No início dos anos 1980, a Mazda era uma empresa que ainda carregava cicatrizes recentes, mas ainda mantinha ambições elevadas — algo raro para uma fabricante do seu porte. A década anterior havia sido marcada pela crise do petróleo, pelo colapso do mercado dos carros grandes e pela ameaça concreta de falência depois que a Mazda apostou quase tudo no motor rotativo numa época em que consumo de combustível havia se tornado uma questão de vida ou morte.
A empresa só sobreviveu porque Kenichi Yamamoto — engenheiro, estrategista e talvez o personagem mais influente da história da marca — reorganizou completamente o programa Wankel. Ele unificou equipes que nem se falavam, criou métodos de validação e estabeleceu um controle de qualidade com tal rigorosidade que a Mazda nunca tinha experimentado antes. O resultado foi o RX-7 de primeira geração, que foi lançado em 1978 e provou que o motor rotativo podia ser confiável, esportivo e vendável.
Esse sucesso não enriqueceu a Mazda, mas deu a ela algo mais valioso: autonomia técnica. Quando Yamamoto assumiu cargos mais altos dentro da companhia, ele levou consigo engenheiros jovens, com liberdade intelectual e pouquíssimo apego ao “jeito tradicional” de pensar carros no Japão daquela época. Com isso, a Mazda desenvolveu sua própria cultura interna: pequenas equipes com muita liberdade de experimentação e com acesso direto à diretoria técnica. Era uma empresa onde ideias improváveis tinham chance real de avançar, desde que fossem tecnicamente defensáveis.
Ao mesmo tempo, o mercado rumava para uma direção que parecia hostil aos esportivos leves. A legislação americana começou a pesar a mão em testes de impacto e nas normas de emissões e ruído. A própria Mazda discutia internamente como afastar o RX-7 das limitações do mercado dos EUA, evoluindo-o para algo mais sofisticado — e, inevitavelmente, mais caro. Foi por isso que a segunda geração do modelo, a FC, lançada em 1985, já nasceu com a pretensão de enfrentar o Porsche 944 usando o motor rotativo como vantagem conceitual.
A mudança funcionou: o RX-7 chegou ao seu pico de vendas em 1986 e continuou vendendo muito bem nos anos seguintes. Mas essa mudança para o andar mais alto, deixou a Mazda sem uma oferta no segmento dos esportivos de entrada. Nascia ali a possibilidade de fazer algo ousado e criativo como o próprio RX-7 havia sido no fim dos anos 1970.
Diferentemente das gigantes rivais japonesas, que tinham uma cultura interna burocrática e produção extremamente rígida, a Mazda tinha linhas flexíveis e processos adaptáveis herdados da reestruturação pós-crise. Ela podia fabricar um carro de nicho sem quebrar seu modelo industrial. Em outras palavras: a Mazda poderia fazer um modelo de baixo volume sem prejuízo. Ela era uma empresa peculiar no melhor sentido: pequena, resiliente, comandada por engenheiros e convencida de que ousadia técnica era ser um diferencial real num mercado que começava a se acomodar.
Bob Hall não parecia, à primeira vista, alguém que mudaria o destino de uma fabricante japonesa. Era um jornalista automotivo que tinha passado para o outro lado do balcão, tornando-se um planejador de produtos. Era uma transição um tanto lógica: Hall, como jornalista, via os carros por outro ponto de vista — um ponto de vista que os engenheiros e executivos envolvidos nos projetos jamais conseguiriam ter. Não era um gerente de produto tentando entender os entusiastas: ele era um entusiasta com poder para influenciar a decisão da fabricante
Durante anos, Hall insistiu na tese de que o mundo tinha perdido seus pequenos esportivos. Não os supercarros, os esportivos acessíveis, que os entusiastas compram para curtir no fim de semana e eventualmente usam durante a semana para ir ao trabalho ou fazer compras. Carros que não têm seu apelo na potência ou na velocidade, mas na experiência de condução.
Esse tipo de carro havia sumido àquela altura dos anos 1980. Não por falta de demanda, mas por que seus fabricantes estavam cada um em seu inferno astral. A Triumph estava morta, mas ninguém a enterrava. A MG só sobrevivia por que fazia parte de um conglomerado estatal que estava prestes a ruir sob a mão de ferro de Margareth Thatcher. A Fiat tinha mais problemas internos do que modelos nas lojas. Havia compradores, mas não havia mais ninguém produzindo algo que se assemelhasse a um roadster de verdade — leve, mecânico, comunicativo.
Na verdade, havia o Alfa Romeo Spider, àquela altura com quase 20 anos de estrada e em sua segunda reestilização, conhecida como “Aerodinamica”. Como era a única opção do mercado, suas vendas começaram a crescer em 1983 e atingiram seus melhores números ao longo da década — mais uma prova de que o público queria um carro com aquelas características.
A Mazda percebeu isso de modo quase banal: Hall enviou um fax para a sede da fábrica, em Hiroshima, perguntando se a Mazda conseguiria lucrar com um carro de baixo volume de produção. A matriz respondeu que a estrutura suportaria um produto desse tipo. Foi nesse momento que Hall entendeu que poderia colocar sua ideia em prática, sem correr riscos nem ser ignorado pelos superiores.
Como não tinha autorização, ele também não tinha orçamento nem equipe para isso, então o projeto nasceu improvisado, ao melhor estilo “skunkworks”. A Mazda tinha um estúdio de design na Califórnia, criado para interpretar o gosto do mercado americano, mas que, na prática, funcionava como laboratório para ideias menos ortodoxas.
Esse estúdio era ocupado por gente com histórico pessoal que nenhum RH corporativo tradicional saberia classificar. Designers que tinham possuído todo tipo de roadster britânico; planejadores de produto que passavam fins de semana em autódromos de clubes locais; engenheiros que não pensavam em esportivos como uma categoria comercial, mas como uma extensão natural da própria vida. Era o reduto dos entusiastas da Mazda. Um bando de gearheads prontos para fazer o carro mais legal que eles fossem autorizados a fazer. Hall explicou sua ideia à equipe, disse que o carro poderia ser viável e deixou o entusiasmo fazer o resto. Aquela sugestão de Hall era o sinal que eles estavam esperando.
Naquele momento nascia o Projeto 729, um sonho coletivo de um esportivo divertido, leve e acessível, sonhado por gente que já sabia exatamente como fazer esse carro. Era apenas uma questão de colocá-lo em prática. Ou ao menos tentar. Se o fax de Bob Hall foi o gatilho, o estúdio da Mazda foi a combustão.

Norman Garrett, o primeiro engenheiro americano contratado pela Mazda para trabalhar ali, é o melhor exemplo desse espírito. Não havia separação clara entre expediente e entusiasmo; era o tipo de ambiente onde um rascunho de para-lama podia surgir no verso de um manual de RX-7 e imediatamente gerar uma conversa técnica sobre rigidez à torção. A equipe tinha, combinados, mais de 60 carros esportivos pessoais — Sprite, Spitfire, Elan, Europa, MGB. A equipe tinha repertório real.

A primeira maquete do Project 729, feita por Masao Yagi, era quase um ato de fé. Ele pegou a arquitetura de um carro econômico de tração traseira — o GLC, que estava longe de ser a base ideal — e tentou esculpi-lo até que se parecesse com algo digno do nome “esportivo”. Yagi fez o melhor possível com o que tinha, mas todos sabiam que aquele protótipo improvisado era apenas o primeiro degrau: ele foi enviado ao Japão para convencer a matriz a autorizar o projeto, algo muito mais persuasivo que uma pasta de esboços e uma planilha.

O mockup serviu ao seu propósito. A matriz viu, entendeu e liberou o avanço. O protótipo ganhou vida de verdade na Inglaterra e, meses depois, cruzou o oceano para enfrentar um teste muito mais revelador do que qualquer apresentação formal: rodar pelas ruas da Califórnia, diante de pessoas que não sabiam o que estavam vendo.
O local escolhido foi Santa Barbara. A cidade era próxima de Irvine, tinha clima estável e pouco trânsito — era o cenário ensolarado perfeito para um roadster. Além disso, eles queriam ver como um carro pequeno e conversível, ainda em forma de protótipo, seria percebido em um ambiente que já tinha tradição automobilística.

O protótipo voltou aos EUA acompanhado por figuras centrais da Mazda: Masataka Matsui, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento que raramente saía do Japão, e Shunji Tanaka, líder de design que acompanhava parte das avaliações para entender como as proporções e superfícies reagiam à luz natural. Os engenheiros da divisão norte-americana, como Norman Garrett e Mark Jordan, se alternavam ao volante.
Rodando à beira-mar, o carro causou impacto imediato. Os motoristas passavam devagar para observar aquele roadster desconhecido. Os ciclistas e pedestres paravam para olhar aquele carro sem nome nem marca. Jordan, em entrevistas posteriores, sempre descreveu isso como o primeiro momento em que percebeu que o projeto tinha potencial de ser um sucesso.
A certeza mesmo aconteceu quando o protótipo passou em frente a uma concessionária Porsche local. Havia um pequeno grupo olhando um 944 na vitrine quando o Mazda parou no semáforo, mas eles abandonaram o Porsche para se aproximar do protótipo e tentar descobrir que carro era aquele. Ele não se parecia com nada conhecido na época. Tudo isso sob o olhar dos dois executivos japoneses, silenciosamente impressionados por ver um protótipo roubando a atenção de um Porsche. Matsui voltou para o Japão e explicou à diretoria: “Talvez a gente deva fabricar mesmo esse carro.”
Foi nesse momento que o 729 deixaria de ser um experimento e se tornaria um projeto real, com orçamento e cronograma. A partir daí, o estúdio de Irvine começou oficialmente algo que já era sério desde o primeiro segundo: criar um esportivo leve que resgatasse a linguagem dos clássicos britânicos e italianos, mas resolvendo sistematicamente tudo aquilo que havia feito esses carros desaparecerem.
A filosofia era simples de enunciar e complexa de cumprir: simplificar e adicionar leveza. Garrett defendia que a linha de cintura deveria ser baixa o suficiente para que o motorista enxergasse o asfalto pela visão periférica. Jim Kilborne queria tirar o cinzeiro para economizar alguns gramas. Bob Hall insistia que, se pudessem, removeriam o rádio, porque a única música a bordo de um roadster deve ser seu próprio ronco. Eram exageros retóricos, mas funcionavam como norte para o projeto. A obsessão pela leveza iniciava as discussões e guiava desde ergonomia até geometria de suspensão.

O projeto conquistou até mesmo os engenheiros no outro lado do mundo, na sede da Mazda em Hiroshima. Mesmo os departamentos que não tinham comprometimento com o projeto, acabavam dedicando algumas horas extras ao 729 simplesmente para torná-lo realidade. Para vê-lo acontecer de verdade.
A Mazda, contudo, precisava resolver um problema antes: a plataforma improvisada do primeiro protótipo não serviria. O estilo estava ganhando forma, mas o que havia por baixo da carroceria de fibra e dos mockups de argila precisava melhorar muito.
Quando o Projeto 729 deixou de ser um exercício criativo e passou a ser tratado como um produto real, a primeira decisão de engenharia foi que o carro teria motor dianteiro e tração traseira. Não porque “esportivos são assim”, mas porque o objetivo era devolver ao mundo algo que havia desaparecido: um carro envolvente e divertido. Sem isso, não haveria Miata.
Havia também benchmarks explícitos: o Lotus Elan era o ideal absoluto de envolvimento. O Lotus 7 era a forma mais direta de enviar a potência para o chão. O Porsche 911 Cabriolet era referência de rigidez estrutural — um ponto crítico num conversível leve que precisava ser utilizável no dia-a-dia. Os pequenos britânicos clássicos eram estudados com a reverência de alguém que reconhece o valor histórico, mas também com a frieza de quem enxerga seus defeitos como avisos. O Miata não deveria repetir nenhuma de suas fraquezas, apenas destilar suas virtudes.

A equipe de engenharia japonesa, sob a direção de Toshihiko Hirai foi encarregada de transformar filosofia em hardware. Hirai acreditava que um carro só merecia existir se fosse internamente coerente. O 729 tinha coerência de sobra. Era só preciso defendê-la contra atalhos. Foi ele quem defendeu a adoção da a suspensão double wishbone nas quatro rodas. Hirai também garantiu o orçamento daquilo que se tornaria o elemento mais subestimado e mais importante da arquitetura do Miata: o Power Plant Frame (PPF).

O PPF não é uma invenção revolucionária, mas sua aplicação no Miata foi. Ele conecta de forma rígida motor, câmbio e diferencial através de uma peça metálica que funciona como coluna vertebral do trem-de-força. A ideia era eliminar a torção que ocorre nesses componentes quando o carro está sob carga lateral intensa. Em um carro leve, essa torção mata a precisão. Nas pistas que o Miata inevitavelmente frequentaria, essa imprecisão seria fatal para o carro.

Garrett trouxe à mesa uma solução usada na Ferrari Daytona, um tubo de torque que cumpria função semelhante. A Mazda não ia usar tubo de torque, mas o princípio era perfeito para o que buscavam: um carro que pudesse ser acelerado e desacelerado repetidamente, em segunda marcha, a 6.000 rpm, dentro de uma curva de alta, sem perder previsibilidade. É o que permite ao Miata ter aquela resposta imediata que conquista de cara quem o dirige.
O PPF também fez o conjunto motor-transmissão-diferencial atuar como massa única, reduzindo vibrações e simplificando a interação entre acelerador e eixo traseiro. O carro ficou mais afiado. Hirai também brigou por detalhes que, em outras empresas, cairiam na primeira rodada de corte: o tanque de combustível específico, a geometria de suspensão exclusiva, a rigidez localizada em pontos essenciais para uso em pista.
Enquanto a engenharia consolidava a espinha dorsal do 729, o estúdio tentava envolver tudo isso numa carroceria que não fosse apenas bonita, mas que traduzisse visualmente a leveza do carro. Essa luta seria mais demorada e mais emotiva.
Os primeiros modelos de estúdio eram quase exercícios de aquecimento. Tinham proporções corretas, tentavam seguir o espírito do Elan, mas ainda carregavam aquela hesitação típica de quem não sabe até onde pode ir. É sempre assim no início: a engenharia define os hard points, entrega o que é irredutível — posição do motor, linha do capô, altura das torres de suspensão, recuo do eixo dianteiro — e o design tenta fingir que não está limitado por nada disso.
O problema é que, no Miata, a limitação era ainda mais cruel porque o carro precisava de proporções quase ideais para transmitir visualmente a leveza que os engenheiros estavam construindo. Se a dianteira crescesse três centímetros, ele perdia delicadeza. Se o balanço traseiro ficasse longo, o carro já não pareceria tão ágil. O roadster perfeito precisa parecer esperto mesmo parado. Precisa ter aquela postura alerta dos felinos, que sempre parecem prontos para saltar mesmo acomodados.

Tom Matano e Wu-Huang Chin, que até então tentavam conciliar expectativas, decidiram que o carro precisava de identidade própria, e não uma releitura do Elan. Os japoneses queriam um design limpo, clássico, quase atemporal. Os americanos insistiam que pureza não era falta de personalidade. Foi ali que começou a “guerra da argila”, uma série de alterações quase diárias feitas no mockup do carro após cada reunião da equipe.
Um dia os faróis ficam mais altos, no outro são achatados para se aproximarem da referência britânica. A linha de ombro desce dois milímetros. Depois volta três. O para-brisa reclina mais do que os engenheiros acham aceitável. A traseira perde volume, depois ganha, depois perde de novo até chegar naquele arredondamento que parece simples, mas que levou meses para ser definida. Assim nasceu o primeiro protótipo com as formas gerais do carro que seria produzido. Postura baixa, frente curvada e viva, capô com caimento suave e balanços curtos. O carro parecia flutuar sobre as rodas.

Depois disso, outro desafio: a cabine. A Mazda queria um cockpit envolvente, onde motorista se sentisse como num carro de competição, mas isso seria um ponto fraco para o modelo. A maioria das marcas considera aceitável uma cabine pequena em roadsters, afinal, o carro é compacto. A Mazda decidiu olhar por outro ângulo: o cockpit não seria compacto por causa do porte do carro, mas por que ele deveria ser tão frugal quanto o design da carroceria, uma extensão do conceito “jinba ittai” — cavalo e cavaleiro como um só.
A discussão estética virou um debate filosófico. Os designers queriam pureza, proporção, simplicidade funcional. Os engenheiros queriam ergonomia, rigidez, espaço suficiente para não violar normas e para acomodar humanos de diferentes tamanhos. Os executivos queriam economia. E Bob Hall queria que você entrasse no carro e sentisse apenas que estava ao volante de um carro muito legal.

Como resultado, o painel seguia uma linha horizontal quase reta, evocando os roadsters britânicos dos anos 1960 sem imitar nenhum deles. O console central não tentava ser “tecnológico”, porque tecnologia envelhece rápido. Os comandos eram táteis, diretos, com curso definido e sensação mecânica deliberada. Tom Matano insistiu que a cabine deveria comunicar leveza visual, mas não leveza estrutural. Era um carro pequeno, não um carro frágil. É por isso que superfícies finas conviviam com formas sólidas. O painel parece flutuar, mas o túnel central tem presença. A porta tem linhas limpas, mas apoios firmes.

O ponto mais discutido da cabine, claro, foi a posição de dirigir e a ergonomia do motorista. Ela precisava ser impecável, por que tudo dependia dela — a percepção de peso da direção, o alcance do câmbio, o ângulo dos pedais, o ajuste do volante, a relação entre profundidade e altura do assento. Se errassem aqui, erravam o carro inteiro. O Miata precisaria ser confortável para dirigir rápido, e confortável para dirigir devagar — porque a Mazda sabia que a maior parte dos donos nunca o levaria ao limite, mas todos precisariam sentir que poderiam.


Quando o mock-up final ficou pronto, houve apenas um silêncio contemplativo, daqueles que só aparecem quando tudo está em perfeita harmonia. O interior não era retrô, não era moderno, não era ousado. Era perfeito para aquele carro.
A filosofia jinba ittai exigia algo que, para a época, soava como teimosia quase quixotesca: o Miata precisava ser rígido sem ser pesado, responsivo sem ser nervoso, comunicativo sem ser cansativo. Isso implicava resolver um paradoxo estrutural: um conversível é, por definição, um monobloco incompleto. Falta-lhe o teto, que é a peça responsável por fechar a caixa estrutural e distribuir tensões. Conversíveis pequenos sofrem ainda mais, porque têm menos volume para esconder reforços. Fazer isso funcionar dentro de um peso-alvo tão baixo quanto o do Miata parecia impossível.
Quem resolveu isso foi o já citado PPF: motor, câmbio e diferencial unidos em uma estrutura rígida que formava uma coluna estrutural longitudinal. Isso reduz flexão e elimina variações de ângulo entre esses componentes, estabilizando o trem-de-força e fazendo o monobloco trabalhar mais previsivelmente sob carga. O resultado é um carro que responde de forma mais consistência em todos os aspectos — incluindo o manejo do câmbio característico do Miata.
A suspensão seguiu a mesma lógica: os braços triangulares sobrepostos nas quatro rodas controlava melhor a variação de geometria nas curvas, enquanto comunicava tudo o que estava acontecendo ao motorista de forma natural. Tudo isso já apareceu logo nos primeiros protótipos — que também revelaram vibrações e ruídos residuais sob aceleração plena, vindos de pequenas interferências entre o subchassi dianteiro e os suportes do motor. Tudo foi refinado e reajustado como se o carro fosse um sedã de luxo artesanal, e não um roadster que pretendia vender 40.000 unidades por ano.

E funcionou. O protótipo ficou silencioso sem ser morto, firme sem ser bruto, preciso sem ser arisco. O chassi estava pronto, a dinâmica acertada. O Miata rodava como um dos clássicos roadsters que inspiraram aquela equipe de entusiastas atuando como engenheiros e designers.
Só faltava colocá-lo em produção. E se você achou a história perfeita até agora, é a partir desta etapa que surge o drama.
Mesmo depois de anos de desenvolvimento, protótipos prontos, dinâmica refinada e design consolidado, a produção do Miata ainda não estava aprovada. A corporação olhava para ele com curiosidade e cautela — era tão genial quanto perigoso. Afinal, ele era um roadster compacto nascendo quase 30 anos depois do auge dos roadsters compactos. Era como, vá lá, lançar uma perua em plena era dos SUV.
O obstáculo para sua aprovação não era técnico, e sim cultural. A Mazda era disciplinada, pragmática, acostumada a justificar cada investimento com previsões objetivas e séries históricas. E o Miata não tinha nada disso. Não havia precedentes. Não havia planilha que pudesse prever o impacto cultural de um novo roadster acessível. O Miata não podia ser aprovado por números, e sim por convicção pessoal, pela força da personalidade.
E estas personalidades foram Bob Hall, Tom Matano, Masakatsu Hirai e Keinich Yamamoto, que iniciaram um trabalho diplomático interno, apresentando o carro para os executivos de todas as divisões — não como produto final, e sim como um potencial novo nicho de mercado. Falavam da leveza como filosofia, da comunicatividade do carro, do envolvimento com o motorista — o tipo de coisa que os executivos sabem que agregam valor, mas não podem ser provados por planilhas. Ao menos não antes da aposta.

Yamamoto, um dos padrinhos mais importantes do projeto, usava uma frase que cortava pela raiz qualquer hesitação corporativa: “Se a gente não fizer, quem vai fazer?” A Mazda já tinha passado por isso com o motor rotativo, outro projeto que desafiava racionalidade financeira e que dependia, acima de tudo, de coragem institucional. Comparar o Miata ao rotativo era quase desonesto, porque o peso histórico do programa Wankel foi enorme. Mas funcionava, porque colocava o roadster na categoria certa: não produto oportunista, mas declaração cultural.
Convencer toda a corporação exigiu um trabalho em etapas. Depois da apresentação vieram os test drives internos, executivos menos ligados em esportivos entenderam a filosofia e se animaram com a precisão quase pedagógica do carro. Isso serviu para aprovar a continuação do investimento no projeto. Depois veio a validação da produção. Depois a produção piloto pré-série. Só então o Miata se tornou um projeto oficial, com cronograma definido.
No verão de 1988, o gerente de produto da Mazda nos EUA Rod Bymaster estava casualmente folheando um dicionário quando encontrou a palavra “miata”. Significa “recompensa” em alto-alemão antigo. O nome estava escolhido.

Antes do lançamento oficial, em 1988, a Mazda fez clínicas de cliente — não apenas para medir interesse no Miata mas para ver quanto dinheiro as pessoas estariam dispostas a pagar por ele. Hall disse que o alvo de preço interno da Mazda estava em torno de US$ 8.000 para justificar o projeto e ser lucrativo. Mas as clínicas mostraram que ainda havia muito espaço para cima. A maioria das pessoas estimou o preço perto de US$ 20.000 — e a Mazda definiu o preço inicial de US$ 13.800 — US$ 37.800 em valores atualizados. As clínicas de cliente também mostraram que o Miata tinha taxas de aprovação que poucos produtos conseguiram — 85 a 90% dos participantes gostaram do roadster, números impressionantes mesmo para carros esportivos.
O Mazda Miata foi revelado ao público em 9 de fevereiro de 1989, no Chicago Auto Show. Dean Case, que dirigiu o carro de Los Angeles de volta para Chicago semanas depois do lançamento, lembra de notar o entusiasmo e a atenção do público ao Miata. Curiosamente, o Miata não foi o único esportivo a estrear no Chicago Auto Show daquele ano. O Salão também foi escolhido pela Honda para apresentar um outro carro revolucionário: o Acura NSX. Depois de dar uma olhada no NSX, Hall disse que sabia que a Acura “ia pegar a imprensa, mas nós íamos pegar o público.”

Ele estava certo. O Miata não apenas conquistou o público, como também mudou a história.
No lançamento, o Miata pesava exatamente 960 kg em ordem de marcha, com distribuição de peso idêntica sobre cada eixo. O motor longitudinal ficava totalmente atrás da linha do eixo dianteiro e produzia 116 cv a 6.500 rpm e 14,1 kgfm a 5.500 rpm. Não eram números expressivos, mas com tão pouco peso para empurrar, o zero a 100 km/h era feito em 8,1 segundos e a velocidade máxima era de 203 km/h.

E era isso: um motor competente, um câmbio manual de cinco marchas preciso e bem-escalonado, uma caixa de direção direta e sem assistência, freios com servo-assistência e sem ABS, uma linha de cintura baixa a ponto de se ver o asfalto com a visão periférica e uma cara alegre quando os faróis estavam abertos.

Por dentro, a cabine acabou apertada, mas lembre-se: era para ser leve. Os apoios de braço eram finos, mas os espaços para os pés era generoso. Os motoristas mais altos acabavam acima do topo do para-brisa. O porta-malas tinha espaço para as bagagens de um fim de semana. Mas nada disso importava: por US$ 13.800 dólares, ele se tornou um sucesso de vendas. Só nos EUA e Canadá, o Miata vendeu 58.000 unidades em seu primeiro ano. Depois as vendas se estabilizaram em uma média de 20.000 unidades/ano nestes dos países. Ao todo, a primeira geração vendeu nada menos que 431.506 unidades até 1997 — uma média de quase 48.000 carros por ano — pouco acima da estimativa dos engenheiros que fizeram o Miata acontecer lá nos anos 1980.
Bob Hall, que deixou a Mazda em 2000 e hoje trabalha para a Geely — que, ironicamente, agora detém participação majoritária na Lotus —, sempre se incomodou com o título de “pai do Miata”. Ele insiste que nenhum carro moderno tem um único pai. É preciso uma grande equipe para desenvolver um veículo do zero. E ele está certo. Toshihiko Hirai lutou as batalhas políticas. Masao Yagi deu forma ao conceito. Norman Garrett e a equipe de engenharia fizeram o carro funcionar. Tom Matano, Mark Jordan e Wu-Huang Chin deram-lhe beleza. Takao Kijima e Jiro Maebayashi fizeram o carro afiado.
Mas foi Bob Hall que plantou a semente. E sem aquela conversa em 1979 com Yamamoto, sem seus esboços, sem a insistência obsessiva de que o mundo precisava de um roadster leve e barato inspirado nos britânicos que estavam morrendo o Mazda Miata não teria acontecido.

Ele fez tanto sucesso que, nos anos seguintes, a Lotus — logo a Lotus, que o inspirou — lançou uma novo roadster com o nome Elan, mas com tração dianteira e motor transversal, depois foi a BMW com o Z3, seguida pela Mercedes-Benz com o SLK, a Fiat com o Barchetta e, finalmente, a Audi com o TT. Todo mundo tinha um roadster para os anos 1990. A Mazda tinha ressuscitado um segmento que havia sido esquecido pelo público, mas não pelos entusiastas.
E ele conseguiu isso, não por que era rápido ou tecnológico, mas por que mostrou a uma nova geração que a diversão ao volante não precisa ser cara, que o prazer ao volante pode ser simples e que ninguém precisa de muito para sorrir com a capota aberta em uma estrada sinuosa.


