio IPPUC reconhece a concentração de empregos no “setor estrutural central” como desafio não resolvido.

Além disso, apesar do famoso sistema de BRT, Curitiba tem um histórico de expansão focada no automóvel. A partir dos anos 2000, a prioridade dada a binários, viadutos e ligações metropolitanas reforçou o fluxo rodoviário, reduzindo o peso relativo do transporte coletivo no planejamento urbano. A infraestrutura urbana tem se expandido para priorizar o fluxo rodoviário na conurbação metropolitana.
Esses dez casos — Barcelona, Paris, Londres, Bruxellas, Madri, San Francisco, Seul, Estocolmo, Nova York e Curitiba — mostram um padrão claro. Quando cidades implementam mudanças radicais sem investimento prévio em transporte público para absorver a demanda, sem plano logístico para abastecimento e serviços essenciais, e sem mecanismos de proteção social como controle de aluguéis ou subsídios para troca de veículos, o resultado é sempre o mesmo: deslocamento de problemas, aprofundamento da desigualdade e gentrificação. A cidade ideal de 15 minutos acaba sendo cidade apenas para os ricos que podem pagar para viver e trabalhar nela.
O problema não é a intenção. A intenção é boa. Cidades mais caminháveis, menos poluídas, mais verdes — isso é objetivamente desejável. Mas você conhece o ditado e sabe qual é o lugar cheio de boas intenções. O problema é a implementação dogmática que ignora a realidade de que cidades são organismos complexos. Você não pode simplesmente remover uma artéria e esperar que o sangue pare de circular.
Os carros não desaparecem. As pessoas que dependem deles não desaparecem. Os pequenos negócios que precisam de logística não desaparecem. Você apenas os empurra para outro lugar. E esse deslocamento costuma seguir o padrão no qual as áreas centrais ficam mais tranquilas enquanto os impactos se concentram em regiões periféricas.
A narrativa dominante no urbanismo progressista trata o carro como vilão moral. E há verdade nisso — cidades pensadas apenas para carros são inconvenientes. Mas a resposta não é tratar o carro como se fosse apenas capricho de gente egoísta.
Para milhões de pessoas, o carro não é luxo. É uma ferramenta de trabalho essencial, uma necessidade logística, é a diferença entre ganhar bem ou ganhar mal, ter emprego ou não ter emprego. Ignorar essa realidade não faz o problema desaparecer, apenas o transfere para quem tem menos capacidade de pagar por ele. As fotos bonitas das ciclovias e dos parques são reais. Mas as histórias que não aparecem nas fotos também são reais. E por isso mesmo não podemos fingir que não existem. Os cortiços não nos ensinaram nada?


