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Pensatas

A Cidade de 15 Minutos e as viagens urbanísticas

No panteão das ideias modernas, poucas são tão universalmente aceitas quanto o clichê urbanístico que opõe “carros” a “pessoas”. Tornou-se um axioma do planejamento urbano: para humanizar uma cidade, é preciso desumanizar o automóvel. Para que o pedestre reine, o motorista deve ser subjugado. A narrativa é sedutora, pintando um quadro de redenção urbana onde ruas cinzentas e congestionadas florescem em vibrantes parques lineares, povoados por ciclistas felizes e crianças brincando.

O problema é que essa dicotomia é, na sua essência, uma falácia lógica e um perigoso desvio intelectual. É um clichê que não resiste à lógica elementar.

Carros não são entidades autônomas. Carros não têm desejos ou intenções. Carros são objetos inanimados, ferramentas. A essência de um carro, assim como a de um martelo ou de um smartphone, é ser um meio para um fim humano. Não existe conflito entre carros e pessoas. O conflito real, embora menos palatável ideologicamente, é entre pessoas que escolhem andar e pessoas que escolhem dirigir. A escolha pessoal é o ponto central deste suposto conflito.

O fetiche do urbanismo contemporâneo — de teorias como a Cidade de 15 Minutos a movimentos de zonas livres de carros — é exibir um selo de humanismo. No entanto, ao travar uma guerra contra o objeto carro, ele paradoxalmente desumaniza a pessoa que o utiliza. Ele abstrai o indivíduo dentro do veículo, transformando-o em tráfego, congestionamento ou poluição. O motorista deixa de ser um cidadão com direitos e deveres, e se torna um problema a ser eliminado.

Seguindo uma linha de raciocínio lógico que busca a essência dos objetos e das ações, devemos dissecar essa ideologia. Devemos perguntar: por que as pessoas escolhem o carro? E o que a tentativa de remover essa escolha nos diz sobre o humanismo que a propõe?


O Princípio da Cerca

A lógica elementar exige que comecemos pelas definições fundamentais. O que é uma cidade? Uma cidade não é uma teoria fabricada em uma universidade. Uma cidade não é um modelo estético. Uma cidade é, em sua essência, uma forma de organização humana em um determinado espaço. É um sistema complexo e orgânico que emerge das necessidades, desejos, medos e aspirações de milhões de indivíduos. A função primordial da cidade, portanto, é servir a essas pessoas, não o contrário. A cidade deve se adaptar aos anseios de seus cidadãos, e não os cidadãos se adaptarem às teorias de seus planejadores.

O que é um automóvel? Como estabelecido, é um meio. Mas um meio para quê? O usuário de automóvel não busca o carro em si, ele busca o que o carro proporciona. Ele busca eficiência e gestão do tempo, a capacidade de cumprir múltiplos papéis em geografias dispersas, deixar o filho na escola, ir ao trabalho, fazer compras no supermercado, visitar um parente doente, tudo em um tempo viável. Ele busca segurança, a proteção contra a violência urbana, especialmente à noite, e contra as intempéries.

Nem mesmo os carros autônomos fazem algo sem motivação humana…

O carro é um casulo privado em um espaço público muitas vezes hostil. Ele busca capacidade de carga, o transporte de objetos que seriam impossíveis em uma bicicleta ou em um ônibus, compras da semana, materiais de trabalho, malas de viagem. Ele busca autonomia e liberdade, a gratificação humana fundamental de controlar o próprio destino, de ir aonde quiser, na hora que quiser, sem depender de horários fixos ou rotas pré-determinadas. Ele busca conforto e privacidade, o anseio humano por um espaço pessoal, longe da compressão física e social do transporte público lotado.

Aqui, deparamo-nos com um princípio lógico essencial: o princípio da cerca. O reformador moderno vê o carro, e a infraestrutura que o suporta, como uma cerca inútil que bloqueia o caminho para a utopia pedestre. Ele diz: não vejo utilidade na cerca, vamos derrubá-la. O lógico, no entanto, responde: se você não vê a utilidade, você não tem o direito de removê-la. Vá embora e pense. Quando você voltar e conseguir dizer por que ela foi colocada ali, você poderá removê-la — se ainda achar que ela pode ser removida.

A cerca do automóvel foi erguida porque ela atende a todas as demandas listadas acima. O urbanismo moderno, em sua ânsia por remover a cerca, falha em propor uma solução que atenda à totalidade daquelas mesmas demandas. Um sistema de bicicletas não atende à capacidade de carga, à proteção contra frio e chuva ou ao transporte de múltiplos dependentes. Um sistema de transporte público, mesmo que excelente, raramente atende à autonomia de destino, à mobilidade ponto a ponto, ou à valiosa privacidade.

Ao ignorar por que a escolha pelo carro é feita, o urbanista não está combatendo o carro. Está combatendo necessidades naturais humanas.


O Paradoxo do Urbanista Humanizado e a Desumanização do Outro

O urbanismo anti-carro se autoproclama o ápice do humanismo. Ele celebra o nível dos olhos, a interação social na calçada, a saúde pública. O problema é que o humano no centro desse humanismo é uma teoria. Um ideal específico, abstrato e notavelmente restrito.

O humano ideal do urbanista moderno é, frequentemente, um espelho. Jovem ou pelo menos fisicamente apto a caminhar longas distâncias e pedalar. É alguém sem filhos, ou com no máximo um, que pode ser facilmente transportado em um carrinho ou bicicleta de carga. É trabalhador do setor de serviços ou economia criativa, cujo trabalho se localiza no mesmo centro urbano onde ele mora. É alguém que vê o tempo de deslocamento como perdido se estiver no trânsito, mas como experiência se estiver caminhando, sem considerar a lógica que há no inverso da premissa.

Esta é uma bolha sociológica. O urbanismo humanizado falha em reconhecer a existência de todos os outros que não se encaixam nesse molde. O motorista não é um humano, ele é uma abstração inconveniente. Mas quem é esse motorista desumanizado?

Ônibus urbano na região metropolitana de Porto Alegre: um carro não seria melhor, segundo urbanistas modernos

É a mãe com três filhos pequenos, que precisa deixá-los em duas escolas diferentes antes de ir para o trabalho. É o idoso com mobilidade reduzida, para quem caminhar 800 metros até o ponto de ônibus é um grande esforço físico — e um risco sem calçadas perfeitas. É o trabalhador da periferia, cujo emprego na outra ponta da cidade exigiria três conduções e duas horas e meia de transporte público, contra 45 minutos de carro. É a mulher que sai tarde do trabalho e tem medo do ponto de ônibus escuro. É o pequeno empresário que precisa transportar suas mercadorias ou ferramentas ou visitar clientes e fornecedores ao redor da cidade.

Quando a política urbana declara guerra ao carro, ela não está atacando uma cultura abstrata. Ela está ativamente punindo essas pessoas. Ela está tornando suas vidas mais difíceis, mais caras e mais lentas, em nome de uma estética urbana que beneficia um grupo demográfico completamente diferente.

O urbanista que propõe reduzir faixas de rolamento, remover vagas de estacionamento e implementar pedágios urbanos punitivos não está oferecendo uma escolha. Ele está usando o poder coercitivo do Estado para fabricar um resultado. Ele está dizendo a essa mãe, a esse idoso e a essa trabalhadora: a sua necessidade de eficiência, segurança e autonomia é ilegítima. O meu desejo por uma rua instagramável é superior. E ele é superior por que a teoria mostra isso.

Este é o cerne do fetiche. É um humanismo que só humaniza aqueles que se comportam de acordo com a teoria.


Utopias

A manifestação mais recente e celebrada dessa ideologia é o conceito da Cidade de 15 Minutos. A ideia, superficialmente, é atraente: tudo o que você precisa, trabalho, compras, lazer, saúde, deve estar a 15 minutos de caminhada ou bicicleta de sua casa. Quem não gostaria disso?

Mas, nossa análise deve, novamente, concentrar-se na essência da proposta. O que a Cidade de 15 Minutos realmente propõe não é conveniência, mas proximidade. E ela confunde os dois. A ideologia subjacente a esse modelo é a de que a proximidade é a virtude cívica suprema e que a mobilidade, especialmente a de longa distância, é um vício. Este é um viés ideológico profundo, mascarado de planejamento técnico.

O automóvel não é uma ferramenta de proximidade, é a ferramenta máxima da possibilidade. A Cidade de 15 Minutos pressupõe que o indivíduo deseja que sua vida seja local. Ela ignora que a grande conquista da modernidade, possibilitada em grande parte pelo automóvel, foi justamente libertar o ser humano da tirania do local. Por que você acha que o ato de viajar é tão celebrado e desejado atualmente?

O carro permite que eu more em um bairro de que gosto, tranquilo e arborizado. Permite que eu trabalhe na melhor empresa para minha carreira, mesmo que a 30 km de distância. Permite que eu coloque meu filho na melhor escola, mesmo que em outro bairro. Permite que eu faça minhas compras no mercado com os melhores preços, mesmo que mais longe. Permite que eu mantenha laços sociais e familiares com pessoas que vivem em toda a extensão da metrópole.

Compton: um dos bairros mais pobres de Los Angeles, “a cidade para carros” – note a arborização/vegetação

A Cidade de 15 Minutos, levada à sua conclusão lógica, é um ataque direto a essa possibilidade. Ela sugere que, para um bem maior, eu deveria trabalhar perto de casa, mesmo que num emprego pior, colocar meu filho na escola da esquina, mesmo que de qualidade inferior, e limitar minhas interações à minha vizinhança.

É um modelo que funciona bem para quem já possui alto capital cultural e financeiro para escolher viver em um bairro que já contém tudo, centros urbanos gentrificados, mas é profundamente punitivo para a vasta maioria que vive em zonas monofuncionais, subúrbios e periferias, e que depende da mobilidade para acessar as oportunidades da cidade.

Restringir o automóvel em nome da Cidade de 15 Minutos não é libertar as pessoas. É aprisioná-las em seu próprio CEP. É a recriação de uma vila medieval, onde universo é o feudo.

El Raval, um dos bairros mais pobres de Barcelona, uma cidade modelo de planejamento urbanístico. Compare a vegetação.

As teorias urbanísticas fabricadas em universidades, por outro lado, sofrem da falácia do engenheiro. Elas veem a cidade como uma máquina quebrada que precisa ser consertada por especialistas iluminados. O defeito a ser corrigido é o comportamento humano que não se alinha à teoria, neste caso, o desejo de dirigir. O urbanista moderno não pergunta: como podemos gerenciar o fluxo de carros de forma mais eficiente, limpa e segura, para que as pessoas que precisam deles possam usá-los melhor? Em vez disso, ele pergunta: como podemos forçar as pessoas a parar de usar carros?

Retornemos à essência da cidade: é uma forma de organização humana em um determinado espaço. A cidade é um sistema emergente, um caos organizado. Ela não é um produto desenhado, como um iPhone. Ela é o resultado de milhões de negociações, trocas e escolhas individuais que, no fim, equilibram o bem comum.

A solução se torna punitiva por definição. Aumenta-se o custo através de impostos, pedágios e preço do estacionamento, e diminui-se a eficiência através da redução de vias, “zona calma” que intencionalmente cria lentidão, e remoção de vagas. Isso é vendido como desincentivo, mas na prática é uma coerção.

O argumento lógico é que uma cidade que serve seus cidadãos deve ser agnóstica quanto ao meio de transporte. Ela deve focar em otimizar a interação entre os modais, e não em promover uma guerra santa de um modal contra o outro. Se uma pessoa opta pelo automóvel mesmo quando existem boas ciclovias e um bom transporte público, a resposta lógica não é punir essa pessoa. A resposta lógica é aceitar que, para aquela pessoa, naquelas circunstâncias, o carro oferece um conjunto de vantagens que os outros modais não oferecem.

A tentativa de impor uma teoria contra a realidade vivida de milhões de pessoas é o oposto do humanismo. É uma forma de autoritarismo benevolente, onde o planejador decide que sabe melhor o que é bom para o indivíduo do que o próprio indivíduo.


Além da Falsa Escolha

Não pense, finalmente, que a crítica ao clichê de carros contra pessoas seja uma defesa do congestionamento, da poluição ou do caos urbano. Não é um argumento contra calçadas largas, ciclovias seguras ou transporte público de qualidade. É, ao contrário, um argumento a favor de todos eles, mas com uma condição: eles devem ser justificados por seus próprios méritos, e não como armas em uma guerra contra o automóvel.

A lógica nos força a concluir que o conflito entre carros e pessoas é uma falácia. Carros são meios, pessoas são fins. O conflito real é entre as necessidades de diferentes grupos de pessoas, pedestres, ciclistas, motoristas. Não é diferente de se usar um elevador compartilhado. Mas, diferentemente dos modais, não há uma guerra contra o morador do primeiro andar em nome da conveniência dos residentes dos andares mais altos. O urbanismo que se diz humanizado torna-se desumano no momento em que abstrai o motorista, a mãe, o idoso, o trabalhador, transformando-o em um problema a ser erradicado.

As utopias modernas, como a Cidade de 15 Minutos, carregam um viés ideológico que privilegia a proximidade local sobre a opcionalidade metropolitana, buscando restringir a liberdade de escolha que o automóvel possibilitou. Uma cidade deve servir aos anseios de seus cidadãos como eles são, e não aos anseios de seus planejadores sobre como os cidadãos deveriam ser.

A verdadeira cidade humanizada não é aquela que elimina escolhas, mas aquela que visa harmonizar as consequências dessas escolhas. É uma cidade que entende que o automóvel não é um fetiche ou um vício, mas uma ferramenta que, para milhões de pessoas, é a solução racional para as demandas complexas da vida moderna.

Atacar o carro não é humanismo, é engenharia social. O verdadeiro humanismo é reconhecer a complexidade das demandas humanas, incluindo a demanda por autonomia, segurança e eficiência que o carro, e por enquanto apenas o carro, consegue suprir. O resto é apenas um clichê conveniente para justificar uma teoria imposta por gente que se considera maior do que é.