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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #23: o Jaguar E-Type

Era 15 de março de 1961 quando o telefone tocou na sala de Norman Dewis. Para alguém que passava os dias testando carros no limite, atendendo engenheiros ansiosos e resolvendo problemas que não apareciam no papel, aquilo parecia só mais uma ligação comum. Mas não era. A ordem, seca e urgente, era: “Volte imediatamente para a fábrica. Explicações ao chegar.”

Naquele momento, Bob Berry — relações públicas da Jaguar — enfrentava um problema em Genebra. Estava sozinho demonstrando o novo E-Type à imprensa, e a reação ao carro era tão avassaladora que ele simplesmente não dava conta. Todo mundo queria ver, fotografar, dirigir o novo carro. O esportivo havia acabado de ser revelado e já parecia maior do que a Jaguar esperava. Sir William Lyons entendeu o recado. Precisavam de mais um carro em Genebra. E precisavam dele na manhã seguinte.

Dewis estava na pista testando os freios do o chassi número 3 — o primeiro E-Type roadster construído — quando foi chamado de volta. Quando chegou a Coventry, às duas da tarde, encontrou seu chefe William Heynes e o engenheiro de suspensão Bob Knight. A missão era clara: levar aquele carro a Genebra naquela mesma noite. Dewis sugeriu ir em casa descansar, deixar os equipamentos serem removidos e partir no dia seguinte. A resposta foi um bilhete do ferry que cruzaria o Canal da Mancha para as 22h. E, como se não bastasse, alguém já havia passado em sua casa para buscar uma muda de roupas com a esposa.

Às 19h45, Dewis deixou Coventry. Com a malha rodoviária da época, isso significava cruzar cerca de 320 km até Dover em pouco mais de duas horas — por estradas de pista simples, com tráfego e trechos urbanos. Ele chegou às 21h45. A média era de quase 160 km/h. O portão do ferry havia fechado dez minutos antes.

“Esse é o ferry para Ostende?”, perguntou Dewis ao funcionário com uma lanterna. “Sim, mas você está atrasado”, veio a resposta. Até que a lanterna iluminou o carro. “O que é isso?”, perguntou o homem. “O novo Jaguar E-Type”, respondeu Dewis. “Aquele que saiu nos jornais hoje?, perguntou o funcionário incrédulo. Em segundos, ele chamava o comandante no rádio: “Você precisa colocar esse cara a bordo. Ele está com o novo Jaguar.”

Dewis embarcou. Mas o pior ainda viria: 800 km de estrada pela frente, até Genebra, com chegada prevista para as 10h da manhã. Ele cruzou a Bélgica, entrou na Alemanha, passou por Luxemburgo, pela Floresta Negra. Manteve média de 110 km/h durante toda a madrugada, parou apenas uma vez para abastecer, olhava o mapa a cada meia hora. Às 10h do dia 16 de março, ele estacionava o Jaguar E-Type roadster em frente ao salão.

Sir William Lyons o esperava. Olhou o relógio. E disse apenas: “Sabia que você conseguiria, Dewis.”
Lofty England, chefe de competição da Jaguar, foi mais expansivo: “Que viagem fantástica! Calculamos sua velocidade — achamos que não daria tempo.”

Mas nem hotel, nem descanso. Dewis foi direto para a função de demonstrador, levando jornalistas para voltas de tirar o fôlego. Nenhum deles sabia que aquele mesmo carro estava em Coventry apenas doze horas antes. Tampouco sabiam que estavam sendo conduzidos por um homem sem dormir — e que havia cruzado um continente na madrugada mais importante da história da Jaguar.


O público do Salão de Genebra já estava acostumado a surpresas. Afinal, aquele era o palco dos anúncios mais importantes da Europa, onde carros comuns dividiam os holofotes com carros conceito que pareciam vindos de outro planeta. Mas naquele ano, no estande da Jaguar, a surpresa se deu por outra razão. Não era um carro que impressionava pelos números. Nem pelo tamanho. O que impressionou o público foram as formas. Longo, baixo, com curvas que pareciam modeladas pelo vento, e não desenhadas a mão.

Sir William Lyons, fundador da Jaguar, sabia o que tinha nas mãos — e mesmo assim, subestimou o impacto. No momento em que a capa foi retirada, a multidão avançou. Jornalistas, engenheiros, curiosos, concorrentes. Até Enzo Ferrari — notoriamente avesso a elogios — teria dito, em voz baixa, que aquele era “o carro mais bonito já feito.” Verdade ou não, a frase ficou. E passou a fazer parte do mito do Jaguar E-Type.

Antes do E-Type, o mundo dos esportivos vivia uma dicotomia. Havia os carros que faziam os olhos brilhar, e havia os que se podia, de fato, comprar. De um lado, estavam as Ferrari, Maserati e Aston Martin: máquinas deslumbrantes, rápidas, raras mas inalcançáveis. De outro, os esportivos menores e mais simples, que entregavam algum prazer ao volante, mas sem grandes ambições de engenharia ou beleza, caso do MG T Series ou do Porsche 356. Era preciso escolher: ou a emoção da performance, ou a realidade do preço. A linha que separava os dois mundos ainda era rígida e muito larga.

A própria Jaguar vinha de uma trajetória curiosa. Nos anos 1940 e 1950, ela se consolidara como a grande marca de esportivos — nas pistas com soluções engenhosas e confiáveis, e, nas ruas, com versões domesticadas desses carros de corrida. Foi assim com o XK120, o XK140 e o XK150. Todos belos, todos rápidos para seu tempo, todos derivados de conquistas reais. Mas já no final dos anos 1950, esses modelos começavam a parecer datados. Os rivais avançavam, as expectativas mudavam, e a Jaguar precisava dar um novo passo se quisesse se manter onde estava.

Só que esse passo precisava ser muito bem calculado, porque o mundo também estava mudando. Em Londres, o pós-guerra finalmente dava lugar ao otimismo. Os jovens ganhavam poder, dinheiro e desejo. O carro deixava de ser apenas um meio de transporte — passava a ser uma extensão da personalidade. Nos Estados Unidos, surgia a cultura do muscle car. Na Europa, os pequenos esportivos ganhavam espaço, mesmo que ainda presos a receitas conservadoras.

O mercado esperava um novo tipo de carro, mesmo sem saber. Algo que combinasse desempenho esportivo e praticidade para o dia-a-dia. E que fosse bonito para ser desejado, mas sem custar uma fortuna. Um carro que misturasse razão e emoção com naturalidade. Foi esse o nicho que a Jaguar enxergou. E foi exatamente esse espaço que o E-Type veio preencher.

A solução, como aconteceria tantas vezes na história da Jaguar, não viria do marketing ou do departamento comercial. Viria da engenharia. E de um homem, em especial, que acreditava que beleza era uma consequência natural da eficiência.


Design que veio do céu

A beleza do E-Type não foi um acidente — mas também não foi planejada. Ela veio de um tipo de sensibilidade raramente vista em um departamento de engenharia. O responsável por ela, Malcolm Sayer, não era designer. Era engenheiro. E não era engenheiro de automóveis, mas de aviões.

Antes de chegar à Jaguar, ele havia trabalhado na Bristol Aeroplane Company, onde projetava fuselagens e perfis de asa. Era o tipo de profissional que entendia o ar como matéria-prima. Quando entrou para a Jaguar, no fim dos anos 1940, trouxe consigo uma obsessão: tudo o que se move depressa deve respeitar o vento. E o vento, como todo elemento natural, atua com harmonia e tende ao equilíbrio.

Ele acreditava que um carro deveria ser desenhado com lógica. Cada curva, cada vinco, cada superfície deveria ter uma função prática — e não ser um mero elemento estético. Ironicamente, foi essa devoção à eficiência que deu ao E-Type formas tão belas — a beleza, ali, não era consequência do gosto, e sim o resultado de cálculos.

Para projetar o E-Type, Sayer usou técnicas incomuns fora da indústria aeronáutica, aplicando fórmulas para definir proporções e curvaturas, muitas vezes sem sequer fazer desenhos convencionais. Preferia tabelas, números, equações. Usava o lápis como último recurso.

O capô interminável, por exemplo, não era pose, e sim uma demanda funcional: além de espaço para o seis-em-linha, ele também controlava o fluxo de ar sobre a carroceria. O para-brisa curvado e o teto afilado obedeciam a cálculos de turbulência.

A traseira cônica servia para evitar a formação de arrasto em alta velocidade. Tudo tinha um porquê. Ainda assim, o resultado final parecia orgânico, como se o carro tivesse sido esculpido, não projetado. Parece até que Sayer simplesmente revelou uma forma que já existia, mas estava oculta pela invisibilidade do ar.


Bonito e rápido

O Jaguar E-Type não era um carro de corrida disfarçado de esportivo como alguns ícones da época — caso do Mercedes 300SL ou das Ferrari 250GT. Era algo mais raro: um carro feito para as ruas, mas que carregava a herança direta de Le Mans. O conjunto mecânico do E-Type vinha de um carro que havia vencido a prova três vezes — o Jaguar D-Type.

O E-Type usava um monobloco central com um subchassi tubular na dianteira, que sustentava o motor, a suspensão e os acessórios. Essa configuração permitia leveza, rigidez e um centro de gravidade baixo, além de facilitar reparos e manutenções localizadas. Era uma solução herdada diretamente dos protótipos de corrida — razão pela qual todo o capô se abria como uma concha, expondo o subchassi por inteiro.

A suspensão dianteira usava braços triangulares duplos com barras de torção — outra herança das pistas. Na traseira o E-Type realmente deu um salto: suspensão independente com braços oscilantes, e os freios a disco montados junto ao diferencial. Isso reduzia a massa não-suspensa e melhorava o comportamento dinâmico de forma significativa. Naquela época, apenas carros de competição ou modelos de alto padrão usavam essa configuração. O Jaguar levava isso ao consumidor comum. Ou, ao menos, ao cidadão comum com gosto por velocidade.

O motor era o já conhecido XK seis-em-linha de 3,8 litros, com duplo comando no cabeçote em alumínio, câmaras hemisféricas e três carburadores SU. Rendia 265 cv e permitia que o E-Type superasse 240 km/h de velocidade máxima, se o piloto tivesse coragem e espaço para manter o pé em linha reta. A aceleração de zero a 100 km/h era feita em pouco mais de sete segundos. Para efeito de comparação: era mais rápido que qualquer Porsche da época, custando menos da metade de uma Ferrari 250 GT.

Mas mais do que os números, era a maneira como o carro se comportava que surpreendia. O E-Type era estável, neutro, comunicativo. Contornava as curvas com equilíbrio de carro de pista, mas com a suavidade e o conforto que a Jaguar sempre soube entregar em seus sedãs. Era possível viajar longas distâncias com ele sem sair fisicamente esgotado — algo impossível em muitos de seus concorrentes diretos. Nascia ali o GT moderno.

O câmbio, de quatro marchas, era preciso. A direção, leve o bastante para uso urbano, mas com firmeza em alta velocidade. Os freios, com discos nas quatro rodas, ofereciam uma força de parada rara até mesmo entre esportivos de ponta. E tudo isso era entregue por um carro com porta-malas, teto (no caso do coupé) e acabamento digno de um GT.

O E-Type não era perfeito. O calor do motor invadia a cabine em dias quentes, a embreagem era pesada, e o sistema elétrico — como manda a tradição inglesa — era temperamental. Mas, pela primeira vez, o mundo conhecia um carro que era bonito como um conceito, rápido como um de corrida, prático como um sedã e que não cobrava uma fortuna por isso.

Não foi por acaso que a imprensa especializada entrou em colapso ao testá-lo. A Road & Track dizia que ele era “melhor que qualquer carro de US$ 10.000”. A Car and Driver chamava o E-Type de “a barganha do século”. E a Motor britânica foi além: escreveu que ele tornava praticamente todos os esportivos da época irrelevantes — exceto talvez os de competição pura.

O Jaguar E-Type (ou XK-E, como era chamado nos EUA) em teste pela Car and Driver

Não era exagero. Era o início de um novo tipo de carro: um esportivo para pessoas comuns. E, em 1961, só a Jaguar entregava isso.

O E-Type apareceu exatamente quando a Inglaterra começava a se reinventar. Depois de duas décadas tentando se reerguer do pós-guerra, os anos 1960 chegaram como uma explosão: a moda de Mary Quant, os Beatles, os Rolling Stones, o Concorde, o Mini, a cultura jovem tomando o controle. A Grã-Bretanha não era mais apenas tradição, tweed e pontualidade: agora era juventude, atitude, velocidade. E não havia metáfora mais perfeita para esse novo espírito britânico do que o E-Type.

Ele era bonito, mas também era rápido, sofisticado, e — para muitos — acessível o bastante. Era o carro dos atores, dos fotógrafos, dos músicos. Steve McQueen teve um. Brigitte Bardot também. George Best, o “beatle do futebol”, dirigia um E-Type branco em Manchester. George Harrison, o beatle entusiasta, também tinha o seu. Frank Sinatra teria dito, ao ver o carro em uma concessionária de Los Angeles: “Ok, podem cancelar a Ferrari.”

E essa popularidade entre as celebridades não era puro acaso. O E-Type tinha o poder de condensar vários desejos simultâneos. Era tão bonito quanto um carro italiano, tão rápido quanto um alemão e — num mundo ainda obcecado pelos EUA — era um lembrete de que os britânicos ainda sabiam liderar.

O impacto do E-Type não parava nas vitrines ou nas páginas das revistas. Ele mudou o comportamento do mercado. Forçou Ferrari, Aston Martin, Porsche e até a Chevrolet a repensarem o que entregavam em seus esportivos. A própria Jaguar, de certa forma, criou um problema para si: ela havia colocado a régua tão alto que passou os 15 anos seguintes tentando repetir o feito — sem nunca conseguir.

O modelo original, hoje conhecido como Series 1, foi produzido de 1961 a 1968. É, até hoje, o mais reverenciado — e com razão. Era o mais puro, o mais fiel ao desenho original de Malcolm Sayer, com faróis cobertos por uma capa acrílica, parachoques minimalistas e interior dominado por alumínio escovado e mostradores Smiths. Os primeiros usavam o motor XK 3.8, depois substituído pelo 4.2 litros, com mais torque e câmbio sincronizado. Foi nessa fase que o E-Type se tornou um clássico instantâneo.

Mas o mundo mudava — e rápido. A pressão do mercado americano, principal destino do carro, exigia alterações. Em 1967, surgia a chamada Series 1½ — uma transição sem nome oficial, marcada pela remoção das coberturas dos faróis e adaptações para emissões e segurança. Esteticamente, já havia sinais de que a pureza do design começava a ceder espaço às exigências externas.

O jogador George Best com seu E-Type Mk1.5

Em 1968, a Series 2 tornava essas mudanças permanentes: faróis expostos, lanternas maiores, para-choques reforçados, novos bancos, ventilação forçada na cabine. Ainda era um E-Type — mas começava a parecer menos arte e mais produto. Era o preço da sobrevivência. O motor 4.2 continuava presente, mas a performance já não era o destaque absoluto: agora, o foco começava a migrar para conforto e usabilidade.

A transformação definitiva viria em 1971, com a Series 3. E com ela, um novo coração: o V12 de 5.3 litros, nascido para manter a Jaguar relevante diante dos muscle cars americanos e dos GT italianos de cilindrada maior. Era um motor refinado, macio, torcudo — mas pesado. Para abrigá-lo, a dianteira foi alongada, a grade aumentada, os para-choques reforçados. Nascia um carro diferente. Menos esportivo, mais grand tourer.

Àquela altura, o E-Type oferecia apenas duas carrocerias: o roadster e o 2+2 coupé, com entre-eixos alongado. O fastback original de teto baixo — talvez o desenho mais puro da história da Jaguar — havia desaparecido. Em seu lugar, surgia um carro mais maduro, mais civilizado, mas também mais distante do espírito que o havia tornado lenda.

Em 1974, a produção do E-Type foi encerrada sem deixar um sucessor imediato. Seu herdeiro de fato, o XJ-S, só chegaria dois anos depois — mais luxuoso, mais pesado, mais silencioso. Ele tentaria ser um GT à moda britânica, mas nunca teve o mesmo magnetismo. O mundo havia mudado. A década de 1970 era cinza, insegura, lenta. Já não havia espaço para curvas ousadas e promessas de 240 km/h num carro acessível.


Poucos carros conseguiram moldar a cultura ao seu redor. O Jaguar E-Type não apenas refletia o espírito da década de 1960 — ele ajudou a defini-lo. Porque o que se via ali, estacionado na frente de um café em Paris ou cruzando o Sunset Boulevard ao entardecer, não era só um carro. Era um artefato cultural. Uma declaração de independência estética. Um símbolo de que o mundo, finalmente, começava a olhar para o futuro com desejo.

Mais do que tudo, o E-Type redefiniu o que era possível em um carro esportivo produzido em grande escala. Antes dele, havia uma separação clara: se você queria desempenho real, comprava um carro de corrida adaptado, com todos os sacrifícios que isso impunha. Se queria conforto, beleza e alguma praticidade, acabava em algo menos emocional. O E-Type apagou essa linha. Tornou o carro de sonho em algo possível.

E ao fazer isso, tocou em algo mais profundo: a ideia de que um automóvel pode ser mais do que um meio de transporte. Pode ser uma experiência estética, uma extensão do corpo, um símbolo pessoal. Algo que se deseja por instinto, e não apenas por ficha técnica. Poucos carros antes dele tinham conseguido isso. E pouquíssimos conseguiram depois.

Mesmo hoje, sessenta anos depois, sua silhueta ainda parece atual. Sua postura, moderna. Seu impacto, inegável. O mundo mudou — mas o E-Type continua belo. Continua rápido o bastante. Continua icônico. E, talvez por isso, tenha mudado o mundo um pouco também. O plano da Jaguar era construir 250 unidades do E-Type. Ao fim do Salão de Genebra, já havia mais de 500 encomendas. Em seus quase 15 anos de produção, foram feitos mais de 72.000 exemplares.

Naquele dia, a Jaguar não apresentou apenas um modelo novo. Ela também redefiniu o que um carro esportivo podia ser. Ela atingiu em cheio a imaginação de uma geração, e deixou concorrentes, críticos e apaixonados com a certeza que, depois dele, o mundo nunca mais seria o mesmo.


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