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Car Culture

Quando a Fórmula 1 virou um “Woodstock” – e uns brasileiros ficaram sem ônibus

Os EUA não são o primeiro país em que você pensa quando se fala de Fórmula — mesmo com tantas corridas por lá e por sediar provas do Mundial desde 1950, teoricamente. Claro, tem a ver com os circuitos artificiais feitos para vender o show e não o esporte — o Caesar’s Palace e o GP de Miami são os que me vem à mente, agora. Mas os EUA tem também o Circuito das Américas e, claro, o tradicionalíssimo Watkins Glen — onde aconteceu uma das corridas mais marcantes da história da Fórmula 1. E não por um bom motivo.

Isso, porque não foi a corrida em si que tornou o GP dos EUA de 1974 uma prova histórica. Tem mais a ver com os espectadores, que transformaram a corrida e o circuito em um verdadeiro Woodstock. Só faltaram as bandas, porque gente jovem, bebidas, drogas e caos houve de sobra. Teve até ônibus de brasileiro pegando fogo!

O circuito de Watkins Glen International, também conhecido como “The Glen”, foi aberto em 1956, recebeu sua primeira corrida da Nascar em 1957 e, em 1961, recebeu a Fórmula 1 pela primeira das 20 vezes que sediaria a etapa americana da competição.

Tudo começou mais ou menos no fim dos anos 1960. O local onde as pessoas iam para assistir o GP dos EUA em Watkins Glen era um grande descampado, e por ele passava um canal de drenagem que transformava tudo em um verdadeiro pântano. Por isso, essa área ficou conhecida como The Bog – “O Pântano”, literalmente. Como era preciso passar por um túnel atrás dos boxes para chegar até lá, os organizadores perceberam que poderiam cobrar ingresso do público. Era um ingresso bem mais barato, afinal, você estava em uma área úmida lamacenta, mas era possível assistir a todos os eventos do fim de semana. As pessoas vinham em caravanas e acampavam lá, mais ou menos como fazem em Le Mans.

A diferença é que estamos falando de Nova York no fim dos anos 1960. Festivais de música improvisados eram comuns. A presença de jovens viajando no verão (nos dois sentidos de “viajar) era intensa e, ainda que o Glen fizesse parte do calendário desde 1961, o público que começou a frequentar o Bog era, digamos, diferente do público tradicional da Fórmula 1. Era uma massa espontânea, informal e agitada, que transformava a etapa americana em algo completamente distinto do restante do campeonato.

Era um tempo diferente, com drogas baratas e abundantes, sexo livre, contracultura em alta, cigarros patrocinando a Fórmula 1 e um clima de festival em qualquer aglomeração de pessoas. Muitas pessoas sequer tinham TV em casa e, bem, a infraestrutura para o público não era exatamente a prioridade de um circuito de corridas. A própria polícia local tinha uma atuação limitada: há relatos de delegados que visitavam o Bog, observavam a bagunça e simplesmente iam embora, tratando tudo como uma excentricidade aceitável, afinal, era uma área cercada, longe da cidade. Não havia controle real, e isso deixou o terreno livre para o caos crescer ano após ano.

O crescimento do público em Watkins Glen também contribuiu para a escalada: de cerca de 60.000 espectadores em 1961, o número chegou a 150.000 em 1968 e ultrapassou 180.000 em 1973 e 1974, enquanto a área do Bog permanecia a mesma, com lama e drenagem limitada. Assim, desde a virada dos anso 1960 para os 1970 os jornais logais e bombeiros voluntários registravam casos de carros queimados, brigas com garrafadas e pedradas, e confrontos com a polícia na área do Bog.

Isso acontecia porque, obviamente, a corrida não era o objetivo do público do Bog. Era um lance meio hippie, a ideia era fazer uma grande festa regada a drogas e bebidas com a Fórmula 1 como pano de fundo — o pessoal ficou conhecido como “bogladytes” — um trocadilho com “troglodytes”. Como todo mundo entrava lá de carro e a corrida não era prioridade, eles acabavam encontrando outras formas de se divertir. Uma delas era tentar atravessar o canal de drenagem de carro. Quem conseguisse era ovacionado.

Os carros que ficavam presos na lama do pântano eram incendiados. Sim, os caras colocavam fogo nos veículos e ficava por isto mesmo. Era perigoso? Sim, mas, segundo consta, ninguém jamais se feriu gravemente por lá, e todos sabiam do risco que corriam ao tentar atravessar o pântano. Sendo assim, a tradição continuou por mais alguns anos. O mais impressionante é que a administração do circuito fechava os olhos para tudo isso porque a área era lucrativa: vendia-se o ingresso barato, o público não exigia infraestrutura e, ao fim do evento, bastava limpar o terreno. A relação custo-benefício era perfeita para os organizadores — até que deixou de ser.

Pilotos como Jackie Stewart e Niki Lauda comentavam que o público do Bog era extremamente barulhento e descontrolado, lembrando festivais de música. Esse clima já era perceptível em 1973, quando as fotos e relatos do local mostram fogueiras durando horas e multidões enlameadas que formavam seu próprio espetáculo paralelo ao GP. Além disso, naquele ano de 1973, o Glen recebeu o lendário Summer Jam — um festival de música que juntou o Grateful Dead, a Allman Brothers Band e a The Band, e reuniu nada menos que 600.000 espectadores (abaixo).

Foi assim que, em 1974, o negócio saiu do controle.

Naquela temporada, Emerson Fittipaldi, então na McLaren, estava empatado com Clay Regazzoni, da Ferrari, em pontos – ambos estavam com 52. Na prática, o brasileiro precisava apenas chegar à frente do suíço para garantir o título para si e para a McLaren. Imagine o quanto os brasileiros estavam empolgados.

Foi por isso que um grupo de cerca de 40 pessoas saiu do Brasil para acompanhar a última corrida da temporada, na esperança assistir a Emerson Fittipaldi conquistar o bicampeonato. Emmo chegou em quarto e, de fato, ficou com o título. Mas o pessoal acabou não assistindo nada.

O pessoal fretou um ônibus Greyhound para levá-los até a corrida, e o veículo foi estacionado no “Woodstock” de Watkins Glen. O motorista saiu e, aparentemente, largou a chave no contato. Dando uma olhada nas fotos deste post, dá para deduzir o que aconteceu, não dá? Um dos bogladytes, já aditivado pelo coquetel local, teve a brilhante ideia de tentar atravessar o pântano de ônibus, provavelmente sabendo que o grande veículo ficaria preso e acabaria sendo incendiado.

A existência do ônibus incendiado está documentada em fotos e em um vídeo amador, filmado por alguém que pretendia apenas registrar a atmosfera do Bog. A gravação só ganharia notoriedade décadas depois, quando foi digitalizada. A identificação do ônibus como sendo da caravana brasileira vem de relatos posteriores, consistentes, mas não de registros oficiais da época — a imprensa local não deu atenção ao episódio, concentrada na disputa do título.

As imagens do incêndio começam por volta dos 3:30 no vídeo.

Dito e feito. Depois de rodar a toda velocidade pelo local, passando por cima de outros carros e promovendo o caos, o ônibus ficou preso e foi incendiado, junto com outros dez ou doze carros. Os brasileiros ficaram sem transporte, e foi preciso que a Greyhound enviasse outro ônibus para levá-los até o aeroporto onde pegariam o voo de volta para o Brasil. Alguns provavelmente sequer sabiam que Fittipaldi havia chegado em quarto lugar, garantindo seu segundo e último título. Em entrevistas dadas décadas depois, alguns integrantes da caravana lembram que só descobriram o resultado da corrida já no trajeto de volta, quando finalmente conseguiram acessar alguma informação confiável.

Depois disso, o Bog foi fechado. Ele durou tanto tempo porque ninguém havia se machucado com seriedade e também porque era algo lucrativo para a administração do circuito – cobravam-se entradas e o custo de manutenção era praticamente zero. Os donos de Watkins Glen precisavam apenas se preocupar com a limpeza do local depois da corrida, que rolava uma vez por ano. Em 1975, o Glen Racing Board publicou uma resolução extinguindo o acesso livre ao Bog, oficialmente para “recuperar áreas degradadas”, mas a imprensa local registrou o motivo real: “controle de incêndios e vandalismo”.

E foi assim que, a partir de 1975, não houve mais acesso ao Bog no GP dos EUA em Watkins Glen. Era o fim de um capítulo tão absurdo quanto improvável da história da Fórmula 1.


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