Entre 1976 e 1990 nós, brasileiro, fomos absolutamente proibidos de importar automóveis. Foi um golpe de mestre dos milicos, pois foi graças a esse protecionismo que desenvolvemos fabricantes locais que estão por aí até hoje — vide a Puma e a Santa Matilde.
É claro que estou sendo irônico. Foi um período sombrio em nossa história, que nos isolou do mundo e derrubou a qualidade de praticamente tudo o que se fazia aqui dentro — sem contar que atrasou demais a adoção de tecnologias eletrônicas que começavam a se tornar o padrão da indústria. E mais: para atender a demanda pelos importados, tínhamos caricaturas destes modelos. Por exemplo: a Lafer fazia uma cópia do MG TC sobre um chassi de Fusca, com motor traseiro e estepe falso. Interessante? Sem dúvida. Mas da experiência do roadster clássico inglês, só havia a estética e o teto conversível.
Havia também o Verona disfarçado de BMW M3 — um negócio tão constrangedor quanto um tênis falsificado. Me desculpem os ofendidos, mas não vou romantizar esse lado daquele período. Outra criação era o Passat Quattro, uma tentativa da Sulam em entregar aos brasileiros um Audi Quattro. Esse era um pouco mais aceitável, porque ao menos tinha uma origem comum — ainda que o Quattro usasse a plataforma do Santana, e não do Passat..
Ironicamente, na mesma época em que o Quattro dominava os estágios do WRC, a Volkswagen brasileira tinha um time de rali, que corria com o Gol de tração dianteira mesmo. O próprio Gol, aliás, é um fruto desse período: o Polo era pequeno demais e o Golf caro demais. O jeito foi fazer um carro aqui, baseado no Passat encurtado. E aí tivemos o Gol. Não tinha Golf GTI, mas tinha Gol GT, que era a versão dublada e cortada para a TV.
Agora, ironia ainda maior é descobrir que alguém pegou um “Gol Wagon” e o transformou em um herdeiro do Audi Quattro para correr nos EUA. Imagine um multiverso onde o Passat Quattro Sulam encontrou a Parati e o Audi Quattro. O resultado é essa “Parati Quattro” das fotos.
Como você deve saber a essa altura de 2030, o Voyage e a Parati foram exportados para os EUA como Fox e Fox Wagon. Quem assistiu a “Batman, o Retorno” percebeu que o povo de Gotham City adorou o carro.
Quem também adorou o carro foi um americano chamado Sakis Hadjiminas, que comprou a perua nova em 1988 e a usou para competir na Pro Rally do SCCA dez anos mais tarde, contra concorrentes do nível do Subaru Impreza WRX e do Mitsubishi Lancer Evolution. Como?
Bem, um dos envolvidos no projeto contou os detalhes no fórum Special Stage, dedicado a ralis nos EUA. Segundo o relato, o carro foi feito em 1998 por Sakis, seu filho Andy, e dois amigos — Luis Figueiredo e José Vicente (este último é o autor do depoimento no fórum). O carro foi modificado com “uma serra e uma solda MIG” e usa a transmissão dos primeiros Audi Quattro e um motor V6 de 12 válvulas do Audi A4, modificado com dois turbos que Sakis usava em seu Quattro 1990 de rua.
“O negócio foi feito totalmente em casa, sem nada especial, apenas muito trabalho, imaginação e muitas noites em claro”, conta Vicente. Segundo o autor, o carro chegou ao 400 cv e pesava 1.250 kg em seu auge.
Além das modificações no motor e no câmbio, o carro recebeu um novo sistema de suspensão, com amortecedores “de rali” da Bilstein e braços inferiores com buchas de de alumínio fabricados sob medida. Os freios usam discos ventilados de 11 polegadas e pinças Brembo de quatro pistões, com cilindro mestre duplo da Tilton. As rodas são instaladas em cubos de cinco furos da Audi, com rodas Fuchs de 15×7 polegadas para provas no asfalto, e rodas de 15×6 polegadas na neve e no gelo.
Por dentro, além da gaiola de proteção completa e do painel aliviado, foram instalados bancos OMP de competição, cintos de cinco pontos da TRW e um sistema de comunicação Terraphone para o piloto e o navegador.
Sakis correu com o carro entre 1998 e 2000. Apesar de ter chegado aos 400 cv, Sakis em determinado ponto começou a “detunar” o motor em busca de mais confiabilidade. Ainda em 1998 o carro teve os turbos removidos e passou a usar uma preparação aspirada. Depois disso, o próprio Jose Vicente começou a usá-lo — não fica claro se o carro foi comprado ou emprestado, uma vez que Sakis montou um Subaru com um “powertrain secreto” — e correu com ele pelo Grupo 5, para carros de tração dianteira.
Esse era um ponto-chave da preparação do carro: ele podia ser facilmente convertido em cerca de 1 hora, podendo competir nas duas classes (Grupo 5 e Aberto) em um mesmo final de semana.
José Vicente ainda conta que o carro fez história nesses ralis do SCCA pois era “o perfeito exemplo de um piloto muito competente brigando com os grandões com um orçamento muito muito limitado”. Surpreendentemente, o carro ainda existe e está guardado na garagem de Sakis, porém com marcas do tempo e do uso nos ralis.
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