A Austrália é um país curiosíssimo: uma ilha de proporções continentais que é quase toda tomada por um deserto; onde se fala um inglês que mistura a requinte do sotaque britânico com a fala enrolada dos hillbillies dos EUA; e cuja fauna é praticamente toda composta por animais perigosos prontos para te matar, como cobras, escorpiões, aranhas gigantes e cangurus.
Como se não bastasse, a Austrália também parece um universo paralelo quando o assunto são os carros. Um excelente exemplo disto é a trajetória da Ford e da General Motors por lá, que operavam separadamente do restante do mundo, com modelos específicos para o público australiano e uma queda bem acentuada por motores V8 potentes e barulhentos.
Na verdade, até o ressurgimento dos muscle cars tradicionais, como o Mustang e o Camaro, o melhor lugar para encontrar muscle cars era justamente a Austrália, onde versões nervosas do Ford Falcon e do Holden Commodore reinavam supremas. E ainda nem mencionamos as Utes, picapes feitas com base em sedãs grandes que são a “cara” da cultura automotiva australiana.
Mas há um carro na história da indústria automotiva da Austrália que não tem a mesma projeção mundial que os muscle cars endêmicos daquele país: o Bolwell Nagari – uma espécie de “Puma australiano”. Olhando para ele fica claro o porquê desta associação.
Além do visual, o Bolwell Nagari também lembra o Puma por outras razões. Ele também foi feito sobre a mecânica de um modelo já existente, com carroceria de fibra de vidro inspirada nos esportivos europeus, e ele também se tornou o “fora-de-série” mais famoso de sua terra natal.
Contudo, diferentemente do Puma, que foi criado por personagens já envolvidos com a indústria automotiva, o Bolwell Nagari foi criado puramente por diversão, mas acabou se tornando um sucesso não-planejado.
A história da Bolwell começa com dois irmãos, Campbell e Graeme Bolwell, da cidade de Seaford, no sul da Austrália. Eles entraram no mundo da graxa muito cedo: com 15 anos de idade, Campbell comprou uma sucata de Ford 1937. Um dia, ele e seu irmão mataram aula para fazer um test drive no carro – que funcionava bem, mas estava praticamente precisando de uma carroceria nova.
Em vez de procurar peças autênticas para reconstruir o Ford, os irmãos Bolwell decidiram construir painéis novos, moldados em fibra de vidro – cuja moldagem eles aprenderam de forma autodidata.
É bem provável que aquele primeiro carro sequer exista hoje em dia, mas foi ele que plantou a semente da Bolwell. Com o tempo, os dois foram perfeiçoando-se cada vez mais na arte de modelar carrocerias de fibra de vidro. Um segundo carro veio pouco depois, na virada dos anos 60.
Eis outro paralelo com o Puma: o carro dos Bolwell foi feito usando os componentes mecânicos disponíveis – no caso, vindo de um roadster da britânica MG. Era comum que esportivos britânicos fossem importados para a Austrália naquela época por conta do volante à direita (mesma razão pela qual muitos carros japoneses também são ofertados por lá). A mecânica do MG também foi aproveitada, com motor quatro-cilindros, câmbio manual e tração traseira, e o resultado foi um carro consideravelmente mais ágil que o arcaico Ford 1937 – que ainda usava um grande e pesado V8 flathead.
Percebendo que havia potencial na brincadeira, os Bolwell decidiram transformá-la em um negócio. Mais precisamente em 1962, quando foi fundada a Bolwell Car Company e o primeiro kit car comercial dos irmãos foi lançado.
O chamado Bolwell Mk4 era construído sobre uma estrutura tubular do tipo spaceframe com uma carroceria de fibra de vidro cuja inspiração na Ferrari 250 GTO e nos modelos da Lotus, como o o Elan, era visível. Havia três opções diferentes de motores –dois de quatro cilindros, da Ford e da Peugeot, e um seis-cilindros de origem Austin, vindo do Reino Unido. A suspensão usava braços triangulares assimétricos, molas helicoidais e amortecedores telescópicos na dianteira, e um confiável eixo rígido com feixes de molas semi-elípticas na traseira.
Entre 1962 e 1964, foram fabricados 200 exemplares do Bolwell Mk4, que foi sucedido pelo Mk V – uma evolução mais estética do que técnica, exceto pela adoção de um motor Holden de seis cilindros em linha como principal opção. Foram feitos 75 carros entre 1964 e 1966.
O Bolwell SR6, de 1968, era um roadster com motor central-traseiro criado depois que os irmãos Bolwell foram passar uma temporada na Inglaterra – mais precisamente em Hethel, para visitar a sede da Lotus e aprender novas técnicas de construção e engenharia. Campbell e Graeme construíram uma estrutura totalmente nova, com suspensão por braços triangulares sobrepostos semelhante à que era usada nos monopostos da Brabham. O câmbio era um transeixo da Hewland, e o motor era um Holden de seis cilindros em linha com 3,1 litros de deslocamento e mais de 200 cv – um belo número para um carro de 580 kg.
Paralelamente ao desenvolvimento do SR6, os irmãos resolveram refinar ainda mais o projeto de seus carros de rua. O Bolwell MkVII nasceu já em 1967, com um padrão de construção mais elevado e motores mais potentes – incluindo uma versão mais amansada daquele que viria a ser usado no SR6.
Foi com o Bolwell MkVII que a companhia estabeleceu sua reputação como uma das mais respeitadas fornecedoras de kit cars da Austrália. A esta altura Bolwell eram elogiados pelo acabamento impecável da fibra de vidro e por seu desempenho – e pelo menos 600 unidades foram vendidas, fossem kits ou carros prontos.
Mesmo com o sucesso, porém, Campbell e Graeme queriam mais – eles queriam transformar o Bolwell em um carro capaz de enfrentar de igual para igual os esportivos do ocidente, como o Shelby Cobra. E foi aí que, novamente, a visita à Lotus foi bem aproveitada.
O Bolwell MkVIII também ficou conhecido como Bolwell Nagari – palavra do antigo idioma aborígene que quer dizer “fluido” em português. Era uma referência ao desenho da carroceria, que ainda lembrava os modelos anteriores, porém tinha uma dianteira mais longa e formas mais retilíneas, refletindo a chegada iminente dos anos 70.
Por baixo da casca, porém, havia um chassi totalmente novo, do tipo espinha dorsal – influência direta da Lotus. Eles apostavam no baixo peso e na alta rigidez à torção conferidas pelo arranjo, que também custava menos. Seus pontos negativos, conforme explicado neste post, eram a falta de proteção contra impactos laterais, e também a dificuldade de acesso a certos componentes do carro, o que exigia a desmontagem parcial da carroceria para alguns serviços de manutenção.
Com o Nagari, a Bolwell também empregou, pela primeira vez, um motor de oito cilindros – o V8 302 usado pelo Ford Falcon GT, de 4,9 litros, com 223 cv a 4.600 rpm e 41,4 kgfm de torque a 2.600. Acoplado a uma caixa manual de quatro marchas, o V8 (que usava o Ford Cleveland como base) era capaz de levar o Nagari de zero a 100 km/h em 7,1 segundos, com velocidade máxima de 210 km/h.
A suspensão dianteira seguia o arranjo de braços sobrepostos das gerações anteriores, mas a suspensão traseira adotou um arranjo com barras de torção – e o resultado foi um comportamento dinâmico mais refinado, porém ainda violento por conta do baixo peso (914 kg) e do entre-eixos curto, de apenas 2,28 metros.
Não se sabe ao certo quantos exemplares do Bolwell Nagari foram feitos entre 1969 e 1974, mas acredita-se que tenham sido cerca de 130.
Boa parte destes carros ainda sobrevive, mas depois de 1974 a companhia se viu forçada a fechar as portas pela queda na demanda – a crise dos combustíveis, afinal, não fez vítimas apenas nos EUA, mas em todo o planeta.
Foi apenas em 2009, exatos 40 anos depois da concepção do Bolwell Nagari original, que a companhia foi trazida de volta à vida. Mas, diferentemente do que costuma ocorrer nestes casos, o revival foi encabeçado pelo próprio Campbell Bolwell, que convocou o irmão e outros membros envolvidos no projeto para o Nagari renascido.
O Bolwell Nagari 300 era um cupê pequeno com apenas 4.100 mm de comprimento e 1.830 mm de largura, de motor central-traseiro, com construção monocoque de fibra de carbono – novamente, inspirado pelos Lotus. O motor era um V6 de 3,5 litros emprestado do Toyota Camry, com 300 cv e 36,1 kgfm de torque.
O carro tinha visual inusitado, para dizer o mínimo. A dianteira lembrava os carros italianos dos anos 2000, enquanto o longo teto do tipo fastback levava a uma traseira com lanternas de Integra Type R. As colunas traseiras eram extremamente largas, deixando uma enorme área “vazia” no perfil do carro, o que não contribuía muito para a harmonia da silhueta.
Por outro lado, o Bolwell Nagari 300 pesava 990 kg e tinha suspensão independente nas quatro rodas por braços triangulares sobrepostos. Sua dinâmica não era muito diferente do que se veria em um Lotus Elise de 300 cv, por exemplo. O problema é que o Nagari 300 custava muito caro – o equivalente a R$ 580.000 em valores corrigidos, ou pouco menos que o valor de um Porsche 911 Carrera S por aquelas bandas. Por isso, mal se soube dele na época do lançamento.
Apesar disto, a Bolwell prometeu que, em 2019, apresentará o sucessor do Nagari 300, que está quase pronto. Seu nome será Bolwell Nagari 500, e ele terá um V8 Chevrolet LS3 de 6,2 litros e pelo menos 500 cv, de acordo com o que o próprio Campbell Bolwell falou à imprensa australiana em abril deste ano.