São pouco mais de 18:00. Você está dentro de seu carro, com o motor ligado, mas estaria se movendo mais rápido a pé. Ao seu redor, milhares de pessoas na mesma situação. Algumas conversam com seus passageiros, outros usam o celular como se o futuro da humanidade dependesse daquilo, há quem aproveite para refletir sobre a vida, ouvir a Voz do Brasil, ou reclamar do prefeito que não resolve essa porcaria de trânsito.
Provavelmente este caminho é o mesmo que havia dez ou vinte anos atrás, quando a cidade era menos populosa e não havia tantos carros nas ruas. Então você chega à brilhante conclusão de que a prefeitura deveria construir rotas alternativas para desafogar os congestionamentos. É tão fácil: desapropria-se meia dúzia de terrenos, faz-se um sistema bem planejado e estruturado, previsto para suportar o aumento da demanda pelos próximos 20 anos e o problema está resolvido.
Acontece que isso não funcionaria. Segundo os economistas Matthew Turner, da Universidade de Toronto, e Gilles Duranton, da Universidade da Pensilvânia, a culpa pelos congestionamentos não é do planejamento urbano, nem dos motoristas e muito menos da explosão demográfica mundial nos últimos 15 anos. Para eles, quem causa os congestionamentos são as próprias ruas, estradas e rodovias.
Surpreso? Nós também, especialmente por que essa afirmação é como dizer que é a contratação de médicos que causa as doenças.
Segundo a dupla, trata-se de um conceito chamado “demanda induzida”, que é o termo em economiquês para quando o aumento da oferta de algum produto (como estradas) faz as pessoas procurarem mais aquilo que é ofertado. Por exemplo: há 30 anos a Coca-Cola “família” era uma garrafa de um litro. Depois surgiram a de dois litros e a de três litros é esse o tamanho “família” de hoje.
Esse fenômeno foi notado pela primeira vez no começo dos anos 1960 nos EUA, mas só agora alguém usou metodologia científica para comprovar a teoria. Mais exatamente em 2009, quando a Turner e Gilles decidiram comparar a quantidade de novas ruas e estradas construídas em diferentes cidades nos EUA entre 1980 e 2000 e o número total de quilômetros dirigidos nestas cidades no mesmo período.
Eles descobriram que, se uma cidade aumentou sua capacidade viária em 10 % entre 1980 e 1990, o número de quilômetros rodados naquela cidade aumentou… 10%. Se nesta mesma cidade o número de ruas aumentou 11% entre 1990 e 2000, o número total de quilômetros rodados também aumentou 11%.
Poderíamos pensar que os engenheiros de tráfego americanos são, na verdade, alemães, e conseguem aumentar a malha viária precisamente de acordo com o aumento da demanda dos motoristas, mas os pesquisadores acham isso improvável pois eles sabem que o sistema de rodovias interestaduais dos EUA (as famosas Interstates) segue o planejamento concebido em 1947, e seria uma incrível coincidência que os engenheiros tivessem previsto o aumento da demanda ao longo destes 67 anos.
A teoria dos economistas é o que eles chamam de “lei fundamental dos congestionamentos”: novas ruas criam novos motoristas, o que anula as vantagens do aumento da malha viária.
Mas de onde vêm esses novos motoristas?
Aqui é a parte você se pergunta: de onde vêm esses novos motoristas? Eles são formigas mutantes afetadas geneticamente pelo piche compactado da pavimentação?
Na verdade, a resposta é simples (talvez até demais): segundo a teoria dos economistas, as estradas permitem que as pessoas se locomovam e por isso ao saber que é possível usar uma nova estrada, a pessoas consideram usá-la de fato. Não é incrível? Sim, estou sendo irônico, pois não imagino outra razão de se abrir uma estrada que não seja usá-la para viajar.
Quando você abre uma nova rua que liga um lugar outrora ermo e distante de um grande centro de interesse, as pessoas consideram morar lá mesmo que tenham que dirigir alguns quilômetros diariamente para chegar ao trabalho. E não fica por aí: esse trajeto facilitado faz com que as pessoas usem mais o carro do que antes, e até mesmo os estabelecimentos comerciais passarão a contar com essas novas vias em sua logística. Logo, as novas vias estarão abarrotadas de carros e você continuará parado como antes.
Então a solução é mesmo investir em transporte público? Quase isso. Os dados mostraram que mesmo em cidades que expandiram o transporte público, os congestionamentos continuaram os mesmos — afinal, a população mundial cresce mais rápido que qualquer obra pública. Em Paris, a polícia afirma que os congestionamentos reduziram 40% desde que as medidas de controle de qualidade do ar foram implementadas, restringindo o tráfego de carros no centro da cidade. Mas ainda que os congestionamentos tenham supostamente reduzido, o motorista Parisiense ainda perde 70 horas por ano parado no trânsito — ou quase 10 minutos a mais em um trajeto de meia hora.
Em Londres, mesmo com o metrô mais eficiente do mundo, pedágios urbanos, faixas exclusivas para ônibus e um aumento de 10% no número de ciclistas somente em 2014, os deslocamentos ficaram, em média, 14% mais lentos que em 2010. O aumento no tempo das viagens de carro na capital britânica colocaram a cidade na 16ª posição no ranking das cidades mais congestionadas do planeta feito pela TomTom, a fabricante de sistemas de navegação por GPS, que usa dados coletados por seus sistemas para obter as estatísticas.
Então o mundo será para sempre um grande congestionamento sem fim?
Se construir mais ruas não resolverá os congestionamentos, e o transporte público não influencia significativamente o número de quilômetros rodados nas cidades, como resolveremos esse problema? Bem temos duas possibilidades; a primeira delas é aceitar a realidade de um planeta habitado por sete bilhões de pessoas que precisam estar sempre no mesmo lugar ao mesmo tempo como fizemos nos últimos 100 anos e convivermos com conflitos ideológicos sobre uso do espaço urbano já ocupado.
A redução do espaço para os carros é uma realidade que tem sido colocada em prática em muitos países, como a França, Coreia do Sul e até nos EUA — claro, tudo isso acompanhado de investimentos em transporte público e flexibilidade burocrática e trabalhista —, mas o caminho ainda não é somente este.
No século passado, especialmente no Brasil, houve o fenômeno conhecido como êxodo rural — aquele que aprendemos nas aulas de história e geografia no ensino fundamental. As pessoas migraram do campo para as cidades em busca de novos trabalhos. As cidades cresceram e passaram a concentrar mais pessoas — metade da população brasileira em 2016 vive em apenas 26 regiões metropolitanas formadas por 274 cidades. A outra metade da população brasileira está distribuída em 5.296 municípios.
Só que esta distribuição demográfica é resultado de um modelo sócio-econômico antiquado. A realidade é que ainda estamos agarrados a uma cultura que já não se encaixa mais no mundo atual. Nós temos a necessidade de estar sempre em trânsito, seja por lazer, seja por trabalho ou para outras obrigações. Mas isso só acontece porque estamos encarando a vida no século 21 com a cultura de cem anos atrás.
Não precisamos mais estar enfurnados em escritórios e dividindo ilhas com nossos colegas de trabalho. Isso era uma necessidade no início do século 20, quando ainda precisávamos encarar linhas de produção, supervisionar grupos de trabalhadores e assinar papéis. Ou melhor dizendo, quando ainda precisávamos de papéis sobre a mesa.
Acorde: chegamos ao futuro! Você não vem?
Com o avanço tecnológico poderíamos mudar drasticamente o modo de trabalho, o que resultaria em mais tempo livre que, por sua vez, poderá gerar novas atividades econômicas de cunho intelectual. Como explica Domenico de Masi em seu livro “O Ócio Criativo”: “As empresas seriam mais criativas, mais produtivas e reduziriam as despesas. Os trabalhadores teriam mais tempo para a vida pessoal, revitalizariam seus relacionamentos com a família, com o bairro, com a cultura, alimentariam a própria criatividade.”
Mas apesar de todas as possibilidades da tecnologia moderna — caramba, temos até carros autônomos! — ainda temos horário para acordar, chegar ao trabalho, horário para comer, horário para voltar ao trabalho, para sair, para dormir, funções a cumprir pessoalmente, relógio-ponto, burocracia…
Voltando a Londres, onde o trânsito continua caótico apesar das medidas, sabia que 75% dos trabalhadores da cidade precisam se deslocar diariamente de casa até o trabalho? Estamos falando de três milhões de pessoas indo e voltando, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Somente 25% podem trabalhar em casa ou não dependem de um veículo — motorizado ou não — para trabalhar. É pouco, mas ainda é um número bem mais alto que no Brasil, onde somente 36% das empresas permitem home office e a maioria delas na área de TI ou de Pesquisa e Desenvolvimento. Em muitas delas o home office é liberado somente em um ou dois dias por semana.
Em um futuro onde as pessoas poderão realizar suas obrigações remotamente, poderemos morar em lugares mais distantes ainda, sem precisar dirigir, ou pegar um ônibus ou pedalar para chegar ao trabalho. Poderíamos morar em qualquer lugar, e não apenas onde o trabalho está — afinal, ele estará em qualquer lugar conosco —, ocupando o espaço com mais racionalidade.
O FlatOut é um site editado remotamente. Temos um local para reuniões, um QG com endereço comercial e tudo mais, mas o grosso do dia-a-dia é feito por três caras em três cidades diferentes e separados por mais de 100 km. E embora isso seja uma exceção atualmente, há muitos outros tipos de trabalho que podem ser realizados desta forma, se não estivermos dependentes de uma estrutura centralizada que deve ser frequentada todos os dias por mera formalidade cultural e adequação às leis trabalhistas.
E ainda poderíamos falar de empregos que já estão em extinção em países desenvolvidos e que são mantidos por aqui por questões sócio-econômicas, mas ainda fazem milhões de pessoas se deslocarem por longas distâncias diariamente, saturando ônibus, trens, ruas e avenidas. Com o trabalho remoto e todas as facilidades, poderemos reverter o processo do êxodo rural: as pessoas não precisarão mais morar perto do trabalho — elas poderão escolher onde morar de acordo com sua conveniência.
E a tecnologia não beneficia somente o deslocamento casa-trabalho-casa. Pense em quantas coisas fazemos pessoalmente que podem ser feitas remotamente: atendimento bancário, autenticação de documentos em cartórios, fazer cursos profissionalizantes e dar educação básica aos nossos filhos. Pense em todas as tecnologias que nos ajudam a não enfiar um carro no meio da loucura automotiva que impera nas grandes cidades — muito menos a entrar em um ônibus ou montar em uma bike.
Entrega feita por drone da DHL. Quem precisará de motofretistas no futuro?
Quando você vê uma rua congestionada, parece que o futuro distópico superpopuloso já virou presente, que ele é isso que está aí e não poderemos fazer diferente, como se não tivéssemos tecnologia, não tivéssemos espaço (talvez não no centro de São Paulo, mas a 100 km dali) e não tivéssemos capacidade criativa para construir algo diferente do que estamos acostumados.
Esqueça essa discussão sobre espaço para carros, para bikes e para ônibus. Tudo isso só vai funcionar até a hora em que a teoria da demanda induzida se concretizar novamente. A solução está na forma com que vivemos atualmente, e isso tem a ver com as nossas necessidades atuais. Você não precisa realmente estar na frente do seu chefe para entregar um relatório. Enquanto isso, aumente o som do rádio e… preste atenção! O semáforo ficou verde.
Este post foi originalmente publicado em 18 de junho de 2014 e foi reeditado em 22 de março de 2016 com novas informações e dados atualizados.