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Car Culture

Arte nas pistas: a origem e a história dos BMW Art Cars

Tudo começou em 1975, quando o piloto e leiloeiro francês Hervé Poulain teve a ideia de convidar um artista plástico para pintar o carro que ele usaria nas 24 Horas de Le Mans daquele ano. Ele entregou um BMW 3.0 CSL de pista, com 480 cv, ao escultor americano Alexander Calder, que também era seu amigo e, provavelmente, parceiro comercial.

Calder se viu em um desafio pessoal: ele precisava criar uma pintura que transmitisse sua identidade artística, mas pela primeira vez ele trabalhava em algo que não esculpiu, nem produziu. Ele acabou pintando o 3.0 CSL com cores vibrantes e linhas curvas sobre a asa, teto e capô, e foi convidado para assistir as 24 Horas de Le Mans de 1975 para testemunhar a  “premiere” de sua obra de arte nas pistas.

Infelizmente, Hervé Poulain não conseguiu terminar a prova, mas a ideia de transformar carros em verdadeiras obras de arte estava lançada. Nascia ali uma tradição tão antiga quanto o Hofmeister kink: os Art Cars da BMW.

Depois do BMW 3.0 CSL de Poulain, a própria BMW passou a convidar os artistas para pintar um de seus carros antes de colocá-los para correr (os carros, não os artistas, que fique claro). Logo no ano seguinte, 1976, a fabricante entregou outro 3.0 CSL ao pintor e escultor americano Frank Stella.

Desta vez, preparado de acordo com as regras do Grupo 5 da FIA, o 3.0 CSL tinha um seis-em-linha de três litros turbinado com nada menos que 750 cv, que o levava aos 341 km/h de velocidade máxima. Apesar do potencial técnico do carro, Stella criou um padrão de papel milimetrado com linhas tracejadas corte, que representavam sua vontade de remodelar o carro.

O 3.0 CSL foi pilotado nas 24 Horas de Le Mans de 1976 por Brian Redman e Peter Gregg, com Hervé Poulain como piloto reserva. Depois de estourar o motor nos treinos de classificação Redman voltou a ter problemas de lubrificação durante a corrida — o carro chegou a ficar em terceiro, mas teve que entrar nos boxes para consertar o vazamento. Ele ainda voltou, mas depois de apenas 23 voltas em pouco mais de duas horas, o Art Car abandonou a prova, incapaz de manter a lubrificação adequada de seu seis-em-linha turbo.

Em 1977 o 3.0 CSL foi substituído pelo Série 3 E21, também preparado de acordo com o regulamento do Grupo 5, porém com uma receita bem menos radical. O motor de 2 litros e 16 válvulas recebeu um turbo para chegar aos 300 cv e depois foi para as mãos do artista Roy Lichtenstein, que pintou linhas coloridas longitudinais representando a estrada e a paisagem, segundo suas palavras.

O design foi fortemente influenciado pelo seu estilo de histórias em quadrinhos, o que pode ser notado pelos pontos “Benday” que simulavam a impressão em papel.

“Quis usar as linhas pintadas como a estrada, apontando o caminho para o carro. O design também mostra a paisagem por onde ele passa. Até mesmo o sol e o céu podem ser vistos… dá pra listar tudo o que se passa com o carro — a única diferença é que ele mostra isso antes de chegar à estrada”, explicou o artista na época.

A receita do E21 também se mostrou mais confiável que a do 3.0 CSL. O carro disputou novamente as 24 Horas de Le Mans, agora de novo com Hervé Poulain dividindo a direção com Marcel Mignot, e foi o primeiro Art Car a terminar a prova, conquistando um nono lugar geral e a vitória em sua classe.

O ano seguinte, 1978, não viu um Art Car, mas a BMW reservou algo especial para 1979: um dos 453 BMW M1 foi entregue ao ícone da pop art Andy Warhol para ser usado como tela.

O americano fez a pintura que talvez seja mais fácil de se compreender. Segundo ele, se um caro está se movendo realmente rápido, todas as linhas e cores são borradas. Por isso, ele pintou as cores sem limites, nem formas pré definidas, apenas trocava os pinceis e cores.

Depois de 23 minutos de trabalho, ele passou os dedos pela tinta ainda fresca para deixar seu toque pessoal. Warhol foi o primeiro artista a fazer a pintura diretamente no carro.

Todos os anteriores usaram modelos em escala 1:5 para desenvolver a arte, que foi posteriormente reproduzida por técnicos em pintura nos carros reais. Warhol insistiu para pintar diretamente no carro de verdade. Quando perguntado se ele estava satisfeito com a obra, ele respondeu: “Adorei o carro. Ele é melhor que a própria arte“.

O M1 Art Car correu apenas uma vez, nas 24 Horas de Le Mans de 1979 e foi dividido entre Manfred Winkelhock, Hervé Poulain e Marcel Mignot, que terminaram em sexto lugar geral e segundo na categoria.

 

Carros nascidos para o museu

Depois do M1 a BMW voltou a oferecer um de seus carros a um artista somente em 1982. Diferentemente dos anteriores, os carros os anos 1980 e do começo da década de 1990 não foram para as pistas antes de serem guardados para a posteridade. Eles se tornaram exclusivamente obras de arte para serem expostas em galerias e museus.

UnknownO primeiro deles foi o 635 CSi pintado pelo austríaco Ernst Fuchs. Segundo Fuchs, a pintura expressa várias experiências, medos, desejos e implorações, mas também a liberdade da criação artística.

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Ele batizou a pintura de “Firefox on Harehunt”, algo como “raposa vermelha na caça à lebre”, pois ela “representa uma lebre correndo por uma rodovia durante a noite e saltando sobre o carro em chamas – o medo primitivo e o sonho ousado de superar a dimensão na qual vivemos. As cores são o chamado da velocidade e posso ver a bela lebre saltando sobre as chamas, fugindo de seus medos”. Ok. Nós acreditamos, sr. Ernst.

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O 635 CSi foi o mesmo carro oferecido em 1986 a Robert Rauschenberg (acima), que usou novas técnicas de transferência de fotografias  para a carroceria, em vez de apenas pintar padrões abstratos. Em 1989, o artista australiano M.J. Nelson transformou um M3 E30 preto em uma bela amostra da arte aborígene da Papunya, um povoado nativo da Oceania.

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Da Austrália também veio o artista seguinte, que também deixou sua marca em um M3 E30 no mesmo ano de 1989. O australiano Ken Done buscou inspiração na vivacidade das aves típicas de seu país — animais que, sob seu ponto de vista representam os dois valores mais fortes da BMW: beleza e velocidade.

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O carro seguinte foi um 535i E34 pintado pelo japonês Matazo Kayama, que usou um aerógrafo para desenhar nuvens azuladas sobre a carroceria prateada do carro alemão e depois usou técnicas clássicas japonesas como o Kirigane (corte de metal) e Arare (impressão folhada) para completar a estampa.

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Ele cortou pequenas folhas de prata, ouro e alumínio e as imprimiu individualmente na carroceria. Até hoje é considerado o Art Car mais elegante de todos.

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Para o início da década de 1990, a BMW continuou convidando artistas para pintar carros, transformando-os efetivamente em telas sobre rodas. O primeiro carro, logo em 1990, foi um Série 7 E32 — mais precisamente um 730i, dotado de um seis-em-linha de três litros e 188 cv.

O artista das Ilhas Canárias Cesar Manrique foi o criador da pintura com cores vibrantes e pinceladas largas e livres. Seu objetivo era “combinar as noções de velocidade e aerodinâmica com o conceito da estética” — provavelmente referindo-se ao visual da geração E32 do Série 7: elegante, porém capaz de sugerir velocidade.

No ano seguinte a BMW deu à pintora sul-africana Esther Mahlangu. Ela mesclou a arte tradicional de seu país às formas alemãs de um BMW Série 5 E34.

“Minha arte evoluiu da tradição tribal de decorarmos nossas casas”, ela conta. Mahlangu tornou-se a primeira mulher a figurar na lista de convidados para criar Art Cars, e o 525i decorado com padrões africanos e cores vivas — até mesmo nas rodas — foi o primeiro feito por um artista do continente africano.

Alguns artistas, contudo, preferiam uma abordagem menos abstrata e humana e produziam algo de conceito mais próximo da máquina que lhe servia de tela.

BMW Z1 e 850CSi

O BMW Z1 é um raro e inovador roadster que, embora dividisse a plataforma com o Série 3 E30, tinha o design muito mais futurista (e as famosas portas que deslizavam para dentro das soleiras). Ainda em 1991, o Z1 foi o carro dado ao alemão A.R. Penck.

Para ele, O Z1 por si só já era uma obra de arte, pois refletia “a criatividade e a fantasia de um engenheiro” e eram uma representação perfeita do termo “Art Car” em todos os sentidos.

Ele decidiu, então trabalhar com o contraste e sobrepor o design altamente técnico do Z1 com hieróglifos primitivos, quase rupestres — mas que, ao mesmo tempo, eram uma escrita codificada desenvolvida pelo próprio pintor.

Por outro lado, quatro anos depois, o artista britânico David Hockney viu-se diante de um BMW 850CSi — o grand tourer com motor V12 lançado em 1989 (depois ele recebeu um motor V8) que trazia algumas inovações técnicas impressionantes para a época — e decidiu-se por pintar o lado de fora do carro como se fosse o interior, ou ao menos o que ele entendia como o interior do carro.

Formas aparentemente abstratas revelam uma maneira totalmente diferente de enxergar os componentes mecânicos e estruturais de um carro e até mesmo seus ocupantes.

 

A arte de volta às pistas

Voltando alguns anos no tempo, vemos um sinal de que a BMW podeira voltar a colocar seus Art Cars para competir. Foi em 1992, quando o artista italiano Sandro Chia decorou um protótipo do BMW Série 3 com motor de quatro cilindros, 2,5 litros e 370 cv. Chia, que grafitava carros nas ruas quando era adolescente, retratou na pintura colorida os rostos “das pessoas que olham os carros”.

“O automóvel é um objeto desejado na sociedade. Todos os olhos estão sobre ele. As pessoas olham os carros de pert0. Este carro reflete o olhar delas”. Profundo. Mas tudo fica mais veloz, barulhento e direto quatro anos depois, em 1999.

O Art Car foi nada menos do que um dos três V12 LMR que correram em Le Mans naquele ano — um dos três que apareceram nos primeiros treinos de classificação. A decoração ficou a cargo da artista conceitual americana Jenny Holzer, que estampou frases de impacto como “Proteja-me do que eu quero” (Protect me from what I want) e “Você é tão complexo que não reage ao perigo” (You are so complex you don’t respond to danger).

artcars (20)O Art Car não participou da corrida — apenas dos treinos de classificação — mas os outros dois sim. Um deles abandonou a prova nas horas finais, mas o outro venceu — e ficou na frente de Toyota (uma das favoritas com o GT-One), Audi, Nissan e Mercedes-Benz (que nem terminou a corrida com seus CLR).

O carro seguinte demorou para aparecer — só em 2007. E ele também foi usado para correr, mas de uma forma um tanto diferente: o objetivo da BMW com o conceito H2R era conquistar recordes de velocidade para carros com motor a hidrogênio.

Para isso, ele tinha um V12 de seis litros baseado no motor a gasolina do sedã 760i que, com comando duplo VANOS nos cabeçotes, produzia 290 cv. Era o suficiente para garantir a velocidade máxima de 301,95 km/h.

Depois que o carro cumpriu seu papel, o artista dinamarquês Olafur Eliasson e sua equipe removeram a carroceria de compósito do carro e colocaram em seu lugar uma intrincada estrutura feita de barras de metal brilhantes. Depois, tudo foi coberto com camadas de gelo, criadas com água pulverizada ao longo de dias. O Art Car ficou exposto em uma sala com temperatura controlada entre 2007 e 2008.

Em 2010 veio mais um carro de corridas: o BMW M3 E92 GT2 — bólido de competição que correu em várias provas de longa duração em 2010, incluindo as 24 Horas de Le Mans em 2010.

Na corrida daquele ano, um dos carros foi o escolhido para ser o Art Car de nº 17. A arte ficou a cargo do artista americano Jeff Koons, que se inspirou na velocidade, nas cores e nas explosões do automobilismo para criar uma arte gráfica de linhas retas coloridas sobre um fundo preto — como os rastros de luz em uma corrida noturna. Faz sentido, porque o maior espetáculo de uma corrida de longa duração como Le Mans acontece à noite.

Koons trabalhou intensivamente em conjunto com a equipe de aerodinâmica da BMW Motorsport a fim de garantir que o carro estivesse pronto a tempo para a corrida, utilizando-se dos recursos da equipe para implementar sua arte em perfeita harmonia com os elementos funcionais do carro. A apresentação do carro finalizado aconteceu durante um evento fechado, com 300 convidados.

O carro, de nº 79 participou da edição de 2010 da corrida em La Sarthe ao lado de outro M3 GT2 — o de nº 78. Enquanto este chegou ao fim da corrida na 19ª posição depois de 320 voltas, o Art Car não terminou a corrida, sucumbindo a uma falha no sistema de alimentação. Como obra de arte, porém, ele é sem dúvida um dos Art Cars mais bonitos em quatro décadas de história.

Os mais recentes art cars foram criados em 2016 e 2017, ambos baseados no BMW M6 — o primeiro no M6 GTLM, e o segundo no BMW M6 GT3.

O primeiro, o M6 GTLM, foi pintado pelo americano John Baldessari, um artista conceitual e pintor que, desde os anos 1960, combina fotografias, pintura e textos. O M6 GTLM recebeu o mesmo tratamento, com elementos característicos do trabalho de Baldessari, como os pontos e formas abstratas coloridas, pela carroceria, combinando com a tipografia “FAST” em uma das laterais e com a foto do próprio carro na outra lateral.

A pintura, como no M1 feito por Andy Warhol, foi aplicada diretamente ao próprio carro. Baldessari conta que “a ideia veio de uma só vez: o ponto vermelho no teto para ser visto de cima, a palavra FAST em um lado e a foto do carro no outro”.

Diferentemente dos seus antecessores de pista, o M6 GTLM não correu em Le Mans, mas nas 24 Horas de Daytona. E ele também foi o primeiro pilotado por um brasileiro, pois o quarteto de pilotos na edição de 2017 da corrida foi formado por Augusto Farfus, Bruno Spengler, Alexander Sims e Bill Auberlen. O carro terminou em oitavo na classe e em 12º na classificação geral.

Naquele mesmo 2017 veio o 19º Art Car da BMW, o M6 GT3 idealizado pela artista chinesa Cao Fei. Ela foi a primeira chinesa e a artista mais jovem a fazer um Art Car. Ela também foi a primeira a não “pintar” o carro como vinha sendo feito até então.

O conceito idealizado por Fei usa o carro pintado de preto como um componente de uma obra de realidade aumentada e virtual, com luzes dinâmicas projetadas sobre o carro exposto e compondo a estética fotográfica da, digamos, instalação artística.

A instalação usa três elementos: imagens de realidade aumentada representando partículas coloridas e controladas por um aplicativo, e um vídeo projetado sobre o terceiro elemento, o próprio M6 GT3 sem pintura alguma, apenas com sua carroceria de fibra de carbono preta, com acabamento fosco. Segundo a artista, “as luzes representam os pensamentos e, como a velocidade dos pensamentos não pode ser mensurada, o carro questiona a existência de limites da mente humana”.

O carro foi pilotado novamente por Augusto Farfus, agora sem dividir a direção pois ele correu na FIA GT Cup em Macau, na China. Farfus ficou em segundo na corrida de classificação e terminou em quarto na prova principal. O carro, contudo, correu com a carroceria preta, sem nenhum elemento artístico idealizado por Cao Fei.

Agora, neste ano, a BMW volta a Le Mans e aproveitou a ocasião para transformar seu competidor no 20º Art Car, que foi idealizado pela artista etíope-americana Julie Mehretu. A pintura é uma adaptação de uma tela batizada “Everywhen” (algo como “Semprequando”), que está exposta em Veneza/Itália. O design foi criado a partir da edição digital de fotos e sobreposição dos elementos visuais usados na pintura original, e aplicado sobre a carenagem do carro.