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Carros Elétricos Pensatas

A primeira vítima da eletrificação dos carros?

À primeira vista a notícia soa como um problema individual: a Volkswagen anunciou que está em uma situação financeira delicada, e que tem um ou dois anos para tentar revertê-la. Nós já vimos esta história antes — especialmente no Brasil.

A GM já disse ter problemas por aqui e também passou pelo mesmo em 2008, quando a crise econômica global explodiu. A Chrysler, idem. Foi isso, aliás, que a levou a ser comprada pela Fiat, formando a FCA, que hoje é parte da Stellantis. A Ford, da mesma forma, fechou suas fábricas e virou importadora no Brasil. Decisões equivocadas que levaram cada uma delas à beira do abismo. A própria Volkswagen passou por isso em 2016, com o dieselgate. Foi ela, e mais ninguém, que optou por instalar um software que burlava os testes de emissões. A Mitsubishi passou por um problema semelhante no Japão.

Mas desta vez, olhando para o problema da Volkswagen, embora ele tenha relação com decisões equivocadas, ele está sendo agravado pelo panorama da indústria automobilística global — que tem como principais fatores a eletrificação forçada e a forte concorrência chinesa.

O problema da VW

O caso da Volkswagen é que, diante do futuro elétrico imposto pelos governos da União Europeia, da Califórnia e pela realidade do mercado chinês, a fabricante elaborou um plano ambicioso de investir em “Software-defined Vehicle”, um conceito de desenvolvimento de carros baseado no software que comanda suas funções, que foi basicamente criado pela Tesla em 2012 e que, nos olhos da Volkswagen, então presidida por Herbert Diess, seria o futuro do automóvel.

Ainda que o conceito estivesse apenas engatinhando, a Volkswagen assumiu que poderia se tornar a líder do mercado se conseguisse desenvolver seus futuros elétricos usando-o como base. Para isso, eles criaram uma subsidiária chamada Cariad, que iria desenvolver e gerenciar o software que seria usado para todos os elétricos do grupo Volkswagen.

Passados cinco anos, contudo, a Cariad fracassou monumentalmente, resultando no improviso do sotware do ID.3 e do ID.4, e no atraso da arquitetura PPE (Premium Platform Electric), que só chegou ao mercado neste ano. Os atrasos resultaram em um timing péssimo para a Volkswagen: em vez de encontrar um mercado pujante, sedento por veículos elétricos, eles chegaram justamente quando as vendas de veículos elétricos começaram a despencar na Europa e nos EUA.

Isso não seria um problema tão grande, afinal, a Volkswagen ainda teria na China seu principal mercado — 40% de suas vendas acontecem naquele país. O problema é que a força da Volkswagen na China vem de seus modelos híbridos e a combustão. Quando o negócio são os elétricos, a coisa muda de figura. E qualquer pessoa que saia nas ruas em 2024 entende o motivo: a força das fabricante chinesas. Veremos isso mais adiante.

Quando o desastre ficou claro, Diess foi demovido do cargo e Oliver Blume, CEO da Porsche, assumiu para controlar a situação. E o resultado é que a Volkswagen terá de fechar fábricas e fazer uma reestruturação drástica em, no máximo, dois anos. Com a previsão de vender 500.000 veículos a menos que em 2019 — e sem perspectivas de voltar ao volume de vendas pré-pandemia, não restará opção se não fechar fábricas na Alemanha — algo que nunca aconteceu nos 87 anos de história da marca.

Embora não tenha sido declarado, o ponto-chave do problema da Volkswagen foi a estratégia ousada que dependia do embalo das vendas dos elétricos na Europa e na China, algo que não aconteceu — ainda que parecesse garantido pela legislação europeia e pelo crescimento chinês.

 

A força da China

A principal barreira de entrada de uma fabricante de automóveis no mercado é o motor. Não é por acaso que os EUA aprovaram o “low volume manufacturers act”, permitindo que uma fabricante artesanal homologue seus carros com motores de grandes fabricantes. Nem é por acaso que o Reino Unido, que sempre permitiu esse tipo de coisa, seja o grande celeiro de carros artesanais.

Não é uma questão de tecnologia, afinal, um motor de combustão interna não é algo exatamente complicado de se fazer. A Ferrari fazia seus V12 em uma fundição artesanal com moldes de areia na zona rural de uma Itália recém-saída da Segunda Guerra. O problema é o custo de desenvolvimento e homologação destes motores. É isso o que os torna proibitivos para um fabricante iniciante ou mesmo para uma grande corporação. Veja a Subaru, por exemplo, que é subsidiária de um dos maiores conglomerados industriais do Japão, e mesmo assim mantém suas famílias de motores por ciclos superiores a dez anos.

A tecnologia de motores de combustão é tão cara, na verdade, que as fabricantes já alertaram que as exigências de emissões e consumo poderiam matar o carro popular. E estamos falando de fabricantes que já têm a máquina girando.

Com os carros elétricos, contudo, esta barreira é removida. Um motor elétrico é um dispositivo simples, barato e eficiente. Com um pouco de outsourcing é possível criar uma fabricante de veículos elétricos viável. Pergunte a Elon Musk, que começou a Tesla com um Lotus Elise, baterias coreanas e um software próprio.

Atualmente, as maiores fabricantes de automóveis do mundo, também estão entre as maiores fabricantes de carros elétricos do mundo. A Volkswagen está lá, assim como a Stellantis, GM, BMW, Hyundai e Mercedes. Mas a líder desta tabela é ninguém menos que a BYD.

A BYD não surgiu do nada, como um desavisado poderia pensar. Ela nasceu como uma fabricante de baterias em 1995, e em apenas sete anos se tornou a maior fabricante de baterias de níquel-cádmio do planeta, com 65% do mercado.

Na mesma época, eles também começaram a produzir componentes para telefones celulares e, em 2005, fizeram seu primeiro carro, o BYD F3 — uma espécie de Corolla com traseira de Camry que usava o motor Mitsubishi Orion. Três anos depois, a BYD fez seu primeiro híbrido plug-in, ainda baseado no F3 e, no ano seguinte, em 2009, eles colocaram nas ruas o BYD e6, seu primeiro elétrico — inicialmente atuando como táxis, e, mais tarde, para frotistas.

Hoje, depois de 15 anos, ela produz mais de 3 milhões de veículos elétricos a bateria e híbridos plug-in por ano, assumindo a liderança global entre os fabricantes de elétricos/híbridos. A Tesla, segunda colocada, produz 1,8 milhão de unidades por ano, enquanto a Volkswagen, terceira colocada, entrega pouco mais de um milhão de elétricos/híbridos por ano. Entre os dez maiores fabricantes de carros elétricos do mundo, ainda temos a Geely e a GAC, uma das mais antigas fabricantes de automóveis da China.

A força chinesa se deve, principalmente, a dois fatores: um empurrão do Estado e um quase-monopólio global.

O empurrão do Estado está não apenas nos subsídios concedidos aos fabricantes e compradores chineses, mas na própria atuação do Estado como fabricante. Destas três grandes fabricantes chinesas, apenas a GAC é estatal, porém a BYD e a Geely têm entre seus investidores fundos que têm participação do governo chinês. 

Depois tem os subsídios. Entre 2009 e 2023 o governo chinês concedeu um total de US$ 230,9 bilhões em incentivos à indústria de veículos elétricos. Eles foram distribuídos na forma de abatimentos, isenção de impostos, financiamento de infraestrutura, programas de pesquisa e desenvolvimento para os fabricantes e aprovisionamento do governo.

Isso significa, na prática, que todos os fabricantes estrangeiros que tentam concorrer no segmento dos veículos elétricos na China, têm essa desvantagem logo de cara. Foi o que aconteceu com a Volkswagen: apesar do plano ambicioso — que consumiu mais de 20 bilhões de euros e previa mais 160 bilhões de euros investidos até 2027 — ela não conseguiu emplacar mais de 45.000 unidades no primeiro trimestre deste ano em um mercado que comprou 1 milhão de veículos elétricos.

Outra força propulsora da indústria chinesa é o domínio das baterias — talvez a maior vantagem sobre as fabricantes estrangeiras. Atualmente mais de 80% das células de baterias são feitas na China, que também detém uma grande parcela da mineração de lítio, cobalto, manganês e terras-raras. Não por acaso, o custo das baterias na China caiu a US$ 126/kWh enquanto nos EUA esse preço é 11% mais alto e, na Europa, 20% mais alto.

 

O desafio ocidental

Já faz algum tempo que a China se tornou o maior mercado global de automóveis, com o dobro do volume de vendas dos EUA, historicamente o país que mais comprou automóveis no planeta. Em 2023 foram mais de 30.000.000 de veículos vendidos na China e 15.000.000 nos EUA. Em terceiro lugar vem o Japão, com pouco menos de 4.800.000 veículos.

O efeito deste crescimento foi a dependência das marcas ocidentais do mercado chinês — BMW, Mercedes, Volkswagen, Volvo e GM têm na China seu principal mercado, enquanto Toyota e Ford têm a China como segundo maior mercado; Stellantis, Renault-Nissan e Honda são menos dependentes da China. Agora, com a eletrificação sendo imposta pela legislação europeia e californiana (esta, capaz de influenciar os EUA como um todo), as fabricantes precisam investir nos carros elétricos.

E aí surge o desafio: os governos ocidentais estão obrigando os fabricantes a produzir carros elétricos, porém não conseguem providenciar o mesmo nível de subsídio que o governo chinês concedeu às fabricantes chinesas.

Aqui é importante notar que somente a Volkswagen e a Tesla conseguiram competir em igualdade contra os chineses no mercado local até agora. A Tesla é a segunda maior fabricante de elétricos na China, enquanto a Volkswagen foi a sexta maior no ano passado. Porém, com mais da metade do mercado chinês dominado pelos elétricos e híbridos plug-in, a BYD ultrapassou a Volkswagen em 2023 e se tornou a marca mais vendida localmente. Nem mesmo a mais forte das marcas ocidentais resistiu à ofensiva chinesa na China.

A situação é mais dramática porque os fabricantes ocidentais não estão ganhando dinheiro com os elétricos que eles são forçados a desenvolver. Eles, na verdade, estão perdendo dinheiro. Segundo um relatório da consultoria Boston Consulting Group publicado pelo Automotive News, os fabricantes perdem, em média, US$ 6.000 a cada veículo elétrico vendido. Imagine ser obrigado a fazer um produto que te traz prejuízo?

A euforia do carro elétrico está passando?

A China se tornou o principal mercado para a maioria das fabricantes do planeta  e elas estão sendo obrigados a eletrificar boa parte de suas linhas de produtos em dez anos. Ao mesmo tempo, as fabricantes ocidentais não conseguem concorrer com as chinesas nesse segmento dos elétricos por razões já explicadas mais acima. O que irá acontecer com as fabricantes ocidentais em um futuro no qual não há demanda ou subsídios por carros elétricos? Será a Volkswagen apenas a primeira vítima da eletrificação?