O que você calça para dirigir? Sempre que possível, gosto de dirigir descalço, mas na maioria do tempo uso um par de tênis um tanto inadequado para comandar os pedais. A moda dos tênis com entressola alta e larga me pegou de jeito — coisa de quem tem canela larga.
Na maioria dos carros não é um problema — nos Ford e VW, por exemplo, isso até me ajuda a fazer um “punta-tacco” com a planta do pé. O problema aparece nos carros com pedais mais próximos, como os Fiat. Neles, volta e meia eu freio acelerando ou acelero freando. Aparentemente italianos têm pés pequenos, o que não é meu caso. Com o tênis errado, só piora.
Todo rato de pista sabe que calçado bom para dirigir tem a entressola baixa ou praticamente inexistente, solado fino e nenhum elemento para enroscar nos pedais. É por isso que gosto de dirigir descalço. Mas se o compromisso é dirigir e apenas dirigir, eu tenho guardado numa gaveta um velho par do Puma Schattenboxen, uma sapatilha de boxe clássica que a Puma vendeu há uns 20 anos como acessório de moda, mas que parece ter sido projetado para dirigir/pilotar.
Conversando sobre isso com o MAO, ele me contou que usa um bom e velho par de All Star de cano alto — que também é o tênis de pilotagem favorito do piloto Ben Collins. Valentino Balboni usa o mesmo par de mocassins pretos desde os anos 1970 — procure fotos dele e você verá que ele usa sempre o mesmo sapato. Nosso amigo Eduardo Cenci, piloto de desenvolvimento na indústria automobilística, e também o brasileiro com mais voltas em Nürburgring, usa sapatos esportivos da Ferracini por sua sola de borracha fina o suficiente para ter uma boa sensibilidade dos pedais.
No automobilismo profissional não há muito o que se inventar: as sapatilhas têm de ter o revestimento de material retardante de chamas para evitar lesões aos pilotos. Muda a marca, mudam os detalhes estéticos, mas o design e os materiais são muito parecidos. Só que isso é coisa surgida em meados dos anos 1970. No princípio, os pilotos usavam o que havia disponível e o que lhes parecesse mais confortável. Juan Manuel Fangio, por exemplo, usava botas com um salto convencional da época.
Foi nos anos 1960 que surgiram os primeiros calçados feitos especialmente para dirigir e pilotar. Para os gentlemen drivers, que queriam apenas dirigir seus GT pelas estradas do mundo todo, um sapateiro italiano chamado Gianni Mostile desenvolveu uma variação do mocassim clássico, na qual em vez de uma sola de couro, havia apenas pequenas bolinhas de borracha que proporcionavam maior flexibilidade e sensibilidade, sem perder a aderência aos pedais.
Mostile registrou o design e, em 1963, fundou sua marca “Car Shoe”. O modelo inspirou diversas variações do mocassim clássico, hoje conhecidas como “driver” pelos fashionistas. O sucesso da marca também a levou à incorporação pela gigante da moda Prada, em 2001.
Dois anos depois, também na Itália, um outro sapateiro chamado Franco Liberto, ou “Ciccio”, como era conhecido pelos seus clientes, recebeu em sua oficina, na Sicília, o piloto da Alfa Romeo Ignazio Giunti, que estava na região para a Targa Florio de 1965.
Ele perguntou a Ciccio se era possível fazer um par de sapatos específico para disputar a prova. Seus colegas da equipe, Nanni Galli e Geki Russo, também se interessaram e, juntos, eles foram a uma pizzaria onde forneceram a Ciccio as especificações: o sapato precisava ser macio, leve e confortável, com a sola mais fina possível para otimizar a sensibilidade dos pés aos pedais.
Depois de alguns dias, Ciccio, apareceu com um par de botas feitas de couro macio, sem costuras, com pequenos ilhoses para os cadarços mais finos disponíveis. Estava criado o primeiro sapato de pilotagem. E ele não funcionou.
Ciccio colou a sola e o cabedal para obter flexibilidade, mas devido à alta temperatura do cockpit, a cola derreteu e os sapatos se abriram. A solução foi fazer uma segunda versão da bota, agora usando uma máquina de costura manual dos anos 1920. Agora, com as costuras reforçando a colagem, o negócio deu certo.
Com um produto inovador em mãos, ele começou a abordar os outros pilotos que disputariam a Targa Florio, oferecendo os sapatos exclusivos. A maioria dispensou a oferta, mas o britânico Vic Elford achou o negócio interessante e topou fazer um sapato para pilotar a corrida.
Na sapataria, Elford pisou numa folha de papel, e Ciccio traçou o contorno de seus pés. E isso foi tudo o que ele precisou para fazer a bota… que ficou com os pés de tamanhos diferentes devido à pressa na confecção — Ciccio entregou o calçado a Elfort minutos antes da largada. Um dos pés ficou no tamanho 40, e o outro 38.
Quando Elford venceu a corrida, ele atribuiu sua vitória às botas diferentes de Ciccio. Da noite para o dia, Ciccio se tornou o sapateiro dos pilotos de corrida, consolidando a criação da sapatilha de pilotagem. Ao longo dos anos, o design foi aprimorado e, quando as grandes fabricantes de material esportivo começaram a fabricar suas próprias sapatilhas, com materiais avançados, foi o design básico de Ciccio que inspirou cada uma delas.
Infelizmente, como o automobilismo profissional passou a exigir sapatilhas anti-chama logo no início dos anos 1980, as sapatilhas de Ciccio tiveram vida curta na Fórmula 1, endurance e rali. Durante os pouco mais de 10 anos entre sua criação e a obrigatoriedade do material anti-chamas, as sapatilhas foram adotadas por praticamente todos os pilotos profissionais da época — de Emerson Fittipaldi a Jacky Ickx, de Arturo Merzario a Carlos Reutemann. Niki Lauda calçava um par de botinas de Ciccio em seu infernal acidente em Nürburgring, e não sofreu queimaduras nos pés porque as botas eram feitas de couro de cabra.
Lauda, aliás, não usava as sapatilhas apenas porque gostava delas. Em 1976 Ciccio havia acabado de se tornar o fornecedor oficial de sapatilhas para a Ferrari, uma encomenda feita pelo próprio Enzo — que chegou a incluir Ciccio nos agradecimentos pelo tricampeonato de construtores em 1977.
E aqui um detalhe interessante, que ilustra a riqueza de detalhes do filme “Rush, no Limite da Emoção”: os figurinistas do filme compraram sapatilhas legítimas de Ciccio nas gravações.
Um fato curioso é que, apesar do sucesso das sapatilhas e do fato de elas serem feitas sob medida — Ciccio tinha o desenho dos pés dos pilotos em um caderno —, ao menos dois de seus clientes faziam uma pequena… adaptação, digamos:
James Hunt e Carlos Reutemann cortavam as pontas da sapatilha, deixando sua ponta como se ela fosse uma sandália. A justificativa de ambos era a mesma: com os carros de F1 ganhando perfis cada vez mais esguios na dianteira, alguns carros deixavam pouco espaço para os pés acima da pedaleira. Hunt e Reutemann achavam incômodo a ponta das sapatilhas tocando a parte superior da caixa de pedais e resolveram o problema simplesmente cortando o calçado.
Mesmo após a obrigatoriedade das sapatilhas de Nomex, Ciccio continuou fazendo calçados para gentlemen drivers e outros pilotos que não precisavam das sapatilhas especializadas. Ele trabalhou em sua sapataria, de portas abertas para o Mar Tirreno, na Sicília, até janeiro de 2022, quando se aposentou para cuidar da saúde e ficar mais próximo da família. Um ano depois de sua despedida da oficina, ele se despediu de todos nós.
Em seu site oficial, ainda ativo, ele publicou uma carta ao público anunciando sua aposentadoria, a qual encerrou da seguinte forma:
“Não pensem em mim com tristeza. Saibam que eu sou um homem feliz porque realizei meu sonho: fazer parte do mundo do automobilismo que eu sempre amei, conhecer e ser amigo de tantos pilotos, ser fornecedor da Scuderia Ferrari e até ganhar uma certa notoriedade no mundo todo. Receber tantos elogios, entrevistas, reconhecimentos e prêmios, e ver meus sapatos exibidos em tantos museus de prestígio, trabalhar para Hollywood e até mesmo estrelar um comercial da Porsche dedicado a mim, foi tudo muito além do que eu esperava. Não estou triste, mas estou pronto para mergulhar em novas aventuras e dizer que renasci, para permitir que todos os fãs de hoje e de amanhã conheçam a história de um humilde artesão que um dia inventou os sapatos de corrida.”
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