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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #31: o Fiat 128

Quando o Fiat 128 foi apresentado em 1969, o universo do automóvel ainda vivia uma indecisão filosófica. De um lado, estava o motor traseiro — símbolo da simplicidade e da leveza dos carros europeus do pós-guerra. Do outro, o motor dianteiro longitudinal com tração traseira, a configuração clássica, nobre e previsível. O que Dante Giacosa apresentou naquele ano não foi apenas mais uma opção técnica: foi uma ruptura tão silenciosa quanto definitiva. Com o 128, ele redesenhou o mapa do automóvel, e o fez com tamanha precisão que, mais de meio século depois, praticamente todos os carros ainda seguem seu mesmo princípio.


Giacosa não era um iconoclasta por vocação. Engenheiro de formação clássica, metódico e pragmático, ele acreditava que a elegância técnica vinha do refinamento da simplicidade. Na Fiat, criou o Topolino, o 500 e vários outros carros que ajudaram a reconstruir a Itália no pós-guerra e a consolidar a Fiat como uma das gigantes europeias. Meso com o sucesso, ele sempre carregou uma inquietação: a sensação de que tanto o motor traseiro quanto a tração traseira eram mais convenções do que soluções reais. O peso todo atrás, o espaço perdido na frente, a instabilidade natural em altas velocidades, a perda mecânica de um cardã em carros menores — nada disso parecia compatível com o futuro.

Os anos 1950 foram um período de observação e aprendizado para Giacosa. Ele acompanhou com atenção o que os britânicos e franceses fizeram — o Citroën Traction Avant e, mais tarde, o Mini. Cada um deles era uma tentativa de reorganizar o automóvel em torno da tração dianteira. Mas nenhum havia encontrado o equilíbrio entre eficiência técnica e viabilidade industrial. O Mini foi o que mais lhe chamou a atenção. Era genial no arranjo mecânico, mas um pesadelo para escalar e manter: o câmbio ficava dentro do cárter, o radiador ficava na lateral, e o óleo lubrificava tanto motor quanto transmissão — tudo isso parecia um improviso; não era refinado conforme sua filosofia.

Giacosa gostou do arranjo, mas sabia que propor algo tão diferente à Fiat exigia prudência. Como toda mega-corporação, a empresa era conservadora e sustentada por uma estrutura hierárquica quase política. No início dos anos 1960, a Fiat era o maior empregador privado da Itália e tinha papel simbólico na reconstrução do país. Gianni Agnelli, neto do fundador, ainda estava consolidando o controle do grupo e via o automóvel como instrumento de progresso nacional. Nessa atmosfera, qualquer proposta técnica era também uma questão institucional — e mudar a arquitetura do carro significava não apenas mexer com décadas de tradição, mas também correr um risco que a Fiat não podia correr naquele momento.

Os modelos de motor traseiro — o 500, o 600 e o 850 — vendiam bem, especialmente nos mercados do sul da Europa e na América Latina. Mas Giacosa percebia os limites daquela fórmula. O 850, lançado em 1964, já dava sinais de esgotamento conceitual: difícil de ampliar, dinamicamente problemático e limitado em espaço interno. Era hora de buscar uma nova base técnica, mas ele sabia que impor a ideia de tração dianteira diretamente à Fiat seria suicídio político.

Sua solução foi estratégica. Ele convenceu a diretoria a usar a Autobianchi, uma pequena marca recém-criada em parceria com a Bianchi e a Pirelli, como campo de testes para novas tecnologias. A Fiat controlava a Autobianchi, mas ela era discreta o suficiente para servir de laboratório. Foi ali que nasceu o Primula, em 1964. O carro parecia apenas mais um Fiat compacto convencional, mas escondia o que Giacosa considerava o verdadeiro futuro da empresa.

O Autobianchi Primula foi o primeiro carro do mundo com o conjunto de motor e câmbio montado em posição transversal, lado a lado, com radiador frontal e com suspensão McPherson — o que mais tarde seria conhecido como o “layout Giacosa”. Essa disposição resolvia quase todos os problemas do Mini, mantendo o bom aproveitamento de espaço sem recorrer a soluções excêntricas. Era um carro fácil de montar, fácil de reparar e equilibrado ao dirigir. O Primula não teve grande repercussão comercial — a Autobianchi era pequena demais para isso —, mas dentro da Fiat todos perceberam o que Giacosa havia criado. Pela primeira vez, alguém havia transformado a tração dianteira em algo simples, limpo e escalável.

Enquanto isso, a Fiat precisava de um sucessor para o seu 1100, lançado ainda nos anos 1950 e já obsoleto. A Itália estava mais rica, o público queria carros mais confortáveis, e o mercado europeu se abria rapidamente. Era a chance perfeita para Giacosa provar que sua ideia podia ser produzida na escala que a Fiat produzia. Cinco anos após o Primula, o conceito estava pronto para chegar ao grande público.

O Fiat 128 nasceu dessa convergência entre necessidade comercial e coragem técnica. Giacosa viu nele a oportunidade de consolidar sua visão: criar um carro de massa com comportamento previsível, manutenção fácil e aproveitamento exemplar de espaço. A Fiat, finalmente convencida, deu-lhe liberdade total — e ele cercou-se de talentos. O motor foi desenvolvido por Aurelio Lampredi, ex-Ferrari e então chefe de motores da Fiat, que projetou um quatro-cilindros leve e avançado, com comando no cabeçote e fluxo cruzado. Era o primeiro motor da Fiat com essa configuração, e também o primeiro projetado desde o início para montagem transversal.

O resultado foi um compacto de proporções quase ideais: menos de quatro metros de comprimento, 800 kg de peso, distribuição equilibrada e um interior surpreendentemente espaçoso para o porte. A transmissão, montada ao lado do motor, tornava o conjunto compacto e de acesso fácil. O radiador frontal resolvia definitivamente os problemas de arrefecimento que atormentavam os carros de motor traseiro. E a suspensão McPherson dianteira, com braços arrastados independentes atrás, dava-lhe uma combinação inédita de conforto e estabilidade. Finalmente, o Fiat 128 provava que era possível unir racionalidade mecânica, economia de produção e prazer de condução. Nascia, com ele, o automóvel moderno — não no sentido do estilo, mas do conceito.

O melhor aspecto é que essa racionalidade não significava frieza. Pelo contrário: o 128 tinha alma. Seu pequeno motor de quatro cilindros em linha, 1.116 cm³, com comando no cabeçote e fluxo cruzado, entregava 55 cv a 6.000 rpm e 8,5 kgfm de torque a 3.500 rpm, girava com vontade e entregava boas respostas. Como o carro era leve, ele se comportava com agilidade e neutralidade impressionantes para aquela época de eixos rígidos e traseiras imprevisíveis. O Fiat 128 era firme, previsível e rápido — antecipando o comportamento dos carros das décadas seguintes.

Mas a verdadeira genialidade do 128 aparecia quando ele não estava em movimento. Nas linhas de produção e nas oficinas. Aquele arranjo transformou o modo de construir automóveis. Como o motor e a transmissão formavam um conjunto pré-montado, bastava subi-lo ao monobloco por baixo, fixado por poucos parafusos. A simplicidade do sistema McPherson, o espaço interno ganho com o arranjo transversal e o custo de produção mais baixo faziam do projeto uma vitória industrial antes mesmo de ser uma vitória de engenharia. Giacosa havia descoberto o segredo da escala — e com ele, a chave da universalidade.

O impacto foi imediato. Em poucos anos, a arquitetura do 128 foi copiada, adaptada e refinada por todas as fabricantes. Volkswagen, Peugeot, Renault, Ford, Honda, Opel — cada uma reinterpretou à sua maneira o sistema que a Fiat havia criado. O Golf, o 104, o Civic, o Kadett e o Escort de tração dianteira são todos descendentes diretos do 128.

Além disso, o 128 gerou diretamente várias derivações dentro da própria Fiat: o 128 Coupé, lançado em 1971, trouxe estilo e esportividade ao mesmo conjunto mecânico, mostrando a versatilidade do layout Giacosa. O 128 Sedan e o 128 Station Wagon expandiram a plataforma para atender famílias e usos comerciais, enquanto o Fiat 127 adaptou o conceito para o motor menor e o trânsito urbano, criando a primeira aplicação do 128 em escala global fora da Europa na forma do Fiat 147 da América Latina. Essa plataforma também serviu de base para modelos como o Lancia Delta e algumas versões do Seat 127, consolidando a influência do projeto ao longo das décadas.

O Fiat 128 Coupé de 1973

Curiosamente, o sucesso do “layout Giacosa” representou o início do fim de uma era de carros com personalidade mecânica própria. O automóvel moderno, ao concentrar tudo na dianteira e libertar o restante do espaço para o conforto e a praticidade, tornava-se mais eficiente e mais previsível — mas também mais homogêneo. O mesmo princípio que democratizou a engenharia e barateou o transporte individual também achatou as diferenças. O mundo ganhou carros melhores, mas perdeu um pouco de diversidade.

Ainda assim, seria injusto ver o Fiat 128 como o vilão dessa transição. Ele foi, acima de tudo, a expressão mais pura da inteligência aplicada ao automóvel — e da crença de Giacosa de que o progresso técnico podia tornar o carro mais acessível, mais estável, mais previsível e mais seguro.

O 128 Panorama, já com facelift

Hoje, ao olhar para qualquer hatchback, crossover ou sedã compacto, vemos os reflexos uma ideia nascida há mais de meio século, quando um engenheiro italiano decidiu colocar ordem no caos que a genialidade de Issigonis havia criado. O Fiat 128 foi o ponto de inflexão entre o automóvel artesanal e o automóvel moderno. E, talvez sem perceber, Dante Giacosa acabou definindo não apenas o formato do carro do futuro, mas também a lógica que guiaria toda a indústria dali em diante.


Dante Giacosa se aposentou da Fiat poucos depois do lançamento do 128, mas sua criação ser elogiada, copiada e transformada no padrão da indústria. Recebeu prêmios e homenagens, mas jamais pareceu deslumbrado. Continuava um homem reservado, mais interessado em discutir soluções do que em celebrar vitórias. Em sua autobiografia, Forty Years of Design with Fiat, escreveu com a serenidade de quem sabia o que havia feito: “O automóvel é uma máquina viva, e como toda criatura viva, deve evoluir para se adaptar ao mundo que a cerca.”

Giacosa recebe o “Car of the Year” de 1970 pelo Fiat 128

Talvez não imaginasse o quanto sua “criatura” se adaptaria — e dominaria. Quando morreu, em 1996, o mundo já estava tomado por carros que seguiam, quase à risca, o modelo que ele idealizara trinta anos antes. A simplicidade que Giacosa buscou ao longo de sua carreira, se tornara o idioma universal do automóvel.

Seu legado, porém, vai além da técnica. Ele mostrou que o progresso pode ser racional sem ser impessoal, e que o verdadeiro avanço não vem da extravagância, mas da coerência. Giacosa não inventou o automóvel moderno — apenas o colocou no eixo certo. E é por isso que, mesmo invisível, sua assinatura está em praticamente tudo o que se move sobre quatro rodas desde então.


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