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Automobilismo

A Honda na Fórmula 1

— “Estamos planejando competir na Fórmula 1. Quero que você supervisione o projeto”, dizia a voz no outro lado da linha.

— “O que é Fórmula 1?“, perguntou intrigado o pobre homem que recebera a ligação de seu chefe. “Já vi umas fotos, mas não sei o que é. Pode me explicar?“, completou.

— “Eu também não sei“, disse a voz no outro lado. “Não tem problema. Todo mundo é iniciante no começo“.

Foi com esta conversa que o projeto da Honda na Fórmula 1 começou em maio de 1962. Os personagens eram Hideo Sugiura, gerente de qualidade da fábrica da Honda em Saitama, que recebeu o convite, e Yoshihito Kudo, diretor do departamento de pesquisas da Honda, que fez o convite. Se a conversa foi assim mesmo ou foi um pouco romantizada, não importa. O que importa é que a Fórmula 1 era uma realidade muito distante, quase alienígena para os funcionários da Honda na época. O pouco que eles sabiam vinha de um Cooper Clímax T53 que fora comprado no final de 1961 para entender como se fazia um carro de corridas.

Em maio de 1962 a Honda era basicamente uma fabricante de motocicletas. Eles ainda não haviam construído nenhum automóvel — o S500 e o T360 só chegariam às ruas em 1963. Pense nisso por um instante e você entenderá o total deslocamento dos dois chefes da Honda em relação à Fórmula 1.

E pense mais um pouco e você entenderá como os japoneses foram ousados ao decidir entrar na Fórmula 1 quando entraram — especialmente porque eles não usariam um chassi terceirizado com um motor próprio. Eles decidiram competir com o status de construtores: um carro de Fórmula 1 totalmente desenvolvido in-house pelos japoneses.

Agora há um outro contexto que você precisa levar em consideração: na época Japão ainda não tinha sido inventado. Tudo o que você conhece do Japão hoje, não existia. Ninguém comprava TV da Sony, carros da Toyota, relógios da Casio, teclados Yamaha. E ainda havia rusgas por causa do lado que o Japão escolhera na Segunda Guerra, encerrada menos de 20 anos antes.

Esse era o Japão quando a Honda decidiu entrar na Fórmula 1

Quando eles anunciaram a entrada na Fórmula 1 com um carro próprio e um motor próprio, o mundo do automobilismo ficou em choque. Construir um carro de Fórmula 1 era coisa de fabricantes de automóveis experientes. Só os italianos, ingleses e alemães haviam feito isso até então. A equipe era completamente japonesa, com exceção do piloto, o americano Ronnie Bucknum.

O primeiro carro de Fórmula 1 da Honda nunca disputou uma corrida. Batizado RA270, ele era um protótipo de testes, construído para validar o projeto que a Honda desenvolveu inspirado no Cooper Clímax T53. “Inspirado”, na verdade, é bondade nossa: o carro era um clone do T53, mas somente até o berço do motor, porque na traseira ele tinha um perfil mais reto e mais baixo, resultado do V12 transversal com 12 saídas de escape.

Sim: o Honda RA270 tinha 12 canos de escape que sopravam feito loucos enquanto os pistões produziam 210 cv a 10.000 rpm. Mais tarde, o carro evoluiu para se tornar o RA271, ganhando mais potência e um coletor de escape mais eficiente — e, finalmente, entrando na pista para disputar uma corrida.

A estreia aconteceu no GP da Alemanha daquele ano. Bucknum se classificou em último, na 22ª posição, e sofreu um acidente na 11ª volta, abandonando o primeiro GP disputado pela Honda — apesar disso, como a corrida tinha 15 voltas, ele ainda conseguiu se classificar em 13º, a última colocação. Naquela primeira temporada a Honda só voltou para GP da Itália e dos EUA, mas o carro não terminou nenhuma das duas.

Para o ano seguinte os japoneses prepararam uma evolução do RA271, batizada RA272. Ele era equipado com o mesmo motor V12 instalado em posição transversal e, com um carburador Keihin por cilindro, produzia 230 cv a 13.000 rpm (rotação incomum na época), o que fez dele o motor mais potente do grid naquele 1965. A potência era moderada por um câmbio sequencial de seis marchas desenvolvido pela própria Honda.

Naquela temporada a Honda inscreveu um segundo carro, que foi entregue a outro americano, Richie Ginther, que tinha experiência em equipes como a Ferrari e BRM. Os dois carros abandonaram sua primeira corrida do ano, o GP de Mônaco, mas na prova seguinte Ginther cravou os primeiros pontos da Honda com um sexto lugar no GP da Bélgica, resultado que repetiria no GP da Holanda, duas etapas mais tarde. Depois da Holanda, a Honda não foi à Alemanha, e só voltou a correr na prova seguinte, o GP da Itália, onde os dois carros abandonaram novamente. Nos EUA Bucknum terminou em 13º, enquanto Ginther ficou com o sétimo lugar.

Richie Ginther e o pessoal da Honda

A consagração veio no GP do México, a última corrida da temporada e a 11ª prova disputada pela Honda na F1. Ginther se classificou em terceiro, mas logo no início assumiu a dianteira e de lá não saiu. Enquanto isso, Bucknum garantia o quinto lugar em sua nona corrida na F1. Depois de 325 km divididos em 60 voltas, a Honda conquistava sua primeira vitória na Fórmula 1 em apenas 15 meses na categoria.

Apesar da baixa qualidade, você pode identificar os Honda pelo ronco ardido do V12 a 13.000 rpm

No paddock o fundador da fabricante, Soichiro Honda, comemorou, mas não se empolgou: “Desde que decidimos fabricar carros trabalhamos duro e quisemos pegar o caminho mais difícil. Por isso não nos contentaremos com esta vitória. Vamos estudar por que vencemos e vamos aplicar agressivamente estas tecnologias vitoriosas aos novos carros”.

Para 1966 a dupla foi mantida e o carro evoluiu para o RA273. Ginther pontuou em duas corridas com um quinto e um quarto lugar, e Bucknum terminou sem pontuar. A vitória só voltaria em 1967, quando a Honda deixou o orgulho nipônico de lado e contratou a Lola para desenvolver o chassi do carro seguinte, o RA301 ou “Hondola” (Honda+Lola, sacou?). Ginther e Bucknum deixaram a equipe e foram substituídos por um cara que valia por dois: John Surtees.

Valeu a pena: Surtees pontuou em todas as corridas que terminou e trouxe a vitória de volta à Honda, ao vencer o GP da Itália daquele ano. Surtees e a Honda terminaram o campeonato de construtores e de pilotos em quarto lugar, um feito incrível para uma equipe de apenas três temporadas e que, quatro anos antes mal conhecia a Fórmula 1.

No ano seguinte Surtees ainda conquistou outros dois pódios com o Hondola, antes de a equipe introduzir um novo carro, o RA302. Em sua corrida inaugural, o GP da França de 1968 em Rouen-Les-Essarts, o piloto Jo Schlesser, chamado para aquela corrida, perdeu o controle do carro e sofreu um acidente fatal que motivou a fábrica a se retirar da Fórmula 1 ao fim da temporada. A categoria passaria toda a década de 1970 sem um carro japonês no grid.


Em 1983 a Honda voltou à Fórmula 1 como fornecedora de motores, incialmente para a pequena Spirit, e na última etapa do campeonato para a Williams, que abandonou o Cosworth DFV aspirado em favor do Honda V6 turbo. Na temporada seguinte a Williams tornou-se a única equipe a usar os motores Honda. Keke Rosberg venceu o GP de Dallas e conquistou a primeira das 40 vitórias dos motores da fabricante na era turbo.

Em três anos os motores Honda já haviam se tornado os mais confiáveis e econômicos do grid. Ainda equipando os carros da Williams eles fomentaram o duelo entre Nigel Mansell e Nelson Piquet e levaram a equipe ao título mundial de construtores de 1986 — o segundo de um motor feito fora da Europa; o outro é o Repco usado pela Brabham entre 1966 e 1969, que era baseado no V8 Buick, mas desenvolvido na Austrália.

No ano seguinte a Honda passou a fornecer motores para a Lotus, que tinha Ayrton Senna como principal piloto. Foi o início da relação entre Senna e os japoneses da Honda que, dizem, ter sido fundamental para a parceria com a McLaren no ano seguinte. Com o novo motor Senna ficou em terceiro lugar no campeonato de pilotos.

O duelo entre Mansell e Piquet se repetiu em 1987, com vantagem para o brasileiro. A Williams conquistou seu segundo título de construtores consecutivo, enquanto Piquet faturou seu tri-campeonato.

Com o sucesso dos Williams-Honda e o fracasso dos motores TAG-Porsche, a McLaren passou a usar os motores Honda em 1988. Junto com os motores veio Ayrton Senna, que enfim conseguiu a combinação ideal de chassi (MP4/4) e motor (RA168) e ganhou seu primeiro título mundial.

O McLaren MP4/4 usava como base um antigo projeto de Gordon Murray feito ainda na Brabham. Com uma linha mais baixa na porção traseira para reduzir o arrasto aerodinâmico, o carro era brilhante no papel, mas só funcionou com a chegada dos motores V6 de 80º da Honda, que mantinham o centro de gravidade mais baixo. Venceu 15 das 16 corridas da temporada e os campeonatos de pilotos e construtores.

Em 1989 a Lotus perdeu o fornecimento da Honda, que passou a fazer seus motores exclusivamente para a McLaren. O V10 de 3,5 litros manteve o equilíbrio entre desempenho e confiabilidade do antecessor turbinado e levou a McLaren ao bicampeonato de construtores e Alain Prost ao seu terceiro título. O motor permaneceu o mesmo até 1990, quando Ayrton Senna sagrou-se bicampeão e a McLaren levou o tricampeonato consecutivo de construtores.

A Honda ainda forneceria uma versão V12 para a McLaren que equipou o MP4/6, usado por Ayrton Senna na conquista de seu terceiro título em 1991.

Com a ajuda de Gerhard Berger a equipe faturou o quarto título seguido, o sexto da Honda em seu retorno à categoria. Uma variação do V12 foi usada em 1992, mas ao fim da temporada a Honda sofreu os efeitos do período de recessão econômica e cancelou suas atividades ligadas à Fórmula 1.

Depois de oito anos fora da F1 a Honda anunciou o fornecimento de motores para a British American Racing (BAR) em 2000. Em 2004 os japoneses compraram 45% da equipe e chegaram ao vice-campeonato de construtores, atrás apenas da então onipotente Ferrari. No fim de 2005, a Honda adquiriu os 55% da equipe que ainda pertenciam à British American Tobacco, formando a Honda Racing F1 Team.

Com controle da própria fábrica e uma dupla de pilotos formada pelo jovem talento Jenson Button e pelo experiente Rubens Barrichello, recém saído da Ferrari, a equipe parecia promissora, mas decepcionou com apenas uma vitória — uma belíssima vitória, por sinal, conquistada por Jenson no GP da Hungria de 2006 largando da 14ª posição.

Em 2007 a equipe perdeu o patrocínio da British American Tobacco (Lucky Strike). Sem dinheiro e com um carro incapaz de acompanhar os times de ponta — e até mesmo novatos como a Super Aguri, que usou os carros da temporada anterior da Honda — a equipe não passou do 10º lugar.

Ross Brawn e Nick Fry foram trazidos da Ferrari para renovar a equipe e torná-la competitiva, mas a crise econômica mundial mais uma vez abalou a fabricante japonesa. Ao fim da temporada a equipe foi vendida para Ross Brawn, tornando-se a Brawn GP, que disputou sua única e vitoriosa temporada com motores Mercedes. Ao fim da temporada a fabricante alemã posteriormente comprou a Brawn e a transformou na atual Mercedes-AMG — ironicamente sua futura concorrente na quarta incursão da Honda na Fórmula 1.

Em 2014 a McLaren anunciou o fim do contrato de fornecimento de motores com a Mercedes, encerrando uma parceria de 20 anos. Os motores alemães seriam substituídos pelos motores da Honda, que decidiu voltar à Fórmula 1 e reeditar a parceria “McLaren-Honda”, o que gerou um certo entusiasmo e grande expectativa, afinal, foi essa combinação que criou o carro de F1 mais bem-sucedido da história. Além disso, a equipe tinha Fernando Alonso e Jenson Button, dois campeões do mundo. Melhor, só se a McLaren recontratasse Gordon Murray e Steve Nichols.

O que se viu nos primeiros anos, contudo, foi um tanto decepcionante. Claro, a Honda precisava desenvolver um motor do zero e você não faz um motor vitorioso da noite para o dia. Mas havia muita coisa acontecendo na McLaren também nos bastidores. Ron Dennis estava de saída, a McLaren estava dividida entre suas atividades esportivas e seus carros de rua. O desempenho em 2015 foi desastroso e a McLaren superou apenas a Marussia, terminando o campeonato em penúltimo lugar. No ano seguinte o desempenho melhorou, Alonso conseguiu mais pontos, mas não passou do quinto lugar. Button, por outro lado, teve um desempenho ainda pior que na temporada anterior. A McLaren terminou em quinto e parecia que os motores estavam evoluindo.

A temporada de 2017, contudo, foi um passo para trás: o desempenho só voltou a melhorar no final da temporada, quando a McLaren já estava em penúltimo, sem chances de melhorar. Alonso perdeu a paciência e culpou os motores Honda, explodindo uma ponte de forma irreversível. Naquela temporada, a Toro Rosso já estava correndo sem a marca da Ferrari em seus motores, e começou a negociar com a Honda o fornecimento para 2018. Na temporada seguinte, a McLaren trocou os motores Honda pelos Renault, e a fabricante japonesa foi para a Toro Rosso, que terminou o campeonato em antepenúltimo enquanto a McLaren ficou em sexto com os motores Renault.

Em 2019 foi a vez da Red Bull adotar os motores da Honda — e aqui veio a ironia, um prato frio e doce como a vingança: logo em seu primeiro ano com a Honda, a Red Bull Racing terminou o campeonato em terceiro lugar, à frente da McLaren com uma diferença de mais de 360 pontos. Em 2020 a Red Bull Racing foi a vice-campeã, com a McLaren em terceiro. Na temporada de 2021, apesar de conquistar o título de pilotos com Max Verstappen e sua Red Bull, a Honda anunciou em outubro que iria se retirar da Fórmula 1 mais uma vez. De novo.

A saída, contudo, foi apenas como desenvolvedora de motores: Red Bull e sua equipe satélite Alpha Tauri/Racing Bulls continuaram usando o motor Honda mas com a marca conjunta Red Bull Powertrains — Honda RBPT até esta temporada de 2025. Neste período em que os motores eram desenvolvidos pela divisão de powertrains da Red Bull, a Honda faturou mais dois títulos de construtores (em 2022 e 2023) e três de pilotos com Max Verstappen (2022, 2023 e 2024).

Agora, para 2026, a Honda será a fornecedora de motores da Aston Martin. E ela foi a primeira a revelar como irão roncar os motores da próxima temporada, agora que a MGU-H não abafa mais a saída dos gases de escape dos cilindros.


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