o chevrolet corvair nao salvou o mundo nao venceu le mans nao transformou a marca que o criou nao foi cultuado por geraçoes de gearheads mas de todos os carros produzidos pela maior fabricante americana no seculo xx foi o que mais incomodou mais apanhou e mais fez barulho ele tambem foi o chevrolet mais estranho de todos começando pelo motor traseiro — um boxer de seis cilindros refrigerado a ar tinha suspensao independente nas quatro rodas e absolutamente nada do que fazia um chevrolet ser um chevrolet ele nasceu quando a gm percebeu que precisava de um modelo compacto para enfrentar o fusca ela podia simplesmente ter encolhido um impala e enfiado um seis em linha sob o capo mas nao ela resolveu criar um carro que parecia europeu — e que no fim das contas foi crucificado por isso o ano era 1956 e a general motors vivia seu auge seus carros eram tao grandes e pesados quanto eram potentes e reluzentes eram a materializaçao do sonho americano da epoca — um drive in com hamburgueres rock n roll milk shakes e grupos de adolescentes encostados em seus carros o impala ainda nao tinha virado sinonimo de carro grande mas ja apontava para o que o mercado queria status sobre rodas o problema era que nem todo mundo queria isso ou melhor — começava a haver um publico que queria o contrario a europa estava reconstruida e exportando ideias o fusca tinha invadido os eua sorrateiramente conquistando jovens familias pequenas e gente que nao se deixava seduzir por rabos de peixe ele era pequeno economico simpatico e — apesar de todos os seus defeitos — era barato e confiavel pior estava virando moda e as importaçoes cresciam ano a ano a gm entendeu o recado e percebeu que precisava de um compacto mas em vez de seguir a receita dos concorrentes internos como a propria ford faria com o falcon decidiu jogar no campo do inimigo motor traseiro suspensao independente carroceria monobloco refrigeraçao a ar o arquiteto dessa transgressao era ed cole um engenheiro de visao incomum nomeado chefe de engenharia da divisao chevrolet em 1952 cole rapidamente ascendeu a posiçao de gerente geral em 1956 tornando se vice presidente da gm seu curriculo ja era impressionante alem de supervisionar avanços tecnicos em toda a linha chevrolet cole havia sido um dos pais do small block v8 uma das arquiteturas de motor mais influentes do seculo xx mas seu olhar estava voltado para outra fronteira o renascimento dos carros compactos nos estados unidos — e uma nova proposta de mobilidade sendo um entusiasta cole decidiu ousar fez um motor flat six de aluminio com comando no bloco a suspensao dianteira era mcpherson com barra estabilizadora e a traseira usava eixos oscilantes independentes nao havia tunel central pois o carro usava um transeixo traseiro formando um conjunto compacto e leve com o motor a carroceria era fluida limpa com influencia evidente dos pininfarina dos anos 1950 nenhum chevrolet se parecia com ele o nome era uma fusao de corvette com bel air o publico talvez nem percebesse mas a intençao era clara o corvair precisava parecer familiar mesmo sendo o carro mais estranho que a chevrolet ja fizera ele seria vendido como compacto acessivel mas tambem como seda familiar cupe esportivo e ate utilitario uma plataforma varias caras — de seda quatro portas a picape — sempre com um motor horizontal pendurado na traseira quando foi lançado em outubro de 1959 como linha 1960 o corvair causou um pequeno terremoto em detroit nao que ele tenha sido um sucesso estrondoso imediato mas porque desafiava abertamente a cartilha da fabricante pela primeira vez um carro americano — vindo da mais conservadora das fabricantes americanas — dizia que havia outra forma de se fazer carros nos eua ele mostrava que o carro americano podia ser racional moderno e minimalista na pratica era um pouco mais complicado o corvair era leve mas barulhento era agil mas traiçoeiro no limite era inovador mas incompreendido e ainda assim vendeu bem mais de 250 000 unidades so no primeiro ano o suficiente para fazer a ford acelerar o desenvolvimento do falcon e mais tarde do mustang na teoria o corvair era um prodigio tecnico um chevrolet com suspensao independente nas quatro rodas monobloco sem carda sem radiador sem tudo aquilo que fazia um carro americano parecer… americano o motor traseiro era uma raridade fora da europa — e uma aberraçao absoluta sob o capo de um carro da general motors o flat six tinha 2 3 litros bloco e cabeçotes de aluminio e girava mais solto do que qualquer motor seis em linha da marca tinha versoes com um ou dois carburadores e uma arquitetura que exigia atençao redobrada controle de temperatura lubrificaçao por carter seco nos modelos mais sofisticados e um sistema de correias que de vez em quando te lembrava que a simplicidade alema nem sempre era simples de manter mas o problema nao era o motor o que logo começou a incomodar — e depois a assustar — era a forma como o carro se comportava nas curvas a suspensao traseira de eixo oscilante era uma soluçao comum em carros de motor traseiro usada ate pelo porsche 356 o principio era simples cada roda traseira era presa por um semi eixo rigido articulado no diferencial em teoria isso permitia alguma independencia no movimento das rodas na pratica causava um efeito indesejavel — o chamado jacking imagine uma curva rapida um comando de direçao brusco o peso concentrado na traseira e um motorista comum acostumado com um impala que sai de frente e reclama devagar o que acontecia era uma reaçao violenta a roda interna traseira podia levantar a cambagem se inverter e o carro sair de traseira sem aviso com pneus estreitos centro de gravidade alto e pouca experiencia de conduçao o corvair podia virar um desastre ambulante a engenharia da gm sabia disso por isso o manual do corvair recomendava calibragem de pneus com 15 psi na frente e 26 psi atras — uma diferença enorme necessaria para compensar o peso e o comportamento da suspensao so que ninguem lia o manual e os frentistas nos postos — ou mesmo os mecanicos de bairro — calibravam os pneus com a mesma pressao nas quatro rodas era um convite para o desastre para piorar o carro era vendido como um modelo seguro suave e facil de dirigir — sem instruçoes claras ou alertas especificos o corvair era como uma gema bruta tinha tudo para brilhar — mas exigia um lapidador experiente que tivesse cuidado tato e conhecimento sem isso virava uma pedra comum e o publico americano moldado por decadas de carros previsiveis nao estava pronto para um carro que punia erros como um porsche de entrada era apenas uma questao de tempo para que essa instabilidade — comercial e dinamica — se tornasse um problema e ele viria na pasta de um jovem advogado de oculos grossos e um paleto de professor disposto a desafiar a maior empresa do pais com uma maquina de escrever e um argumento moralista a chevrolet so entendeu de fato o que fazer com o corvair em 1961 quando lançou o corvair monza era um carro com uma pegada esportiva traços europeus e um certo charme maldoso que o resto da linha chevrolet nao tinha o nome monza — importado diretamente do autodromo italiano — era um aceno claro ao publico que queria diversao ao volante o monza era mais bonito mais equipado mais insinuante oferecia cambio manual de quatro marchas acabamento mais refinado e aos poucos passou a receber versoes mais potentes do flat six traseiro os jovens adoraram os publicitarios tambem o carro virou simbolo de uma juventude que nao queria um fusca lento nem um falcon de vovo pela primeira vez o corvair parecia ter encontrado sua voz a resposta da gm foi dobrar a aposta em 1962 veio o monza spyder o primeiro carro americano com turbo de fabrica a gm havia brincado com turbos em projetos secretos com motores v8 mas decidiu estrear a tecnologia justamente no corvair com o turbo soprando 10 psi por um carburador de corpo unico ele produzia 150 cv — 50% a mais que o motor original nao era um muscle car mas tambem nao era um seda sem graça ele acelerava de zero a 100 km/h em menos de 10 segundos cuspia fumaça e parecia um porsche barato feito em detroit e de certo modo era o corvair começou a atrair uma base de fas leal — pequena mas ruidosa — que via nele uma especie de resposta americana aos compactos europeus o design foi evoluindo as versoes se multiplicaram e ate os utilitarios da linha ganharam traços modernos e funcionais as vendas batiam 300 000 unidades por ano a ford observava e tramava ford falcon comparado ao corvair em 1960 isso porque seu falcon lançado pouco antes do corvair no final de 1959 era um compacto convencional com motor dianteiro traçao traseira e projeto conservador ele era exatamente o que o publico medio queria previsivel facil de dirigir simples de manter nao assustava ninguem e vendeu muito com o sucesso a ford tambem dobrou a aposta e decidiu fazer um esportivo para encarar o corvair monza baseado no falcon este esportivo chegou na metade de 1964 ja como modelo 1965 era nada menos que o ford mustang o mustang foi um golpe severo no corvair que nunca superou o falcon era canibalizado pelo chevy ii e agora ganhava um rival esportivo com mais apelo popular na forma do mustang o resumo da historia e que ele nao era tao pratico quanto o falcon nem tao esportivo quanto o mustang e para quem queria um chevrolet o chevy ii tambem era mais pratico era um peixe fora d’agua nadando contra a corrente mas o golpe final nao viria de um automovel viria de um livro enquanto a linha corvair passava por sua maior reformulaçao — ganhando carroceria redesenhada suspensao traseira independente por braços semi arrastados estrutura mais solida e comportamento dinamico muito melhor — alguem começava a remexer no passado esse alguem era o advogado ralph nader o escandalo que mudou tudo ralph nader era um advogado recem formado com aparencia de seminarista e vocabulario de procurador federal o que ele tinha alem de coragem era obsessao e um alvo a industria automobilistica americana para ele a industria da epoca negligenciava a segurança e fazia vista grossa aos riscos inerentes aos projetos visando apenas fazer carros cada vez mais potentes luxuosos e lucrativos sua tese resultou no livro unsafe at any speed inseguro a qualquer velocidade em traduçao literal que tinha seu capitulo de abertura dedicado a um carro especifico que segundo nader representava o apice da irresponsabilidade corporativa disfarçada de inovaçao o chevrolet corvair para nader os eixos oscilantes da suspensao traseira da primeira geraçao do corvair 1960 1963 eram uma armadilha ambulante ele alegava que a gm sabia dos riscos sabia que a suspensao podia causar perda de controle e capotamentos — e mesmo assim colocou o carro a venda sem barra estabilizadora e sem advertencias claras aos consumidores o argumento era simples e implacavel a gm escolheu economizar alguns dolares por unidade e no processo expos milhares de vidas a risco desnecessario o livro caiu como uma bomba em detroit a midia mordeu a opiniao publica reagiu e o congresso americano — ja em clima de desconfiança com os baroes corporativos — viu ali uma chance de atacar um simbolo maior a general motors pior a propria gm em vez de responder com fatos decidiu perseguir nader investigadores particulares contratados pela empresa começaram a vasculhar a vida pessoal do autor tentaram flagra lo com prostitutas em bares em situaçoes constrangedoras mas nader nao bebia nao saia nao tinha esqueletos no armario quando a trama veio a tona em uma audiencia no senado em 1966 a gm nao apenas teve que se retratar publicamente como ainda transformou ralph nader em heroi nacional enquanto isso o corvair ja havia sido renovado a segunda geraçao lançada em 1965 acima era um carro muito mais competente com suspensao traseira redesenhada no padrao europeu carroceria mais solida e comportamento previsivel finalmente era o carro que o ele prometera ser mas era tarde demais as vendas despencaram a imagem estava arruinada ninguem queria ser visto comprando o carro que virou sinonimo de perigo — mesmo que a versao vendida naquela loja fosse segura refinada e digna de nota a verdade era irrelevante o veredito ja estava selado o corvair era o vilao da vez em 1972 um estudo do governo concluiu que quando usado conforme o manual o corvair nao era mais instavel do que outros carros compactos da epoca mas esse parecer chegou tres anos depois do fim da produçao era como inocentar um homem depois da execuçao o caso corvair teve consequencias profundas em 1966 o congresso americano aprovou a criaçao da national highway traffic safety administration nhtsa a agencia federal encarregada de estabelecer padroes minimos de segurança investigar falhas e forçar recalls pela primeira vez a industria automobilistica americana estava sob vigilancia nao era mais o consumidor que se adaptava ao carro era o carro que precisava se adaptar ao consumidor fim de linha começo de uma era o corvair saiu de cena em 1969 sem festa sem sucessor sem editorial de despedida apenas um comunicado frio da gm e uma linha de montagem encerrada em willow run — a mesma fabrica construida para produzir bombardeiros b 24 durante a segunda guerra o ultimo corvair era um cupe monza branco com transmissao manual e interior azul foi mantido por um tempo nos arquivos da chevrolet como lembrança de um experimento ousado que terminou constrangido na pratica o carro ja havia sido condenado anos antes o escandalo com ralph nader a concorrencia interna com o chevy ii e o camaro que fora lançado em 1967 como resposta ao mustang e a preferencia do publico por carros mais convencionais fizeram com que o corvair perdesse o pouco espaço que ainda ocupava nem mesmo a versao renovada tecnicamente superior conseguiu apagar a reputaçao construida pela primeira geraçao o nome virou sinonimo de perigo e reputaçoes como bem sabem os politicos e os fabricantes de carros sao muito mais faceis de arranhar do que de restaurar mas o fim do corvair nao foi o fim da sua historia no fim das contas o corvair deixou uma estrutura legal institucional e moral que mudou para sempre a forma como os carros sao desenvolvidos vendidos e fiscalizados antes do corvair segurança era um detalhe — algo implicito raramente discutido abertamente pelas fabricantes depois dele virou uma obrigaçao a nhtsa criada como resposta direta ao caso corvair passou a ditar as regras do jogo cintos de segurança se tornaram obrigatorios sistemas de freio passaram a ser testados e padronizados crash tests começaram a ser realizados em escala federal recall deixou de ser vergonha e passou a ser rotina o consumidor ganhou voz a industria foi obrigada a ouvi la e nao parou por ai nos anos seguintes o mesmo tipo de questionamento se estendeu ao consumo de combustivel as emissoes a durabilidade a sustentabilidade a ideia de que uma empresa pode ser responsabilizada por escolhas tecnicas — mesmo que estejam tecnicamente corretas — nasceu ali no momento em que a gm teve que explicar por que economizou uma barra estabilizadora num carro com eixo oscilante o corvair foi o primeiro carro americano a ser linchado publicamente mas tambem foi o primeiro a forçar uma conversa seria sobre a responsabilidade dos fabricantes diante da sociedade ele abriu caminho para o consumidor moderno clique para ver os capitulos anteriores
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