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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #49: Bugatti Veyron

Ali por volta de 2000, o mundo automotivo ainda operava sob uma espécie de “código de cavalheiros” imposto pela física. Havia uma ordem natural das coisas, uma cartilha que todo mundo entendia: se você queria velocidade, você tirava peso. Se você queria luxo, você aceitava que o carro seria lento. Era um exercício de abrir mão de algo. Simples assim.

O McLaren F1 tinha passado por ali na década de 90 e chutado o balde, mas ele fez isso sendo… honesto. Gordon Murray não tentou reinventar a roda; ele apenas levou a pureza ao extremo. Com seu V12 BMW S70/2 aspirado e um chassi de apenas 1.138 kg, o F1 era o ápice da aerodinâmica de solo passiva. Ele não lutava contra a física; ele dançava conforme a música dela. Se o F1 parou nos 386 km/h, não foi por falta de fôlego do motor, mas porque Murray aceitou o limite físico de estabilidade e a rotação máxima permitida para não moer o câmbio transversal. O F1 era rápido porque era leve. Era a lógica levada à perfeição.

Naquela virada de século, os 600 cv eram o limite da engenharia. Passar dali não era só colocar um turbo maior. Era brigar com pneus que desintegravam sob força centrífuga, freios que entravam em combustão e sistemas de arrefecimento que simplesmente não davam conta da troca de calor. Existia um pacto silencioso: ninguém precisava de mais do que isso. Os sedãs rápidos da época, como o M5 E39 ou os E55 AMG, eram máquinas brutais, mas “dentro da lei”. Ninguém esperava que um sedã de luxo sustentasse 300 km/h por longos períodos sem derreter o motor ou desintegrar a banda de rodagem. Se acontecesse, era uma anomalia técnica, um feito isolado de preparadoras como a Alpinas ou a RUF, e não uma promessa de prateleira com garantia de fábrica.


Muita gente esquece, mas antes de Piëch, a história moderna da Bugatti teve Romano Artioli. E a tentativa de Artioli de ressuscitar a marca nos anos 90 foi, talvez, o ensaio mais romântico e trágico da história recente do automóvel. O EB110 era uma nave espacial: monocoque de carbono feito pela Aérospatiale (quando ninguém usava isso em carros de rua), tração integral com divisão de 73% de torque na traseira e um V12 de 3,5 litros minúsculo, mas complexo, com cinco válvulas por cilindro e quatro turbos IHI.

Artioli era um visionário obsessivo. Ele construiu a fábrica de Campogalliano como um templo, com chão de mármore e iluminação natural, uma extravagância que ajudou a drenar o caixa antes mesmo de o primeiro carro ser faturado. Ele tentou arrastar a Bugatti para o futuro na marra, usando tecnologia de aviação militar francesa para criar um carro que, tecnicamente, era o embrião do que viria a ser o Veyron.

O EB112, o sedã desenhado por Giugiaro que parecia um Royale do século 21, seria o segundo modelo desta empreitada, mas morreu na casca porque o mercado não estava pronto para um sedã de luxo com alma de supercarro. A falência em 1995 não foi por falta de talento, foi falta de timing e de um conglomerado que pudesse amparar o custo de desenvolvimento de tamanha complexidade. A semente já estava lá, mas precisava de um terreno mais fértil.


Por volta de 1997, Gregor Piëch estava convencendo seu pai, Ferdinand, de que seria um bom investimento familiar a compra de um Bugatti Type 57SC Atlantic. Pensando a respeito da compra, Ferdinand Piëch descobriu, “por ironia do destino” (como diria em sua autobiografia), que a Bugatti de Artioli estava a venda e ficou interessado. Em 1998, um ano depois, marca foi comprada pela Volkswagen.

Quando Ferdinand Piëch comprou o nome Bugatti ele não queria apenas uma marca de luxo para o portfólio. Ele queria também um território onde pudesse exercer sua criatividade técnica sem filtros — um espaço que simplesmente não existia dentro de uma fabricante convencional. Piëch não era um executivo de planilhas de marketing; ele era um engenheiro que via a complexidade como uma demonstração de poder. Um exemplo disso foi o motor W, que ele vislumbrou durante uma viagem no trem Shinkansen, entre Tóquio e Nagoya, no Japão, em 1997.

Depois de uma breve conversa com Karl-Heinz Neumann, então chefe do desenvolvimento de powertrain na Volkswagen, Piëch pegou um envelope e esboçou uma ideia que vinha rondando sua mente por algum tempo: se o motor VR6, que equipava o Golf, o Passat e vários outros modelos da Volkswagen, era compacto o bastante para ser instalado transversalmente nesses carros, a união de dois destes motores em V, faria um motor de 12 cilindros igualmente compacto para aplicações longitudinais. Como seriam duas bancadas em forma de V, ele seria um duplo V, ou… W. Nasceu assim a ideia e o nome do motor.

Nessa mesma viagem, ainda desenvolvendo o raciocínio, Piëch vislumbrou um motor “compacto” de 18 cilindros. Bastaria usar a configuração W tradicional — então em desuso nos anos 1990 — mas com três motores W em vez de bancadas simples de cilindros. Assim, o W18 teria o comprimento aproximado de um motor de cinco cilindros.

A Bugatti era a marca perfeita para ele. Sua intenção era restaurar a Bugatti novamente, fazendo dela uma marca de veículos de extremo luxo, sofisticação e desempenho — algo que os motores W18 trariam indubitavelmente.

Naquele mesmo ano de 1998, a Volkswagen levou ao Salão de Paris o primeiro conceito com o nome Bugatti desenvolvido sob seu comando: o cupê EB118, que tinha as formas gerais muito parecidas com as do EB112 — como por exemplo a barbatana que atravessa o carro longitudinalmente como no Atlantic —, mas já trazia a identidade visual e as linhas limpas e sóbrias na cabine, que seriam consagrados no Veyron.

Sob o capô ele usava um motor W18 de 6,3 litros e 563 cv, mas não um motor formado pela união de três motores “VR” como no conceito W12 do ano anterior. Em vez disso, o W18 usava três blocos de seis cilindros em linha, separados por 60 graus e unidos pelo virabrequim. O movimento do motor era enviado a uma transmissão automática de cinco marchas que a distribuía às quatro rodas como no EB110. Apesar de ter motor dianteiro, nascia ali a configuração mecânica básica dos futuros Bugatti.

No ano seguinte, 1999, a Volkswagen levou ao Salão de Genebra a versão sedã do EB118, o EB218. O projeto nasceu com uma proposta de atualização do EB112 de 1993 encomendada pela Volkswagen à Italdesign, por isso ele mantém as formas gerais do antigo conceito de 1993, porém com a dianteira nova, que serviu de inspiração para o visual final do Veyron. O motor era o mesmo W18 desenvolvido para o EB118.

Também em 1999 nasceu o “elo perdido”, o ancestral de transição da Bugatti de Artioli para a Bugatti de Piëch: o 18/3 Chiron, apresentado no Salão de Frankfurt. Ancestrais de transição, na teoria da evolução, são espécies extintas que combinam características de seus ancestrais e novas características da espécie que os sucedeu.

No caso do 18/3 Chiron, ele ainda tinha o antigo W18 da Volkswagen, tração integral e elementos estéticos dos seus antecessores, mas também foi o primeiro protótipo com o motor central-traseiro e com o nome de um piloto da Bugatti — no caso, Louis Chiron, piloto monegasco que venceu o GP da França de 1931 com um Bugatti Type 51.

O 18/3 Chiron foi idealizado como um sucessor para o EB110 e um esportivo de ponta como eram os antigos modelos fabricados por Ettore Bugatti e seus filhos. O estilo grã-turismo deu lugar ao layout característico dos supercarros, com dois lugares na cabine e motor na posição central-traseira. A novidade aqui é o sistema de tração integral, que deixou de ser derivado do EB110 para ser fornecido pela Lamborghini, outra aquisição da Volkswagen na época, que havia acabado de criar um sistema integral para o Diablo VT.

Em outubro de 1999 mais um passo evolutivo foi dado. Agora totalmente desvencilhado da Bugatti antiga, a Volkswagen levou ao Salão de Tóquio daquele ano o 18/4 Veyron — assim batizado pois tinha um motor de 18 cilindros e homenageava o piloto Pierre Veyron, que venceu a 24 Horas de Le Mans de 1939 em um Bugatti Type 57C.

No 18/4 Veyron, todos os elementos estéticos do passado foram abandonados. O carro foi desenhado do zero pela própria Bugatti sob o comando de Hartmut Warkuss. O conjunto mecânico, contudo, era formado pelo mesmo W18 combinado ao câmbio automático e à tração integral Lamborghini.

Foi aqui — logo após a apresentação do 18/4 Veyron, quando o projeto parecia apenas mais um estudo estilístico sobre o W18 — que Ferdinand Piëch impôs as duas metas que transformariam tudo. Sem consultar ninguém, sem pedir projeções, sem perguntar se era possível, ele declarou que o futuro Bugatti de produção teria mais de 1.000 cv e precisaria ultrapassar os 400 km/h. A partir desse momento, o W18 não era mais um motor; era um obstáculo.

O W18, embora espetacular como ideia, era impraticável na vida real. Ele era comprido demais, pesado demais e exigia um sistema de arrefecimento complexo demais para um carro que precisava ser curto e compacto como um supercarro de motor central. A vibração resultante da geometria de três bancadas também criava desafios que não desapareceriam sem mais complexidade e complicações. Em velocidade alta, era um motor que queria se soltar do próprio berço. Mais crítico ainda: o W18 não dava espaço para a aerodinâmica necessária. O carro precisaria ser baixo, ter um teto curto, radiadores posicionados precisamente e um fluxo de ar limpo atravessando a porção central-traseira.

Na época, a Volkswagen estava desenvolvendo um novo motor derivado do W12, usando o mesmo conceito técnico: se o W12 eram dois blocos VR6, ele poderia fazer um W8 usando dois blocos VR4. Esse motor estrearia no Passat B5 em 2001 e no Bentley Continental em 2003. Estes dois carros ajudariam a viabilizar tecnicamente e economicamente o novo motor que Piëch vislumbrou para o Bugatti: um W16 formado por dois blocos W8.

O desenvolvimento do motor W16 foi o equilíbrio entre o sonho e a realidade. Ele era menor, mais compacto, permitia a montagem em posição ideal e aceitava a sobrealimentação com quatro turbos sem virar uma usina térmica incontrolável. A arquitetura VR, que havia sido vista por anos como uma excentricidade da Volkswagen, finalmente encontrou sua aplicação máxima: dois W8 formando um bloco único, com ângulo estreito entre as bancadas e um virabrequim curto e robusto. Com ele, a Bugatti ganhou margem térmica e estrutural — a diferença entre um motor que existia no papel e um motor que podia cruzar os 400 km/h sem ameaçar entrar em combustão espontânea.

Ele foi a base para o conceito seguinte, apresentado em 2000, que finalmente chegou à receita final do hipercarro: o EB 16/4 Veyron. Seu nome voltou a usar o EB em homenagem a Ettore Bugatti, e o primeiro par de números continuou indicando o número de cilindros. Outra novidade é que, além da nova configuração, o motor W16 também seria turbo. Cada “W8” teria dois turbos, resultando em um motor quadriturbo — como era no EB110. Com isso, o motor poderia saltar dos quase 600 cv do W18 aspirado para os mais de 1.000 cv propostos por Piëch.


O conceito EB 16/4 era bonito no palco dos salões. Mas entre um carro estático numa plataforma giratória e um carro funcional capaz de sustentar 400 km/h, existe um abismo que engole orçamentos, cronogramas e, ocasionalmente, vidas.

A partir de 2001, o desenvolvimento do Veyron se concentrou no campo de provas de Nardò, no sul da Itália. Nardò não é uma pista qualquer. É um anel de concreto de 12,6 km de circunferência, com inclinação constante de 4 graus, construído originalmente pela Fiat nos anos 70 para testes de alta velocidade. Ali, a curvatura é tão suave que, teoricamente, um carro a 240 km/h não precisa virar o volante. Teoricamente.

A 400 km/h, porém, Nardò vira outro animal. A força lateral aumenta exponencialmente, os pneus trabalham no limite da adesão mesmo sem curvas aparentes, e qualquer instabilidade aerodinâmica transforma o carro em um projétil desgovernado. O Veyron precisava ser estável ali, mas também precisava ser confortável a 200 km/h em uma rodovia comum. Esse era o paradoxo: ser extremo e civilizado ao mesmo tempo.

O principal desafio não era fazer o carro acelerar até 400 km/h. Isso, com 1.001 cv e tração integral, era quase inevitável. O problema era fazê-lo parar, resfriá-lo, mantê-lo grudado no chão e garantir que o piloto não precisasse de reflexos de astronauta para conduzi-lo. A equipe de Wolfgang Schreiber, engenheiro-chefe do projeto, tinha pela frente uma lista de problemas que não tinham precedente. Ninguém havia tentado fazer isso antes com um carro de rua homologado.

Os primeiros protótipos que chegaram a Nardò eram frankensteins funcionais. Carrocerias de fibra de carbono com reforços estruturais provisórios, motores calibrados de forma conservadora, transmissões emprestadas de outros projetos do grupo VAG. O objetivo inicial não era bater recorde. Era entender onde e como o carro quebrava. E ele quebrava. Muito.

O sistema de arrefecimento foi o primeiro gargalo crítico. O W16 quadriturbo gerava calor em uma escala que nenhum outro motor de produção havia gerado antes. Não era só o bloco: os turbos, os intercoolers, a transmissão de dupla embreagem, os freios, tudo isso precisava dissipar energia térmica ao mesmo tempo. Em velocidade máxima, o Veyron consumia 110 litros de ar por segundo — mais do que um homem adulto respira em seis minutos. Eram dez radiadores espalhados pela carroceria: três na dianteira, dois nas laterais, dois para o motor, um para o diferencial traseiro, um para a transmissão e um para o ar condicionado. Cada um precisava de fluxo de ar otimizado, sem criar turbulência que comprometesse a estabilidade ou o resfriamento dos outros.

A aerodinâmica foi outro inferno técnico. A 400 km/h, o arrasto aerodinâmico é o equivalente a empurrar uma parede. Para vencer isso, o Veyron precisava de um coeficiente de arrasto baixo, mas também de downforce suficiente para pregar o carro no chão. A solução foi o modo “Top Speed”: ao girar uma segunda chave no console central, o carro abaixava a suspensão em 65 mm, reduzia o ângulo do spoiler traseiro para apenas 2 graus e travava o diferencial em uma configuração mais fechada. Era uma transformação física e eletrônica. O Veyron se agachava, se esticava, se preparava. Fora desse modo, a velocidade era limitada eletronicamente a 375 km/h.

Os pneus eram outro problema sem solução pronta. Michelin foi convocada para desenvolver algo que nunca havia existido: um pneu de rua capaz de suportar 400 km/h com um carro de quase 1.900 kg. A equipe de Pierre-Henri Raphanel na Michelin criou o PAX, um pneu especial com reforço interno de aramida (o mesmo material do Kevlar) e uma construção que permitia até 5.040 rpm. Cada jogo custava cerca de US$ 25.000 e durava, em uso misto, cerca de 4.000 km. Em velocidade máxima sustentada, a vida útil caía para cerca de 15 minutos — o que não era um problema, por que o tanque de combustível se esvaziaria em pouco mais de 10 minutos.

A transmissão foi desenvolvida pela Ricardo, empresa britânica especializada em soluções de alta performance. Era uma DSG de sete marchas, mas não uma DSG comum. Cada embreagem precisava suportar 1.250 Nm de torque e realizar trocas em menos de 150 milissegundos sem quebrar a tração ou desestabilizar o carro a 300 km/h. O sistema hidráulico operava a 60 bar de pressão, mais do que o dobro de uma transmissão convencional para obter trocas quase imperceptíveis para evitar trancos. O óleo precisava ser trocado a cada 10.000 km devido à temperatura de operação.

E então veio o acidente.

Em 2003, Loris Bicocchi estava testando um protótipo em Nardò. Bicocchi não era um piloto qualquer: ele havia sido piloto de testes da Lamborghini, tinha experiência em carros extremos e conhecia aquele anel de concreto como poucos. Naquele dia, ele estava a quase 400 km/h, avaliando a estabilidade do carro em alta velocidade, quando um dos pneus falhou. O Veyron saiu da trajetória, deu uma guinada violenta e rodou diversas vezes antes de parar fora da pista. O monobloco de fibra de carbono feito pela ATR (a mesma empresa que fazia fuselagens para aviões Airbus) salvou a vida de Bicocchi. Ele saiu do acidente com ferimentos relativamente leves, mas o protótipo foi destruído.

Loris Bicocchi

O acidente forçou uma reavaliação completa da estrutura e dos pneus. A Michelin voltou à prancheta. A equipe de engenharia reforçou o chassi, ajustou a distribuição de peso e recalibrou o sistema de controle de tração. O projeto, que já estava atrasado e acima do orçamento, atrasou ainda mais. Dentro da Volkswagen, vozes começaram a questionar se aquilo tudo fazia sentido. Mas Piëch não recuou.


Em setembro de 2005, no Salão de Frankfurt, o Bugatti Veyron 16.4 foi finalmente apresentado ao mundo como um carro de produção. Não era mais um conceito. Era real. E os números eram obscenos mesmo para quem acompanhava o desenvolvimento: 1.001 cv, 1.250 Nm de torque, zero a 100 km/h em 2,5 segundos, zero a 300 km/h em menos de 14 segundos, velocidade máxima de 407 km/h. O preço era US$ 1.500.000, mas isso era quase irrelevante. O Veyron não estava competindo com outros carros. Ele estava competindo com a própria noção do que era possível. A Bugatti, mais tarde, traçaria o perfil do comprador do Veyron e descobriria que eles têm, em média, 84 carros, três jatos e um iate.

A reação da imprensa foi mista, mas intensa. Revistas especializadas como a Top Gear e a Evo ficaram extasiadas. Jeremy Clarkson, que raramente se impressionava com carros modernos, chamou o Veyron de “o maior feito de engenharia desde que colocamos um homem na Lua”. Outros, como os puristas da Autocar, eram mais céticos. Eles viam o Veyron como um exercício de ego corporativo: caro demais, pesado demais, complexo demais. “É impressionante”, escreveram, “mas é também um monumento à engenharia pela engenharia, sem o refinamento emocional de um McLaren F1”.

O público, de certa forma, não sabia o que fazer com ele. O Veyron não era uma Ferrari, não tinha o apelo emocional italiano. Não era um Porsche, não tinha a tradição de competições. Era um Bugatti feito pela Volkswagen, o que soava, para muitos, como uma contradição. Mas quem viu o carro ao vivo entendia: aquilo não era um supercarro. Era outra coisa. Era brutalmente rápido, mas silencioso em marcha lenta. Era pesado, mas plantado. Era complexo, mas funcionava.

As primeiras unidades entregues aos clientes vieram acompanhadas de uma equipe técnica da Bugatti. Não era um carro que você simplesmente levava para casa e guardava na garagem. Ele precisava de climatização específica, revisões frequentes e, acima de tudo, respeito. Várias unidades voltaram para Molsheim nos primeiros meses com problemas diversos: falhas eletrônicas, vazamentos nos radiadores, desgaste prematuro nos discos de freio. A Bugatti consertava tudo sob garantia, mas ficava claro que o Veyron estava no limite do que a engenharia podia entregar de forma confiável.

O grande teste de fogo veio em abril de 2005, quando Uwe Novacki, piloto de testes e instrutor-chefe de segurança de condução da Volkswagen, foi enviado ao campo de provas da Volkswagen, em Ehra-Lessien, na Alemanha, para uma tentativa oficial de velocidade máxima. Ehra-Lessien tem uma reta de 9 km — mais longa que Nardò, mais plana e com asfalto impecável. Era o lugar ideal.

Novacki atingiu 407,5 km/h em 19 de abril de 2005. Oficiais de inspeção alemães registraram uma média de 408,47 km/h nas sessões de teste. O mundo finalmente teve a prova empírica de que aquilo tudo não era marketing. Meses depois, em novembro de 2006, James May, da Top Gear, replicou o feito para as câmeras, confirmando que o carro entregava exatamente o que prometia: qualquer pessoa poderia chegar a 400 km/h em um Bugatti. O Veyron era, oficialmente, o carro de produção mais rápido do planeta. Ele havia destronado o Koenigsegg CCR (que havia batido o McLaren F1 em 2005 com 388 km/h) e estabelecido um novo patamar.

Mas isso era só o começo. Em 2010, a Bugatti lançou o Veyron Super Sport, uma versão ainda mais extrema: 1.200 cv, aerodinâmica otimizada e um recorde de 431 km/h, alcançado pelo piloto Pierre-Henri Raphanel. O recorde foi homologado pelo Guinness e permaneceu imbatível por anos, até a chegada do Koenigsegg Agera RS em 2017.

O Veyron provou que não era um acaso. Era um projeto sistemático, repetível e validado. E mais importante: ele era um carro produzido em série. Qualquer um dos 450 exemplares fabricados podia fazer o mesmo — desde que tivesse a pista, os pneus certos e a coragem.


Antes do Veyron carros extremos eram frágeis, carros confiáveis eram moderados, e carros luxuosos eram lentos. Você escolhia dois desses atributos, nunca os três. O Veyron mudou essa história. Ele era extremo, confiável e luxuoso.

Mais do que isso, o Veyron validou a engenharia como forma de arte. Ele provou que complexidade, quando bem executada, não é inimiga da confiabilidade. Dez radiadores não são um problema se cada um faz o que deve. Quatro turbos não são excessivos se arrefecidos adequadamente. Mil cavalos não são perigosos se o chassi, os pneus e a eletrônica conseguem gerenciá-los. O Veyron foi a primeira demonstração completa de que, com orçamento suficiente e obstinação técnica, é possível transformar o teoricamente impossível em cotidiano.

Ferdinand Piëch, que se aposentou do grupo Volkswagen em 2015, nunca admitiu publicamente quanto custou o projeto Veyron. Estimativas variam entre 1 e 3 bilhões de euros. Cada unidade vendida representava, segundo analistas, um prejuízo de cerca de 5 milhões de euros para a Volkswagen. Mas Piëch nunca se importou. O Veyron não era um produto. Era uma declaração da Volkswagen.

E aqui está a genialidade perversa do projeto: perder dinheiro com o Veyron fazia mais sentido financeiro do que ganhar. A Volkswagen não precisava de mais um carro lucrativo na linha — ela já tinha dezenas. O que o grupo precisava era de credibilidade técnica no segmento de ultra-alta performance. O Veyron provou que o conglomerado Volkswagen podia fazer qualquer coisa se decidisse fazer. E essa prova teve efeitos colaterais inesperados: validou a credibilidade técnica do grupo inteiro, serviu como laboratório para tecnologias que depois migraram para Audi (transmissão DSG de alta performance), Porsche (gestão térmica em carros turbo), Lamborghini (tração integral adaptativa) e até para modelos mais populares da própria VW. Estabeleceu Bugatti como uma marca viável no mercado de hiperluxo, criando uma âncora de prestígio que elevava todo o portfólio do grupo.

Mais do que isso: o Veyron era publicidade que não podia ser comprada. Cada vez que alguém escrevia sobre o “carro mais rápido do mundo”, a Volkswagen estava ali, associada a excelência técnica absoluta. Não importava que 99,9% dos compradores de Golf jamais colocariam as mãos em um Veyron. O que importava era a percepção de que a empresa que fazia seu carro popular também era capaz de construir o veículo mais tecnicamente avançado do planeta. Isso não tem preço. Ou melhor: tem, e são 5 milhões de euros de prejuízo por unidade, mas o retorno em valor de marca e transferência de tecnologia pagou essa conta de outras formas.

Hoje, com mais de 20 anos de distância daquele conceito EB 16/4 no salão de Paris, o Veyron já é História. Mas é uma História que ainda ecoa. Ele provou que a engenharia não precisa aceitar limites impostos pela convenção. Provou que “impossível” é, muitas vezes, apenas falta de orçamento e obstinação. E provou que, às vezes, a melhor forma de homenagear o passado é ignorá-lo completamente e construir algo que Ettore Bugatti jamais teria imaginado — mas, com certeza, teria aprovado.


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