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Car Culture

A história dos Porsche 917K de rua

Ao que tudo indica, em junho deste ano, durante os eventos das 24 Horas de Le Mans, a Porsche deverá apresentar uma versão de rua do 963, seu atual hipercarro de Le Mans — ou algo inspirado nele, mas ainda para as ruas. É o que eles deixaram muito claro quando apresentaram um 917 com placas, acelerando por uma rodovia pública, aberta ao tráfego normal. O vídeo foi breve, e não contou muito sobre aquele intrigante 917, afinal, diferentemente do 904 ou do 550, ele nunca foi planejado para uso em vias públicas. Seu único objetivo era ganhar corridas e nada além disso.

Mas, o carro prata apresentado no vídeo teve um destino diferente por conta do capricho de um cliente muito especial para a Porsche. Seu nome é Gregorio Rossi di Montelera, mas você pode chamá-lo de Conde Rossi, ou mesmo de “fundador da Martini Racing” — o que explica como ele conseguiu um 917 de rua, mas não conta a história toda.

Fã de automobilismo, foi ele quem teve a ideia de patrocinar equipes de corrida, começando em 1962 com a criação da Martini & Rossi Racing Team – naquela época, era preciso criar uma equipe toda para usar uma marca não-relacionada ao automobilismo. Foi só a partir de 1968 que a FIA passou a permitir patrocinadores de outros ramos estampando as carrocerias dos carros.

O carro em questão é o Porsche 917-030, um carro fabricado em 1971 que até chegou a participar de uma corrida mas, na verdade, teve como principal função ser uma plataforma de testes para a então recém-criada tecnologia de freios ABS. Sua única participação em uma prova ocorreu nos 1000 Km da Austria daquele ano, no circuito de Österreichring, com as cores da Martini Racing e os pilotos Helmut Marko e Gérard Larrousse ao volante. Foi a primeira vez que um Porsche com freios ABS participou de uma corrida.

Ainda que o Porsche 917-034 tenha vencido a corrida, com Richard Attwood e Pedro Rodríguez revezando ao volante, o 917-030 não teve a mesma sorte: ele se classificou em terceiro, mas não chegou ao fim da prova por conta de um acidente causado por uma falha na suspensão. Assim, depois de recuperado e consertado, ele voltou a ser uma plataforma de testes por mais algum tempo. Então, em 1972, o 917-030 foi guardado em um depósito.

Mas o carro não ficou parado por muito tempo – só até 1974, quando Conde Rossi entrou em cena. O aristocrata foi até a fábrica da Porsche em Weissach e disse que queria comprar o carro. E mais: ele queria que o protótipo fosse transformado em um carro de rua. E como você diz “não” ao homem que paga suas contas e, de certa forma, é responsável por seu sucesso nas pistas?

Exatamente: você não diz.

A Porsche tirou o 917-030 de seu descanso e começou a trabalhar. Não foi, contudo, uma tarefa hercúlea – uma das exigências do Conde Rossi era que o carro mantivesse sua essência e, por isto, os engenheiros alemães limitaram-se a realizar o mínimo possível de modificações: foram instalados retrovisores nos para-lamas dianteiros, as asas sobre os para-lamas traseiros foram removidas, e um abafador de 911 foi adaptado no sistema de escape. Além disso, a carroceria foi pintada no mesmo tom de prata usado pelos carros da Martini Racing. E, para garantir um pouquinho de conforto em suas trips, o Conde Rossi pediu que o interior tivesse o painel e os bancos revestidos em couro bege. Mais nada.

Até onde se sabe (os detalhes a respeito jamais foram divulgados, dado o segredo em torno do projeto), o conjunto mecânico não sofreu modificações – ou seja, apesar de ser transformado em um carro de rua, o 917-030 continuou equipado com um motor flat-12 de 4,9 litros e pelo menos 600 cv e câmbio manual – e continuou pesando menos de 800 kg. Porque, apesar de sua figura imponente, o Porsche 917 (especialmente na versão Kurzheck, de traseira curta) é um caro pequeno, com pouco mais de quatro metros de comprimento, 92 cm de altura, 1,98 m de largura e 2,3 m de entre-eixos.

Se você está achando que é loucura rodar nas ruas com um carro assim, saiba que as autoridades europeias na época concordariam com você: nenhum país da Europa permitiu que o Conde Rossi emplacasse o carro.

Obviamente que, depois de fazer quase tudo, o Conde não deixaria uma burocrazinha boba acabar com seus planos. Não, senhor: ele simplesmente enviou o carro para os EUA, the Land of the Free, para tentar registrar o carro. E ele conseguiu: o departamento de trânsito do Alabama se dispôs a vistoriar e emitir os documentos do carro, com uma condição – o Conde Rossi jamais deveria circular com o 917 dentro do estado.

Sem problemas, até porque o plano era mesmo voltar com o carro para a Europa e rodar com placas do Alabama. Como naquela época as leis eram mais frouxas, o Conde Rossi não podia rodar com o 917 sem placas. Mas placas estrangeiras queriam dizer que, em algum lugar do mundo, aquele carro era considerado apto a circular em vias públicas. Já era alguma coisa – e o bastante para que o dono da Martini pudesse curtir seu protótipo sossegado.

Gregorio Rossi di Montelera morreu em 2003, mas o carro ainda está na família – hoje em dia, ele está registrado em nome de seu filho Manfredo, que, em raras ocasiões, aparece em algum evento de clássicos. A documentação para circular nas ruas já está expirada (atualmente ele usa placas do Texas, que são apenas decorativas), mas isto não o impede de acelerar na pista. Como aconteceu nas edições de 2009 e 2019 do Goodwood Festival of Speed, comemorando, respectivamente, os aniversários de 40 e 50 anos do Porsche 917.

Depois do carro do Conde Rossi, outros dois exemplares do Porsche 917 foram convertidos para uso nas ruas. Primeiro, foi o 917-021, que foi entregue em abril de 1970 para a AAW Racing, equipe finlandesa que ia disputar o recém-criado campeonato Interserie. Inicialmente, o carro foi pintado em vermelho e amarelo, mas logo recebeu a famosa pintura psicodélica em tons de verde e roxo, que lhe rendeu o apelido de “Hippie Porsche”.

O 917-021 teve uma carreira intensa, acelerando em pistas como Nürburgring, Spa-Francorchamps e Monza. Também foi inscrito nas 24 Horas de Le Mans, mas acabou sofrendo um acidente. A solução foi instalar um novo chassi e seguir em frente: ainda naquele ano, o 917 conquistaria duas vitórias — no Grande Prêmio do circuito de Keimola, na Finlândia (que pertencia à própria AAW Racing), e no Troféu das Dunas, em Zandvoort, na Holanda.

Ao final da temporada de 1970, o 917-021 foi desmontado. O motor e a suspensão foram transplantados para um Porsche 917 Spyder, que competiria no ano seguinte. Já a carroceria e o chassi ficaram encostados num especialista da marca em Karlsruhe, no sul da Alemanha. Eles ficaram juntando poeira por três anos, até serem comprados por Joachim Grossman — um carpinteiro e dono de restaurante da pequena Bad-Wildbad, na Floresta Negra.

Grossman tinha um objetivo audacioso: transformar o 917 em um carro de rua. A missão levou mais de dois anos. A pintura psicodélica deu lugar ao branco sólido, luzes de seta foram instaladas, e os vidros de plexiglass foram substituídos por vidro convencional. O interior também foi adaptado: bancos de couro branco, tapetes azuis bordados com “917” e, acredite, até um secador de cabelo foi instalado embaixo do painel, para funcionar como desembaçador.

 

O motor veio de Willi Kauhsen, que pilotou o famoso Porsche 917/20 “Pink Pig” em Le Mans. Grossman também instalou um novo câmbio, suspensão e um escape mais silencioso. A Dunlop forneceu pneus de rua sob medida — e os traseiros tinham absurdos 500 mm de largura.

O detalhe mais impressionante? Grossman conseguiu uma plaqueta legítima da Porsche para seu 917, o que significava que a própria fabricante reconhecia o carro como um Porsche legítimo. Em junho de 1977, o carro passou no rigoroso teste de homologação de veículos da Alemanha e recebeu a placa “CW-K 917”. O sonho estava realizado: o Porsche 917 de rua podia finalmente devorar o asfalto das Autobahnen.

Com apenas 970 kg e 550 cv a 7.500 rpm, o 917 de rua chegava aos 320 km/h em uma época na qual a Ferrari 365 GTB/4 Daytona, chegava “só” aos 280 km/h. Como praticamente todo entusiasta autor de um projeto insano, depois de alguns anos com o carro, Grossman acabou vendendo o 917 para um colecionador da Flórida no final dos anos 1980. O comprador, agora interessado no histórico do carro, desfez as alterações e restaurou o carro ao seu padrão original. Hoje, o 917-021 vive na Bélgica, totalmente restaurado com sua icônica pintura hippie, acelerando nos eventos de clássicos.

Depois, foi a vez do carro 917-037, que atualmente pertence ao colecionador Claudio Roddaro, residente no Principado de Mônaco.

Ele comprou o carro em 2016 por aproximadamente US$ 22 milhões, o que dá pouco mais de R$ 74 milhões em conversão direta. Um valor que coloca o carro entre os mais valiosos de todos os tempos.

Não é para menos. Este carro tem a inusitada história de jamais ter competido. Até o 2004 ele era apenas um chassi tubular, deixado inacabado no fim dos anos 70 e guardado por mais de três décadas.

Quem comprou o carro das mãos da Porsche foi a Karosserie Baür, uma encarroçadora alemã que também foi responsável pelo BMW Z1 e pelos Audi Quattro originais de homologação. Em algum momento o carro foi vendido a um colecionador norte-americano, que o mandou o 917-037 para a Gunnar Racing em Long Beach, na Califórnia. Lá, o restaurador especialista em carros de corrida antigos Carl Thompson concluiu o trabalho iniciado pela Porsche.

Por sorte o 917-037 era um carro de paradeiro conhecido pela Porsche, que deu todo o suporte necessário para a restauração, fornecendo até mesmo plaquetas de chassi e todos os componentes originais que tivesse disponíveis. Como é um carro que nunca correu (e, consequentemente, nunca bateu) este 917 é o exemplar mais original em existência hoje em dia, segundo a própria Porsche.

O carro foi pintado de prata e recebeu a pintura da Martini Racing, que foi uma das várias patrocinadoras da Porsche dos anos 70 aos anos 80. Há, contudo, uma boa razão para que Roddaro tenha escolhido o esquema de cores da Martini: seu carro só pôde ser licenciado para as ruas por causa do carro do Conde Rossi, que abriu um precedente para o licenciamento do 917. Assim, como homenagem ao homem que permitiu que os 917 fossem licenciados, seu 917-037 recebeu as cores da equipe fundada por ele.


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