A história da indústria automotiva brasileira foi fortemente marcada por modelos seus fora-de-série. Modelos com carroceria de fibra sobre chassi próprio ou emprestado de modelos consagrados, com conjunto mecânico popular e confiável não são uma peculiaridade nossa, mas foram muito mais prolíficos por aqui. Foi a consequência de um mercado fechado e da abundância dos modelos VW a ar, que sobravam em nossas estradas – além, é claro, da inventividade típica dos brasileiros.
O Puma é, sem dúvida, o melhor exemplo. O fora-de-série nasceu em 1967, com mecânica DKW, mas foi a partir do ano seguinte, com a adoção do chassi do Karmann-Ghia, que o Puma tornou-se verdadeiramente popular – tanto que permaneceu no mercado até a reabertura das importações, em 1990. Era uma prova da versatilidade da base Volkswagen, mais uma vez: por mais que não fosse exatamente rápido, o Puma colocava a tração traseira e o entre-eixos curto do Karmann-Ghia em um pacote mais esportivo — especialmente com os motores 1.600 a 2.100 feitos por encomenda.
Mas qual seria o limite da versatilidade dessa plataforma Volkswagen? Daria, por exemplo, para pegar o motor boxer de quatro cilindros e colocar em… uma moto?
A resposta é uma só: sim. Seu nome era AME Amazonas, e ela era uma moto enorme com motor e câmbio de Fusca. Tinha até marcha-a-ré, e custava nada menos que o equivalente a seis exemplares da Honda CG125, que foi lançada no Brasil em 1976 e tornou-se a moto mais vendida do País.
A AME Amazonas, que começou a ser produzida em série, em 1978 era exatamente o oposto de uma CG: uma moto gigantesca e potente, criada para atender ao público que já não podia mais comprar motos da Harley Davidson por conta da proibição de veículos importados (que foi o que motivou a nacionalização da Honda CG em primeiro lugar).
A história da Amazonas, contudo, começa pouco antes. Em 1976, dois amigos mecânicos chamados Luiz Antonio Gomide e José Carlos Biston, de São Paulo/SP, construíram a Motovolks, um protótipo com motor boxer VW de 1.500 cm³ e câmbio manual de quatro marchas. A parte superior do quadro usava uma mistura de componentes Harley e Indian, enquanto a parte inferior era feita sob medida para acomodar um motor boxer VW 1500 e o câmbio manual de quatro marchas vindos do Fusca.
Uma observação importante: colocar um motor boxer em uma moto não é novidade. Os cilindros opostos são uma característica das motos BMW, que aposta na configuração por seu tamanho compacto, simetria (o que ajuda bastante em um veículo de duas rodas) e centro de gravidade baixo.
A transmissão era adaptada para a moto de forma tão simples que parece mentira: as duas engrenagens do diferencial eram soldadas, uma coroa era instada no lugar de uma das semi-árvores, e uma enorme corrente era responsável por levar a força para a roda traseira. A embreagem era específica para a moto, assim como o trambulador (no pé esquerdo, como se tornou o padrão das motos). Os freios usavam discos de Ford Corcel; dois na dianteira e um na traseira, com cilindro-mestre de Fusca.
Era uma simplicidade que funcionava, e a Motovolks até que tinha um visual bacana: inspirada nas Harley customizadas da época, tinha tanque de combustível em forma de caixão, guidão alto, banco de dois níveis e encosto para o passageiro. Com 1,69 metro de entre-eixos, 2,24 metros de comprimento e 330 kg na balança, era preciso usar a marcha à ré para manobrar a moto. Para usar a marcha reversa havia uma alavanca separada – a ré no pedal poderia ser confundida com as outras marchas e causar problemas. Além disso, o volante do motor precisou ser aliviado: o torque e o peso do conjunto mecânico faziam com que a moto inclinasse para o lado sob aceleração, e a menor inércia do volante modificado resolveu o problema. O motor de arranque do Fusca também foi aproveitado, assim como seu sistema elétrico. O quadro de instrumentos, porém, vinha de um Simca. E nunca chegou a funcionar de verdade.
Reza a lenda que outros quatro exemplares da Motovolks foram feitos por Gomide e Biston, mas não se sabe do paradeiro deles. E esta história poderia ter acabado por aí caso um empresário paulista chamado Daniel Ferreira Rodrigues, dono do grupo Ferreira Rodrigues, não tivesse entrado nela.
Ferreira Rodrigues tomou conhecimento da moto e achou que ela era a solução perfeita para outro problema: a falta de motos na frota da Polícia Militar, que utilizava motos da Harley sucateadas por falta de componentes de manutenção. Não havia outra motocicleta de grande porte fabricada no Brasil, e a Motovolks seria a primeira.
O projeto básico da Motovolks foi, então, comprado pela Ferreira Rodrigues e modificado para produção em série. Foi aberta uma nova empresa, a Amazonas Motocicletas Especiais Ltda., ou simplesmente AME. Era uma referência direta à grandeza da Amazônia, a maior floresta tropical do planeta – a AME Amazonas 1500, como foi chamada, era a maior moto que se podia comprar no mundo em termos de deslocamento naquela época, e provavelmente também em tamanho. E depois ainda foi adotado o motor VW 1600 da Brasilia, com 64 cv. Em ambos os casos, o motor recebia dois carburadores Solex, um de cada lado, que ficavam bem proeminentes no conjunto.
A industrialização deu à moto criada por Gomide e Biston uma cara mais bonita e melhor acabamento, além de incorporar, ao longo dos anos, mudanças ao projeto que melhoravam a ciclística da Amazonas 1500/1600 – cujo peso subiu para 384 kg.
Não era exatamente um veículo prático, mas suas dimensões avantajadas tinham apelo, assim como a robustez de seu conjunto mecânico, que simplesmente não quebrava. Não demorou para que, da mesma forma que o Puma, a Amazonas ganhasse admiradores lá fora. Foram importadas unidades para vários países, como EUA, Japão e Reino Unido, e no total foram fabricados cerca de 450 exemplares entre 1976 e 1988, sendo 100 deles destinados à Polícia Militar de SP e à Polícia Rodoviária Federal.
Dito isto, a imprensa internacional não foi muito gentil com a Amazonas: uma publicação americana avaliou um exemplar em 1987 e disse que seu projeto era primitivo demais e que seu acabamento transpirava amadorismo. No entanto, havia críticas interessantes: o motor, por exemplo, poderia ter sido um componente estrutural, aumentando a rigidez do chassi e reduzindo peso. Do modo como a Amazonas era montada, o que acontecia era o oposto.
De certa forma, isto ajuda a entender por que a Amazonas deixou de ser fabricada logo que apareceram os primeiros sinais de que as importações poderiam ser abertas novamente surgiram. Dito isto, sua estranheza e sua inegável resistência e facilidade de manutenção, além do porte avantajado, garantiram que a Amazonas conquistasse uma dedicada base de admiradores que persiste até hoje.
Tanto que, entre 1990 e 1992, uma evolução da Amazonas tentou a sorte. A chamada Kahena ST1600 trazia um novo chassi, mais compacto e leve, e uma postura mais esportiva, inspirada nas supermotos da década de 90, incluindo nos grafismos da carroceria. Era uma moto um pouco mais leve, mas ainda tinha seus 300 kg.
Diferentemente do que ocorre com a Amazonas, o número de exemplares da Kahena que foram fabricados é desconhecido.