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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #3: Rolls-Royce Silver Ghost

No início do século XX, o mundo automotivo era barulhento e caótico. Os automóveis, embora já tivessem seus quase 20 anos, ainda eram máquinas rudimentares, com motores ruidosos, que trepidavam pelas ruas sem pavimentação ou feitas de pedras. Falhas mecânicas eram frequentes e o conforto era um conceito ligado apenas aos imóveis. Foi nesse cenário imperfeito que os caminhos de dois homens visionários se cruzaram para criar algo revolucionário.

Estes homens eram os britânicos Charles Stewart Rolls e Henry Royce. Este último, um engenheiro obsessivo pela precisão, enquanto o Rolls era um aristocrata apaixonado por velocidade e inovação. Em 1904, os dois uniram forças para fundar a Rolls-Royce Limited — uma parceria transformaria a indústria automobilística para sempre.

Henry Royce tinha origem humilde, era autodidata e perfeccionista. Embora tenha iniciado sua carreira na engenharia elétrica, a insatisfação com os veículos da época — que ele considerava barulhentos, pouco confiáveis e mal projetados — o levou a se dedicar aos automóveis, abrindo uma fábrica em Manchester, no norte da Inglaterra. Em 1904, ele construiu seu primeiro carro, o Royce 10 h.p. com um motor de apenas dois cilindros, mas que já exibia características que se tornariam a base da Rolls-Royce: motor suave e silencioso, com uma construção robusta e refinada. Royce não queria apenas fabricar carros; ele queria redefinir o que um carro poderia ser.

Henry Royce

Charles Rolls, por outro lado, era oposto de Royce. Nascido em 1877 em uma família abastada de Londres, Rolls era um aventureiro nato — piloto, aviador e entusiasta de automóveis. Formado em engenharia mecânica em Cambridge, ele foi um dos primeiros revendedores de carros da história da Inglaterra — sua C.S. Rolls & Co. era representante de modelos franceses no Reino Unido —, mas, sendo um engenheiro, ele tinha a ambição de fazer seu próprio carro. Um carro britânico que rivalizasse com os melhores do mundo.

Charles Rolls

Rolls já conhecia o trabalho de Royce quando os dois se encontraram no Midland Hotel, em Manchester, em maio de 1904, a convite de Claude Johnson, um amigo em comum que, mais tarde, se tornaria o “hífen” da Rolls-Royce, como ele mesmo se descrevia.

No encontro, Royce apresentou seu o 10 h.p. a Rolls, que ficou impressionado com a qualidade técnica do veículo. Naquele momento, nasceu um acordo: Royce projetaria e fabricaria os carros, enquanto Rolls os venderia exclusivamente sob a marca Rolls-Royce.

O primeiro Rolls-Royce

O pacto foi selado com um aperto de mãos e um objetivo: criar carros luxuosos e robustos em um mercado dominado por máquinas simplórias e pouco confiáveis. Sete meses depois, em dezembro de 1904, a Rolls-Royce Limited foi oficialmente estabelecida. A colaboração entre os dois sócios acelerou o crescimento da marca, que lançou dois novos modelos nos dois primeiros anos de atividade — o 20 h.p. e o 30 h.p., ambos com evoluções e refinamentos do projeto original do Royce 10 h.p. — e impulsionou o salto seguinte: o Rolls-Royce 40/50 h.p.

O Rolls-Royce 20 h.p.

O objetivo deste carro era tão simples quanto ambicioso: superar os concorrentes e redefinir os padrões de engenharia e luxo. Royce, com sua obsessão por detalhes e sua crença de que a excelência estava nos detalhes, passou meses refinando cada componente.

O coração do carro era seu motor: um seis-em-linha de  7.036 cm³, dividido em dois blocos de três cilindros, com virabrequim de sete mancais para reduzir vibrações. A lubrificação pressurizada, uma inovação técnica, garantia a estabilidade de operação do motor mesmo sob condições severas, enquanto as bronzinas superdimensionadas reforçavam sua durabilidade. Por último, o motor usava um sistema de ignição dupla, com magneto e bateria, para otimizar as partidas mesmo em condições adversas. A potência original era 50 cv a 1.250 rpm — uma rotação baixa que garantia o silêncio e a  suavidade pretendidos por Rolls e Royce.

O chassi do 40/50 era igualmente revolucionário, usando ligas de alta resistência para suportar as refinadas carrocerias personalizadas da Barker, Hooper ou Mulliner, os principais nomes do Reino Unido, na época. A suspensão por molas semi-elípticas na frente e molas cantilever na traseira, proporcionava equilíbrio inédito entre conforto e estabilidade — lembre-se de que este carro foi lançado em 1906, quando superfícies lisas eram algo raro nas ruas e estradas.

O chassi do 40/50 à direita da foto

O 40/50 h.p. foi apresentado ao mundo no Salão de Londres, em dezembro de 1906, marcando um momento histórico para a indústria automotiva britânica. O evento foi realizado no Olympia Events devido ao crescimento do setor, e a Rolls-Royce sabia que precisava impressionar o público e a crítica neste novo palco. Por isso, o carro exposto não era apenas uma vitrine de engenharia, mas uma promessa: um veículo que combinava potência com uma suavidade quase sobrenatural — algo que desafiou o ceticismo do público que ouvia seu motor silencioso. Como aquele motor imenso era tão suave? Como um motor tão silencioso era capaz de entregar tamanha potência?

Charles Rolls, com seu talento para o marketing, viu no 40/50 uma oportunidade de posicionar a Rolls-Royce como líder em um mercado ainda dominado por fabricantes como Daimler, Napier e os franceses da Panhard. Para ele, o carro não era apenas um produto — era a materialização de um ideal britânico de qualidade e sofisticação.

A produção começou em Manchester, onde cada unidade era montada de forma quase artesanal para garantir um maior controle de qualidade — algo que Rolls-Royce priorizava sobre a quantidade. Os primeiros chassis, numerados a partir de 60501, foram entregues a clientes dispostos a pagar um preço elevado por um carro feito sob medida. O custo básico do chassi era de cerca de £985 (cerca de £ 100.000 em 2025), mas com as carrocerias mais caras, com acabamentos de madeira polida e couro, o valor podia facilmente ultrapassar £1.500 (£ 155.000 em 2025). Esse preço o colocava fora do alcance da maioria, mas era exatamente esse o objetivo: o 40/50 h.p. não era para todos. Ele foi concebido para os poucos que valorizavam a exclusividade tanto quanto a performance.

O nome “40/50 h.p.” refletia sua classificação fiscal e potência real, mas não capturava a essência do que o carro representava. Isso mudaria em 1907, quando o chassi número 60551, encomendado por Claude Johnson, diretor comercial da empresa, ganharia o apelido “Silver Ghost” após uma série de testes impressionantes. Foi ele o carro que transformou a promessa de Charles Rolls e Henry Royce em realidade. Uma realidade que mudou para sempre o automóvel.

 

O Silver Ghost

Tudo começou com o chassi número 60551 e um plano de seu proprietário Claude Johnson: transformar o 40/50 h.p. em algo maior que um simples automóvel. Ele queria que o carro tivesse uma aura mística, um objeto de desejo para o público e um padrão de referência para a imprensa.

Claude Johnson ao volante do 60551

Conhecido como “o hífen” da Rolls-Royce por sua habilidade em unir o gênio técnico de Henry Royce ao carisma comercial de Charles Rolls, Claude Johnson encomendou um 40/50 h.p. planejado para se destacar tanto em forma quanto em função. O carro foi equipado com uma carroceria aberta tipo tourer, fabricada pela Barker & Co., e recebeu um acabamento único: uma pintura prateada que brilhava sob a luz, complementada por acessórios banhados a prata, como os faróis e o radiador. O resultado era deslumbrante; um automóvel que parecia flutuar pelas estradas.

Johnson sabia que a aparência não seria suficiente para convencer o mundo. Ele precisava provar que o carro era mais do que um objeto de luxo; que ele também era uma máquina resistente e confiável como jamais fora vista. Na época, a melhor forma de fazer isso era com os testes de confiabilidade, nos quais uma equipe de pilotos de testes dirigia o carro sem parar por longas distâncias, mostrando que ele era capaz de ser usado ininterruptamente sem grandes problemas mecânicos.

Em 1907, o recorde de resistência era da Napier, que havia percorrido 7.000 milhas sem parar, apenas alternando os motoristas. A Rolls-Royce, portanto, iria superar esta marca, rodando em vias públicas entre Londres e Glasgow, sem paradas forçadas ou falhas mecânicas. Uma equipe da fábrica se alternaria ao volante para manter o carro em funcionamento constante, parando apenas aos domingos. Para um carro da época, isso era quase impensável, especialmente como nível de luxo e sofisticação do chassi 60551 do 40/50 h.p. Durante o teste, a equipe da Rolls-Royce dobrou a distância percorrida, dirigindo o carro por 15.000 milhas (24.140 km).

O carro foi inspecionado pelos engenheiros do Royal Automobile Club (RAC) para um laudo imparcial. Eles atestaram que os únicos reparos ou substituições necessários para devolver o carro à sua forma original, como saído da fábrica foram a caixa a direção, que apresentou folga decimal nos componentes internos e a flange da bomba d’água. Houve também um pequeno desgaste na engrenagem do magneto da ignição. O resultado foi tão impressionante que a revista Autocar, em sua edição de 20 de abril de 1907, declarou o 40/50 h.p. “o melhor carro do mundo” — uma frase que se tornaria o lema não-oficial da Rolls-Royce.

Também foram os jornalistas que batizaram o carro com o nome que o colocaria na história: “Silver Ghost”, ou “Fantasma Prateado” — uma referência tanto à sua cor quanto à sua presença e atuação quase sobrenatural. Embora o nome tenha sido inicialmente exclusivo desse exemplar, ele logo foi usado para todos os 40/50 h.p.

O surgimento do Silver Ghost em 1907 foi mais do que o lançamento de um carro excepcional — foi um marco. O chassi 60551 ganharia o apelido ‘Silver Ghost’ e se tornaria um sucesso imediato. Ele apareceu em feiras, desfiles e eventos promocionais, atraindo multidões e solidificando a imagem da marca como sinônimo de luxo e inovação. Enquanto isso, a produção do 40/50 h.p. continuava em Manchester, implementando as soluções obtidas nos testes do Silver Ghost. O sucesso do carro também atraiu uma clientela de elite: aristocratas, industriais e até mesmo a realeza encomendaram seus Rolls-Royces.

O apelido Silver Ghost, aliás, não estava nos planos da Rolls-Royce, mas Claude Johnson, como bom publicitário, abraçou a popularidade do termo. Ele percebeu que o nome trazia uma aura de mistério, elegância e poder ao carro — tudo o que a Rolls-Royce queria projetar no modelo. Embora oficialmente o modelo continuasse sendo o 40/50 h.p. nos registros da empresa por muito tempo, o público e a imprensa já haviam escolhido seu nome.

O sucesso crescente do Silver Ghost trouxe mudanças também na infraestrutura da Rolls-Royce. A fábrica de Manchester ficou limitada para atender a demanda e, em 1908, a fabricante transferiu a produção do carro para uma nova fábrica, em Derby, cerca de 130 km ao sul de Manchester. Além desta nova fábrica, em 1921 a Rolls-Royce inaugurou uma linha de produção nos EUA para driblar as tarifas de importação impostas pelos americanos e para atender os clientes que desejavam personalizar seus carros localmente em encarroçadoras como a Brewster e a Willoughby. Mesmo com as adaptações para o mercado americano — como a conversão para mão esquerda e recalibragem da suspensão — os carros mantinham o padrão de qualidade estabelecido por Henry Royce na fábrica de Derby.

O Silver Ghost em 1908

Ao longo dos anos o Silver Ghost teve uma série de melhorias que refletiam tanto os avanços tecnológicos quanto as lições aprendidas em testes e competições. O motor de seis cilindros, originalmente com 7.036 cm³, foi ampliado em 1910 para 7.428 cm³, aumentando a potência de 50 cv para até 75 cv nos modelos posteriores. Esse ganho veio do aumento da taxa de compressão e de uma nova carburação. O sistema de ignição dupla — com magneto e bateria — permaneceu ao longo da produção pois era a forma de garantir confiabilidade em qualquer situação.

A transmissão também passou por uma transformação significativa. Nos primeiros anos, o Silver Ghost usava uma caixa de três marchas, que era adequada para a época, mas limitada em subidas íngremes ou em velocidades mais altas. Em 1913 o Silver Ghost passou a usar um câmbio de quatro marchas. Outra inovação técnica chegou em 1923, quando freios servo-assistidos nas quatro rodas foram oferecidos como opcional — uma raridade na época que melhorava a segurança e o controle de frenagem, especialmente em modelos mais pesados equipados com carrocerias luxuosas.

A última iteração do Silver Ghost, de 1926

O chassi do Silver Ghost, com seus eixos rígidos e molas de lâmina, permaneceu uma constante ao longo dos anos, mas foi continuamente ajustado para suportar as exigências dos diferentes usos do carro. A suspensão traseira cantilever, combinada com molas semi-elípticas dianteiras, oferecia um equilíbrio entre robustez e conforto, tornando o carro ideal tanto para estradas pavimentadas quanto para caminhos rurais precários.

Esse design robusto também permitiu variações de competição como o “London-to-Edinburgh”, com uma relação de marcha mais alta para maior velocidade, e o “Alpine Eagle”, otimizado para terrenos montanhosos. As competições da época, aliás, foram um campo de provas fundamental para o Silver Ghost, testando seus limites e inspirando melhorias contínuas.

Silver Ghost London-to-Edinburgh

Em 1912, a Rolls-Royce inscreveu um 40/50 no Austrian Alpine Trial, uma série de corridas de resistência nos Alpes austríacos. Nesta prova, apesar do desempenho consistente no trecho plano, o carro enfrentou dificuldades na subida do Passo Katschberg, onde o câmbio de três marchas não conseguiu lidar com os trechos mais íngremes da subida — algo que arranhou a reputação da Rolls-Royce por um breve período.

O Rolls-Royce 40/50 no Alpine Trial de 1913

No ano seguinte, a fabricante voltou à corrida com quatro carros preparados especialmente para a subida e conquistou seis provas do evento. Essa versão de corrida inspirou o Silver Ghost “Alpine Eagle”, que tinha suspensão, câmbio e carburador modificados para provas como a Austrian Alpine Trial.

Outra prova em que o Silver Ghost se destacou foi o rali “London-to-Edinburgh”, uma ação publicitária realizada em 1911 em resposta a John Napier, que, segundo a lenda, provocava a Rolls-Royce dizendo que o Silver Ghost era “um carro para senhoras”. Nesse teste, o 40/50 percorreu as estradas entre Londres e Edimburgo à maior velocidade possível, e o fez com uma média de consumo muito superior aos Napier. Depois, a Rolls-Royce o levou a Brooklands onde ele foi levado a 78,26 mph (125,95 km/h) com três passageiros a bordo, em um recorde de velocidade aferido pelo RAC. Estes testes deram origem ao Silver Ghost London-to-Edinburgh, que combinava um câmbio de quatro marchas ao motor de 50 cv e à carroceria “tourer”.

A prova definitiva do avanço tecnológico do Silver Ghost, contudo, foi a sua longevidade. O 40/50 h.p. foi produzido por 20 anos, entre 1906 e 1926, sempre representando o auge do luxo e da tecnologia automotiva de seu tempo. Neste período foram produzidos 7.874 Silver Ghosts nas fábricas de Manchester, Derby e nos EUA.

Ao longo de seus 20 anos de estrada, o Silver Ghost se manteve fiel ao conceito original de Henry Royce, que queria um carro que tivesse a perfeição como padrão. Com sua engenharia revolucionária, uma combinação de luxo, refinamento artesanal e robustez inéditos, o Silver Ghost inventou o carro de luxo moderno com uma fórmula seguida até hoje.

 


Veja os capítulos anteriores da série “50 Carros que Mudaram o Mundo”

1 – Benz Patent-Motorwagen
2 – Mercedes 35 PS e Simplex