Não há nada místico ou artístico em um câmbio Hewland. Ao menos não sob o senso-comum. Uma caixa de câmbio não é nada além de metal trabalhando contra metal. Um punhado de engrenagens de dentes retos e eixos, mergulhado em um fluido viscoso, transmitindo força com a menor perda possível. Agora… se você considerar o que esse punhado de metal proporciona — uma reação direta, seca e honesta — aí sim, podemos começar a discutir sua arte.
Não a arte etérea de um óleo-sobre-tela, mas a arte brutalista de uma ferramenta de precisão. Aquela que nasce da beleza da função pura. Nesse caso, o Hewland é sim uma forma de arte. Uma arte perdida, sobrepujada pela tecnologia da automação e das tarefas múltiplas. O Hewland vem de outro tempo, ele é a essência do purpose-built. Ele não tenta ser confortável, não tenta ser silencioso e certamente não tenta ser fácil de usar. Ele existe com um único propósito: conectar o virabrequim à roda da forma mais rápida e robusta possível.
Mas a arte não pode ser arte sem humanidade. E o Hewland, sendo uma ferramenta purista, só funciona quando essa humanidade entra na equação — não de forma filosófica, e sim de forma prática.
O Hewland é uma máquina de tolerância zero. As engrenagens “dog-clutch” não querem saber da sua intenção; ele quer que a rotação do eixo de entrada e do eixo de saída esteja exatamente igual agora. Ponto. O câmbio, em si, é perfeito na sua lógica. Ele é previsível. O piloto? O piloto é a variável caótica. É o elemento imperfeito que produz a arte.

O Hewland não te julga; ele apenas expõe sua essência humana. Se você acerta o punta-tacco e a velocidade dos eixos se iguala, ele te recompensa com um ruído mecânico limpo, que parece um cofre se fechando. O som do trabalho bem feito. Mas se você erra — se sua imperfeição humana fala mais alto, se você cansa, se você é lento, se você chuta a embreagem — o Hewland te entrega o som da destruição. O feedback honesto da física pura te dizendo que você errou e precisa melhorar.
Em um câmbio moderno com dupla embreagem, sua imperfeição é filtrada por um computador. O software corrige você. No Hewland, não há filtro. É você e o metal. A “humanidade” da coisa é essa responsabilidade nua e crua. A arte é o piloto domar a si mesmo o suficiente para merecer usar a ferramenta.
Mas como essa caixa de metal barulhenta e bruta se tornou o padrão do automobilismo da segunda metade do século XX?
A história começa com um problema e um galpão. O ano era 1959. Mike Hewland, o fundador, era um engenheiro que prestava serviços para equipes de corrida, notadamente a Lola Cars, na Fórmula Junior. O problema era o seguinte: os câmbios feitos em série, adaptados para os carros de corrida… quebravam. Ou eram lentos. Ou pesados. Ou tudo isso junto.
A primeira grande sacada de Mike Hewland não foi inventar uma transmissão do zero. Foi olhar para o lugar mais improvável: o Fusca. Sim, o Fusca. O transeixo do Fusca tinha duas vantagens cruciais: era leve (carcaça de magnésio!) e era robusto. Mas, mais importante, sua arquitetura permitia o que viria a ser o primeiro pilar do império Hewland: o acesso fácil.

Hewland percebeu que, invertendo a coroa e o pinhão (para uso em um carro de motor central-traseiro, como o Lola Mk1), ele poderia criar um câmbio de corrida funcional. Mas a verdadeira mágica veio com a Hewland HD4 e HD5: ele redesenhou a parte traseira da carcaça para que o conjunto das engrenagens pudesse ser removido e trocado sem tirar o câmbio do carro.
O Hewland abraçou o dog-ring. Em um câmbio de rua, anéis sincronizadores usam fricção para igualar a velocidade das engrenagens antes que elas se encaixem. Isso é suave. E lento. E adiciona peso e complexidade. O dog-ring é o oposto. É uma luva com dentes grandes e quadrados que se encaixa à força em “janelas” na engrenagem. Não há fricção, não há suavidade. Há apenas rapidez no acoplamento.

O “preço” dessa velocidade era a necessidade de o piloto igualar as rotações (o “rev-matching”) perfeitamente nas reduções. Se você errasse, o câmbio respondia com um arranhão que doía na alma e na conta bancária. O Hewland exigia habilidade. Ele separava os pilotos dos “motoristas”.
Mas o que fez a transmissão se tornar realmente popular e dominar o mercado foi a modularidade.
Aquele acesso fácil que Hewland bolou para o câmbio do Fusca evoluiu. Em um câmbio Hewland “clássico” (como o onipresente FT200 ou o DG300), você podia sacar a tampa traseira e ter acesso direto aos pares de engrenagens. Isso significa que era possível trocar qualquer relação em menos de 20 minutos, nos boxes, sem desmontar a traseira do carro.
Antes do Hewland, trocar uma relação de marcha significava, muitas vezes, desmontar o câmbio inteiro ou ter três câmbios diferentes no caminhão. Hewland vendeu às equipes não apenas uma transmissão confiável e robusta, mas também eficiente e prática.
O Hewland se tornou onipresente – da Fórmula Ford à Fórmula 1 dos anos 70, da Can-Am aos protótipos de Le Mans – não por ser o mais tecnológico. Ele venceu por ser o mais lógico. Era relativamente barato (comparado a uma solução Colotti ou ZF na época), era incrivelmente robusto, e qualquer mecânico com um jogo básico de ferramentas podia mantê-lo.

Por isso, voltamos ao início. Não há nada de místico ali. O Hewland é honesto. Ele não te engana com borboletas no volante ou software de controle de largada. Sua “arte” é a pureza. É o resultado de um engenheiro brilhante que olhou para um problema e encontrou a solução mais direta. É a prova de que, no automobilismo, a essência sempre vence o supérfluo.
A Hewland, contudo, já não é mais dominante como um dia foi. Como o próprio o automobilismo, a empresa deixou no passado o desenvolvimento do câmbio manual e se concentra agora em transmissões de todo tipo, sempre com acionamento sequencial automatizado/semi-automático. Sua arte, contudo, continua viva nas mãos de milhares de mecânicos em todo o mundo, que mantêm funcionando as dez gerações do projeto original, sempre prontas para voltar à ativa em um monoposto clássico ou em algum projeto maluco.


