FlatOut!
Image default
Car Culture

Carros que mudaram o mundo #16: o Land Rover

O novo Defender é um carro estranho. Não no sentido literal — ele é bonito, bem-acabado, tecnicamente impressionante. Anda como um Range Rover, tem torque de V8 híbrido, monobloco de alumínio, suspensão independente e sistemas eletrônicos que literalmente pensam por você. E ainda assim, há algo nele que incomoda.

Talvez seja o fato de que ele tenta ser coisas demais: um SUV de luxo, um off-roader de verdade, um ícone urbano, uma vitrine tecnológica, um símbolo do passado glorioso e do futuro verde. Ele tenta ser o Defender. Mas quem conheceu o original sabe que isso é impossível.

Porque o verdadeiro Defender nunca foi um carro. Ele era uma ferramenta, uma máquina sem vaidade, criada para servir e resistir. Uma máquina que surgiu em um período difícil e sobreviveu por sete décadas praticamente sem mudar, ignorando modas e a ideia de conforto. Sua qualidade era sua função. Era um artefato de outro tempo — uma espécie de martelo mecânico com placas e rodas — e talvez por isso tenha se tornado um dos veículos mais idolatrados da história.

Hoje, o nome “Defender” ainda brilha em letras garrafais na traseira de um SUV que você pode configurar com bancos de couro Windsor e tela de 11,4 polegadas. Mas a pergunta continua no ar, incômoda e inevitável: um Defender pode existir sem a brutalidade?

Para respondê-la, é preciso voltar no tempo. Antes dos tempos de SUV, antes dos motores transversais e das baterias de íon-lítio. Antes mesmo do nome Defender existir.

 

O Rover da terra

Talvez você tenha reparado que todos os carros desta série tiveram a personalidade de um homem como força motriz do projeto — alguém que sonhou, planejou e executou cada um dos carros que mudaram o mundo. Com o Land Rover não foi diferente. O homem por trás dele era Maurice Cary Wilks engenheiro e fazendeiro nas horas vagas — e, ironicamente, um sujeito pragmático demais para planejar a criação de uma lenda.

Nascido em 1904, Maurice era o segundo dos três irmãos Wilks, uma família de engenheiros com sangue técnico e ambição industrial. Seu irmão mais velho, Spencer Wilks, era diretor administrativo da Rover Company desde os anos 1930. Maurice, por sua vez, subiu como engenheiro-chefe da marca, vindo da Hillman e da General Motors. Era um trabalhador metódico, discreto, sem vaidade — daqueles que preferem resolver o problema mecânico por conta própria fora do expediente a discuti-lo em reunião.

Spencer e Maurice Wilks, os irmãos que criaram o Land Rover

Em 1947, enquanto a Inglaterra ainda juntava os pedaços do pós-guerra, Maurice passava parte de seu tempo livre numa fazenda em Anglesey, no norte do País de Gales. Lá, usava um Jeep Willys MB excedente de guerra para tarefas agrícolas. E foi ali, literalmente no campo, que a ideia nasceu: o Jeep era bom, mas não tinha sido feito para durar fora do front.

As folgas apareciam nos pivôs, o eixo dianteiro era subdimensionado para cargas laterais, o curso de suspensão era curto demais para as trilhas acidentadas, e a embreagem, constantemente sobrecarregada, passava mais tempo sendo trocada do que tracionando. A manutenção era trabalhosa, e as peças de reposição eram impossíveis de se encontrar na zona rural galesa.

Para Maurice Wilks, aquilo era inaceitável. Se um veículo precisa viver no campo, carregar carga, subir ladeira de manhã e rebocar um rebanho à tarde, ele tem que ser mais confiável do que um jipe de guerra. O conceito era certo — tração nas quatro, eixos rígidos, leveza —, mas o Jeep era um veículo de guerra improvisado, feito para ser descartado, não herdado.

Carros que mudaram o mundo #13: o “Jeep” Willys MB

Maurice compartilhou a ideia com Spencer numa tarde de 1947. A proposta era simples: criar um veículo de trabalho com tração nas quatro rodas, capaz de rodar nos terrenos mais difíceis e resistente ao tempo, à sujeira e ao desleixo — algo entre um trator e um automóvel. Spencer, além de irmão, era também a autoridade final da Rover e enxergou naquilo não só uma boa ideia técnica, mas uma oportunidade real de sobrevivência comercial. O mercado interno britânico estava fraco. Mas havia agricultores em toda a Commonwealth precisando exatamente daquilo: um cavalo mecânico moderno e barato, fácil de exportar e fácil de consertar.

Com aval de Spencer, a equipe da Rover construiu em semanas o primeiro protótipo — o famoso “Center Steer”. Usando peças disponíveis da própria Rover e de fornecedores militares, ele tinha volante montado no centro do painel, para permitir adaptação fácil à exportação em países de mão inglesa ou francesa. A cabine era feita de perfis de alumínio rebitados.

O chassi, construído com longarinas de aço retangular e travessas simples, soldado em vez de parafusado. A carroceria era feita com painéis planos de Birmabright, uma liga de alumínio com magnésio usada na construção de aviões de guerra — leve, resistente à corrosão e disponível em estoque militar, enquanto o aço era racionado.

O motor era o 1.6 de válvulas laterais da Rover P3, com bloco e cabeçote de ferro fundido. Girava macio, mas era subdimensionado para tração integral e carga. Entregava 50 cv a 4.000 rpm e 11 kgfm a 2.000, com taxa de compressão de 6,8:1 — o bastante para rodar com gasolina de péssima qualidade, o que o tornava ideal para a África, o Oriente Médio e a América do Sul.

Acoplada a esse motor vinha uma caixa manual de quatro marchas (a quarta, direta, era a única sincronizada), ligada a uma caixa de transferência da Fairey, com reduzida e tração 4×4 selecionável manualmente — mas sem diferencial central. Em tração integral, o sistema só podia ser usado em pisos de baixa aderência, sob risco de travamento e quebra em piso seco.

Os irmãos Wilks com o center steer

A suspensão era arcaica, mas funcional: dois eixos rígidos com feixes de molas semi-elípticas longitudinais. Não havia articulação transversal nem independência de roda, mas havia curso, rigidez e reparabilidade. Os freios, mecânicos e a tambor nas quatro rodas, eram acionados por varão — um sistema antiquado mesmo para a época, mas confiável. A direção era por sem-fim e setor, pesada, lenta, mas praticamente inquebrável.

Curiosamente, seu nome veio de um outro modelo: um Rover 12 modificado que Spencer dirigia pela propriedade da família em Gales. Ao chegar na propriedade, o caseiro falou brincando que aquele era o “Rover da terra” (land Rover, em inglês). Spencer gostou do nome e apresentou a ideia ao conselho da Rover, que o aprovou imediatamente.

A Rover também foi rápida na aprovação do projeto — a possibilidade de fabricar em curto prazo um utilitário leve com tração nas quatro rodas, capaz de atravessar vales e terras lamacentas, usando menos aço e menos componentes complexos convenceu a fabricante. Em apenas algumas semanas, 25 unidades de testes foram construídas para testes reais de durabilidade e versatilidade.

O conselho aprovou a produção não só como um “plano B”, mas como estratégia de salvação — afinal, ninguém estava comprando os outros carros da marca. Ao menos não em um volume capaz de sustentar a fábrica.

 

O Land Rover chega às ruas – e segue em frente quando elas acabam

O Land Rover foi revelado ao público em abril de 1948, no Salão de Amsterdã — um evento discreto, mas que reunia importadores europeus famintos por soluções práticas num continente em reconstrução.

O lançamento do Land Rover

No primeiro dia, as encomendas superaram as expectativas mais otimistas. Em seis meses, a Rover vendeu mais Land Rovers do que todos os seus carros de passeio combinados no mesmo período. E não foi apenas na Inglaterra: o Land Rover logo encontrou demanda na Austrália, no Oriente Médio, na África do Sul, no Quênia, na Malásia, no Canadá, no Chile. O veículo era uma solução de transporte para onde o transporte não existia.

O governo britânico — ainda combalido financeiramente — também abraçou o projeto como instrumento de exportação. Em pleno racionamento do pós-guerra, a Rover teve prioridade no fornecimento de alumínio e aço, com a condição de exportar 80% da produção. Em troca, ganhava acesso a moeda forte e reduzia o impacto de tarifas de importação em seus mercados externos.

O desempenho do Land Rover nas mãos dos primeiros usuários consolidou o mito rapidamente. Agricultores o usavam como trator leve. Engenheiros civis o transformavam em plataforma de topografia. As forças armadas britânicas o adotaram como veículo de reconhecimento. A Cruz Vermelha o transformava em ambulância de campo. E havia ainda as missões religiosas, os caçadores de safári, os exploradores de petróleo, os biólogos, os contrabandistas e os militares de meia dúzia de países africanos recém-independentes.

Tudo isso acontecia sem a Rover sequer tentar “vender a imagem” do carro. Não havia campanhas emocionais nem slogans patrióticos. O Land Rover simplesmente resolvia problemas reais em lugares onde nenhum carro de passeio podia chegar — e com manutenção simples o bastante para ser feita por alguém com uma caixa de ferramentas básicas.

A Rover esperava vender 50.000 unidades ao longo de três anos. Em cinco anos, haviam sido fabricadas mais de 200.000. O que era para ser um “arranjo temporário” se tornou o produto que, em poucos anos, superou em vendas todos os outros modelos da marca.

Em 1953, o motor foi substituído por um novo quatro-cilindros de dois litros, agora com comando no cabeçote, que gerava 52 cv e melhorava a elasticidade. Naquele ano ele ganhou suas primeiras variações de entre-eixos: o chassi original com entre-eixos de 80 polegadas era substituído por um curto, de 86 polegadas e outro longo, de 107 polegadas. Em 1956, surgiram os primeiros Land Rover “Station Wagon” com teto rígido metálico e janelas traseiras laterais.

 

As evoluções

O Land Rover havia nascido como uma resposta desesperada da Rover no pós-guerra, mas foi sua evolução ao longo das décadas seguintes que o transformou num ícone. Em 1958, com mais de uma década (fora) de estrada , a Rover sabia que não bastava mais apenas oferecer um carro utilitário funcional. O Land Rover precisava se tornar um produto sólido, confiável e, sobretudo, reconhecível. Foi ali que começaram as mudanças que deram origem à Série II.

A mudança mais visível estava na carroceria. Ainda feita em alumínio Birmabright, mas agora com formas suavemente arredondadas, para-lamas mais amplos, cantos suavizados e uma frente com faróis integrados à grade — o visual que definiria o Land Rover pelos próximos 25 anos.

Era como se o carro tivesse sido traçado com régua e compasso por alguém que finalmente sabia que aquilo ali ia durar muito tempo — ele foi o primeiro Land Rover concebido com auxílio de um designer de produto, David Bache, que mais tarde daria forma também ao Range Rover. Ele não o tornou bonito, mas o tornou mais funcional, e criou a imagem que ficaria fixada no inconsciente coletivo.

Note como o Série II deu ao modelo SW suas formas definitivas, enquanto o SW da Série 1 parecia um carro remendado

Por baixo da carroceria, o chassi mantinha as duas distâncias entre-eixos, mas agora sutilmente alongadas: a curta passava de 86 para 88 polegadas, enquanto a longa, de 107 para 109. A arquitetura básica — eixo rígido, feixes de molas semi-elípticas e carroceria aparafusada ao chassi — era mantida sem alterações estruturais profundas, mas com ajustes nas bitolas e nos reforços, o que trazia mais estabilidade e aumentava a capacidade de carga útil, que já era impressionante.

A linha de motores também evoluiu. O velho quatro-cilindros a gasolina 1.6 deu lugar a um novo 2.25 com válvulas no cabeçote, comando lateral, carburador Zenith e torque generoso em baixa rotação — perfeito para o trabalho em fazendas, minas ou montanhas.

O motor era ruidoso, não gostava de giros altos, mas entregava força contínua e previsível. E, mais importante, era robusto. Surgiu também, mais adiante, uma versão seis-em-linha de 2.6 litros — menos comum, mas bastante apreciada por quem precisava de mais força e não se importava com o consumo.

Em 1962, o Land Rover ganhava finalmente um motor diesel — era basicamente uma versão diesel do quatro-cilindros de 2,25 litros, que gerava pouco mais de 60 cv— mas o fazia a menos de 3.000 rpm, algo que o tornava ainda mais competente fora da estrada.

Esse motor diesel se tornaria o coração do Land Rover fora da Europa Ocidental. Era ideal para países onde o combustível era sujo, a manutenção era escassa e os carros precisavam sobreviver mais do que andar rápido. Em muitos países da África e do Oriente Médio, o motor diesel era praticamente indestrutível.

Em 1971 foi lançado o Series III, com melhorias mais profundas do que a aparência sugeria. Por fora, o visual era quase o mesmo, mas o interior trazia painel metálico com instrumentos à frente do motorista — e não mais no centro do painel como nas versões anteriores —, novo sistema elétrico com fusíveis padronizados e interruptores mais modernos.

O câmbio ganhava sincronizadores em todas as marchas, facilitando a vida de quem não cresceu aprendendo a fazer dupla debreagem. Também vieram versões com direção assistida, embora rudimentar, e o sistema de freios passou a aceitar discos dianteiros nas versões mais caras e modernas, ainda que os tambores fossem norma.

O auge dessa fase viria em 1979, quando a British Leyland, já então dona da Rover, decidiu instalar o V8 de 3,5 litros com bloco em alumínio — aquele derivado do Buick americano e já usado pelo Range Rover — em algumas versões do Land Rover 109.

Era um motor leve, potente, com mais de 130 cv, e um ronco grave que parecia deslocado num carro tão espartano. Mas fazia sentido: o V8 o tornava mais veloz, dava maior capacidade de tração, especialmente com carga ou em regiões montanhosas. Era uma aberração mecânica que funcionava.

Foi também nesse período que o Land Rover começou a virar símbolo de aventura. Ele foi o carro oficial do Camel Trophy, das travessias pelo Saara, das explorações no Himalaia. Era o veículo que levava os documentaristas da BBC para filmar elefantes, o carro que acompanhava arqueólogos, missionários e geólogos. Ele deixou de ser só uma ferramenta para virar um companheiro — algo que você confiava tanto quanto nos mapas. Era desconfortável, barulhento, instável em curvas e difícil de estacionar. Mas era invencível.

E era essa invencibilidade que o tornava insubstituível. Seu sucesso não estava nas vendas em grandes centros urbanos, mas na presença em locais onde nenhum outro automóvel ousava existir. Ao final de sua produção, em 1985, mais de um milhão de unidades haviam sido produzidas. E quase todas ainda rodavam.

 

O nascimento do Defender

Quando o último Series III saiu da linha de produção em 1985, a Land Rover não estava apenas virando a página de uma geração. Estava tentando resolver um dilema que já se arrastava havia anos: como modernizar um veículo com tanta personalidade? Como manter a brutalidade funcional de um projeto da década de 1940 num mundo que, naquela altura, já conhecia o Audi Quattro, o Range Rover Vogue e o Mitsubishi Pajero?

A resposta viria sob a forma de dois números: 90 e 110. Esses nomes não tinham pretensão poética — eram a medida (aproximada) do entre-eixos em polegadas. Mas simbolizavam muito mais. Representavam o esforço da Land Rover em se atualizar sem trair os dogmas que haviam feito do carro um ícone.

A base ainda era o chassi com longarinas de aço soldadas e eixos rígidos. Mas agora o quadro estrutural recebia reforços localizados, tratamento anticorrosivo mais eficaz (ainda que longe do ideal), e uma suspensão totalmente renovada, trocando os feixes de molas semi-elípticas por molas helicoidais nas quatro rodas.

Era o tipo de mudança que, numa marca purista, beirava a heresia — mas a Land Rover sabia que precisava oferecer algo mais confortável e estável em velocidade, sobretudo nos mercados de exportação. A adoção das molas helicoidais, inspirada no Range Rover de 1970, melhorava não só a qualidade de rodagem, mas também a articulação dos eixos em situações off-road extremas. O carro ficava mais capaz na trilha e mais dócil no asfalto.

As carrocerias continuavam feitas em alumínio Birmabright, montadas sobre subestruturas de aço. O capô e os para-lamas ganhavam novos contornos, discretos, mas que deixavam claro: esse não era um Series IV. Era algo novo, com nova filosofia.

O interior, porém, mantinha a rusticidade. Bancos duros, isolamento acústico quase inexistente, alavancas que exigiam força de fazendeiro. Mas agora, pela primeira vez, era possível equipá-lo com direção hidráulica, ar-condicionado, vidros elétricos e bancos dianteiros decentes. Era um carro pronto para os anos 1990, mesmo que ainda parecesse um habitante de 1948.

No campo da motorização, os primeiros modelos utilizavam os motores herdados dos Series III — o 2.25 a gasolina e o 2.5 diesel aspirado. Mas logo veio o 2.5 turbodiesel 19J, com 85 cv e mais torque. Era uma tentativa de dar ao carro fôlego extra sem abrir mão da confiabilidade.

O problema é que esse motor, ainda baseado na arquitetura antiga, sofria com fissuras na cabeça dos pistões, desgaste prematuro das camisas e superaquecimento em uso severo. Foi apenas em 1989, com a chegada do motor 200Tdi, que o Land Rover entraria, enfim, na era do diesel moderno.

O 200Tdi era um quatro-cilindros com injeção direta, turbocompressor Garret e intercooler. Entregava 107 cv, torque abundante desde 1.800 rpm e consumo honesto. Mas o que o tornava especial era sua durabilidade: construído com bloco reforçado, virabrequim de ferro fundido nodular e comando por correia dentada, era capaz de rodar meio milhão de quilômetros sem abrir o motor — desde que não faltasse óleo e o diesel não fosse misturado com querosene. Com ele, o Land Rover era capaz de cruzar continentes, florestas, desertos ou guerras civis.

É nessa transição que entra o nome Defender. Em 1990, a Land Rover precisava diferenciar os modelos utilitários dos recém-lançados Discovery e Range Rover, que agora formavam uma família de SUV mais refinados. O 90 e o 110, então, passaram a se chamar Defender 90 e Defender 110 — nomes simples, quase militares, mas que soavam como título de honra. Defender é a palavra inglesa para “defensor”, aquele que protege, que resiste, que mantém.

O novo nome consolidava uma reputação que já existia no imaginário global. O Defender se tornava, oficialmente, o herdeiro direto dos Land Rover originais, mas agora com refinamento suficiente para circular na Europa e robustez de sobra para seguir sua missão histórica no Terceiro Mundo.

E não era apenas um carro de campo: era um carro de guerra, de exploração, de civilização. Era usado por forças armadas, ONGs, cientistas, caçadores e até por príncipes. Foi o veículo de confiança da Rainha Elizabeth II, do Exército britânico nas Malvinas, dos Médicos Sem Fronteiras em Ruanda e da turma do Camel Trophy que cruzava a Amazônia sem estradas.

Comprovando sua herança, o Defender não era um produto. Era um equipamento. A Land Rover havia conseguido o impossível: atualizar um clássico sem apagá-lo. Modernizar sem plastificar. Amadurecer sem domesticar. O Defender era tudo aquilo que o Land Rover original prometia — só que mais forte, mais rápido, mais confiável e, sim, ligeiramente mais confortável.

 

O tempo passou — e o Land Rover nem notou

A atualização ajudou a levar o Defender para as portas do século XXI, mas também fez dele um paradoxo sobre rodas. Era reverenciado por sua capacidade inigualável, mas estava ficando cada vez mais encurralado por padrões que não existiam quando ele foi concebido. Numa indústria que abraçava conforto, segurança e eletrônica embarcada, ele seguia firme como um sobrevivente mecânico. E essa fidelidade à origem o colocava tanto num pedestal quanto numa linha de tiro.

Logo após o renascimento com o nome Defender em 1990, a Land Rover passou a fazer parte do portfólio da British Aerospace, numa transação que simbolizava mais a crise do setor industrial britânico do que qualquer alinhamento estratégico. Os engenheiros da marca sabiam que o Defender precisava mudar — mas também sabiam que a alma do carro residia justamente no que ele não tinha: airbags, vidros curvos, sensores ou espumas de absorção. Tocar no projeto significava correr o risco de destruir o que o tornava único.

A solução, como quase sempre acontece em marcas de nicho, foi manter a base e atualizá-la nos limites do possível. Em 1994, o 200Tdi deu lugar ao lendário 300Tdi. A arquitetura básica era a mesma, mas com melhorias significativas de confiabilidade, arrefecimento e suavidade. O comando de válvulas passava a ser movido por correia dentada mais robusta, e o sistema de injeção Bosch melhorava a entrega de torque. Era um motor mais “civilizado” — mas ainda assim brutal em uso pesado. Durava, vibrava, fumava, puxava como uma mula. E era isso que os donos queriam.

Foi também nessa década que o Defender começou a receber pequenas melhorias de conforto, sempre com certo atraso em relação ao restante da indústria. O painel ganhou desenho mais funcional, bancos um pouco mais ergonômicos, e surgiram versões com vidros elétricos, ar-condicionado de série, direção hidráulica progressiva.

Mas o carro continuava sendo o mesmo monobloco de alumínio rebitado sobre chassi. Para entrar na cabine, ainda era preciso contorcionismo. O som do motor continuava dominando a paisagem interna. E, numa freada brusca, ainda era possível sentir o peso da suspensão dianteira.

Em 1998, mais um capítulo importante: o lançamento do motor Td5, um cinco-cilindros em linha, 2.5 litros, com turbo de geometria fixa e gerenciamento eletrônico via ECU. Era um motor moderno para os padrões do Defender, mas ainda simples o suficiente para sobreviver no deserto. Seu som grave e seu comportamento elástico o tornaram um favorito entre entusiastas, embora a eletrônica embarcada dividisse opiniões — especialmente entre aqueles que achavam que qualquer componente que não pudesse ser consertado com martelo e arame não tinha lugar num Land Rover.

Nessa época, a Land Rover já havia sido comprada pela BMW, numa tentativa da fabricante alemã de diversificar seus ativos. O Defender, no entanto, era tão distante dos ideais bávaros de engenharia e precisão que permaneceu praticamente intocado. A BMW investiu no Range Rover e no Discovery, deixando o Defender como peça de museu funcional. O que o salvava era justamente isso: ele era insubstituível. Em nenhuma outra parte do mundo havia um veículo que reunisse tanta capacidade fora de estrada, facilidade de manutenção, presença de marca e tradição acumulada.

Quando a Ford assumiu o controle da Land Rover no início dos anos 2000, a pressão por atualizações aumentou. Novas normas de emissões, segurança e ruído colocavam o Defender sob constante ameaça de aposentadoria. A estrutura básica do projeto — com sua carroceria de cantos vivos, para-brisa plano e chassi de aço aparafusado — simplesmente não atendia mais aos requisitos de crash-test, proteção de pedestres ou emissão sonora.

Mas a lenda resistia. Em 2007, o Defender passou por sua última grande atualização estrutural. Ganhou o motor 2.4 Duratorq, de origem Ford Transit, com turbo de geometria variável, seis marchas e sistema common rail. O desempenho melhorava, o consumo se tornava mais aceitável, e a dirigibilidade dava um salto considerável. Mais tarde, esse motor seria substituído pelo 2.2 Duratorq, ainda mais limpo e eficiente, embora com menos carisma.

Nada disso, no entanto, mudava o fato de que o Defender estava no limite técnico do que era possível homologar. Os faróis circulares já não iluminavam como se esperava. O espaço interno era irrisório perto de SUV modernos. Os freios exigiam concentração. A ergonomia era um problema desde 1948. E o preço — agora inflacionado pelo status de ícone — fazia com que o carro ficasse restrito a fãs, aventureiros e instituições que valorizavam tradição acima de tudo.

 

Insubstituível

Em 2015, veio o aviso final: o Defender clássico seria descontinuado. A Land Rover tentaria, pela primeira vez, reinventar seu utilitário do zero. Era o fim de uma linhagem de 67 anos — e o começo de uma nova era, que ainda dividia opiniões antes mesmo de começar. Afinal, se Suzuki, Jeep e Mercedes conseguiam atualizar seus utilitários clássicos, por que a Land Rover não poderia fazer o mesmo?

O fim da produção do Defender, em janeiro de 2016, foi tratado como um funeral de Estado. Colecionadores fizeram fila para comprar as últimas unidades. Milhares de entusiastas visitaram a fábrica. Reportagens foram publicadas em dezenas de idiomas. O Defender não era só um automóvel — era um monumento. E como todo monumento, seu valor aumentaria assim que deixasse de existir.

Poucos veículos conseguiram deixar uma marca tão profunda na cultura automotiva mundial quanto o Defender. E o mais curioso é que ele não nasceu com essa ambição. Não foi criado por designers, nem lançado com campanhas publicitárias bombásticas. Não estreou em filmes de ação nem andou em autódromos. O Defender virou lenda pela força da repetição. Por fazer, durante décadas, exatamente aquilo que se propôs a fazer — e nada além disso..

E ele não era apenas resistente no sentido de robustez ou força. Era resistente também ao modismo e à passagem do tempo. O Defender era um fóssil vivo. Um organismo de outra época que sobreviveu exatamente como sempre foi, porque nunca precisou ser diferente.

Carros mudam, marcas traem seus princípios, ícones são reeditados até virarem caricaturas. Mas o Defender permaneceu. Feito do mesmo jeito, com o mesmo cheiro de óleo e feltro velho, com os mesmos rangidos, com o mesmo painel de chapas parafusadas que poderia ter sido montado numa garagem. Justamente por isso, virou objeto de desejo e entrou para a história — não por ser moderno, mas por representar um antídoto à modernidade.

 


Veja as matérias anteriores