Dezembro de 1997. Takaoka, Japão. O primeiro Prius sai da linha de produção. Três anos antes, metade da engenharia da Toyota apostava que a ideia ia implodir. A outra metade achava que, mesmo funcionando, ninguém em sã consciência compraria aquele carro.
Seis meses antes do lançamento os protótipos pegavam fogo, as baterias morriam no meio do teste, o sistema de gerenciamento travava, e ele ainda tinha um ícone de tartaruga no painel, que acendia quando o carro estava prestes a desligar sozinho por falta de energia nas baterias — um aviso que é o oposto do que se espera de um “carro do futuro”
Quase 30 anos depois, contudo, o Prius vendeu mais de 20 milhões de unidades e, além de mostrar ao mundo como deve ser um híbrido, ele mostrou que entre a assepsia pouco prática dos elétricos e as emissões dos motores de combustão interna, existe um caminho que pega o melhor de cada lado e faz uma solução equilibrada.
Curiosamente, o Prius quase não pôde fazer isso, por que ele quase morreu antes de chegar à linha de produção. E a história de como isso não aconteceu, é mais interessante que o carro em si.
Para entender o nascimento do Prius, você precisa esquecer a imagem dos bairros nobres da Califórnia ou dos motoristas de Uber de São Paulo. Você precisa viajar mentalmente para a cidade de Toyota, na província de Aichi, em 1993.
A cena é contraditória. O Japão estava de ressaca. A bolha econômica especulativa havia estourado violentamente no início da década, mergulhando o país no que ficaria conhecido como a “Década Perdida”. Mas a Toyota? A Toyota estava blindada. O caixa era infinito, o Lexus LS400 havia acabado de humilhar a Mercedes-Benz em escala global, e o Toyota Production System (TPS) era a religião industrial que o resto do mundo tentava converter sem sucesso. Eles eram intocáveis e isso preocupava Eiji Toyoda.

Eiji, então presidente honorário do conselho e sobrinho do fundador Sakichi, era o homem que havia transformado a Toyota de uma fabricante de teares em uma superpotência automotiva. Ele olhava para os corredores da empresa e, além do sucesso, via também uma certa acomodação dos executivo — era algo que ele diagnosticou como “Doença da Grande Empresa”. Em uma reunião de conselho, Eiji fez uma pergunta simples, mas que caiu como uma granada na sala:
“Devemos continuar fazendo carros do jeito que fazemos agora? A Toyota sobreviverá ao século 21 se continuarmos assim?”
A frase soou alarmista para muitos executivos confortáveis em suas cadeiras de couro. Especialmente por que Eiji não estava bebendo chás aromáticos para clarividência, nem consultando oráculos xintoístas. Ele estava simplesmente atento aos relatórios de inteligência industrial e ao cenário geopolítico. A preocupação de Toyoda vinha de três fatores distintos que convergiram no início dos anos 1990 — e indicavam que o futuro do automóvel seria diferente daquele que se sonhava na época.
O primeiro fator era a Guerra do Golfo. A grande crise do petróleo já havia sido amenizada durante os anos 1980, mas a invasão do Kwait em 1990 deu início a um conflito regional que desestabilizou o preço do petróleo — que chegou a dobrar no final daquele ano — e lembrou o mundo que crises não são anunciadas. Elas acontecem em dois momentos: primeiro aos poucos, depois “de repente”. Depender 100% do petróleo era uma estratégia arriscada.

O segundo fator foi a mudança da consciência ambiental: a motivação para as primeiras regulamentações de emissões, surgidas no final dos anos 1960, foi o “Smog”, a combinação nebulosa de gases que acizentava os céus das metrópoles da época. Foi ele que provocou a adoção dos catalisadores nos anos 1980 e acelerou a adoção dos sistemas de injeção eletrônica.
Mas naquele início dos anos 1990, a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro — conhecida como Eco-92, deixou claro que o Smog era apenas um sintoma de algo maior: o mundo passava por mudanças climáticas aceleradas pela ação humana. O CO2, embora essencial para a vida na Terra, estava sendo lançado na atmosfera de forma desequilibrada, e isso afetava o clima. E, diferentemente da poluição lançada pelo escape dos carros, a filtragem do CO2 é impraticável em um veículo de passeio. A única maneira de reduzir as emissões desse composto orgânico é queimar menos combustível.
O terceiro fator era a norma Zero Emission Vehicle, do Comitê de Recursos do Ar da Califórnia (CARB, na sigla em inglês), que exigia das fabricantes a produção e venda de veículos com menos emissões em metas progressivas. Como os EUA eram o maior mercado da Toyota — e o maior mercado do planeta, na época —, ela precisava sair na frente nessa corrida, uma vez que sua imagem nos EUA foi construída com confiabilidade mecânica, mas também eficiência em termos de consumo de combustível.
Diante deste cenário, a Toyota não demorou a formalizar sua preocupação com o futuro. Assim, em outubro de 1992, meses após a Eco-92, foi lançado o Toyota Earth Charter, uma série diretrizes de boa convivência ambiental que, à primeira vista, pareciam apenas uma adequação diplomática ao espírito da época. Na prática, era um memorando interno avisando a todos os departamentos que a era da performance pura havia acabado. A partir daquela data, a eficiência ambiental não era mais um “bônus” de engenharia, mas um pilar central da estratégia corporativa.
Para tirar esta estratégia do papel, em setembro de 1993 a Toyota criou o Comitê G21 — “Global 21st Century” —, que tinha a missão de investigar e definir como deveria ser o “carro do século 21”. Liderado inicialmente por Yoshiro Kinebuchi, o conceito original que saiu das pranchetas do G21 era, essencialmente, um sedã racionalizado. Um “Super Corolla” que seria pequeno por fora e grande por dentro, com entre-eixos longo e cabine avançada, e deveria ter consumo de combustível 50% melhor ao de um Corolla da época — a meta era 20 km/l.
O plano de Kinebuchi era refinar o motor a combustão interna ao seu limite. A aposta tecnológica era a injeção direta de gasolina gerenciada eletronicamente combinada a uma transmissão CVT de alta eficiência, focando obsessivamente em redução de peso e aerodinâmica. Era uma proposta sólida, conservadora e segura, e tinha tudo para dar certo. Exceto por uma coincidência improvável — e que provou que Eiji Toyoda estava certo.
Em setembro de 1993, o recém-empossado presidente os EUA, Bill Clinton, criou o programa “Parceria para uma Nova Geração de Veículos” (ou PNGV). A “parceria” era do governo americano com as fabricantes locais: eles despejariam bilhões de dólares em subsídios para desenvolver tecnologias que tornassem um carro de passeio capaz de rodar até 80 mpg (34 km/l) até 2004. O problema é que Honda, Nissan e Toyota foram sumariamente excluídas da parceria.
Estava claro que os EUA estavam protegendo suas fabricantes da invasão japonesa — a Honda havia acabado de emplacar o Accord como o carro mais vendido dos EUA, e todas elas estavam aumentando rapidamente sua participação no mercado. A leitura da Toyota, contudo, foi outra: se GM, Ford ou Chrysler (então parceira da Mitsubishi) descobrissem como fazer um sedã de 34 km/l antes da Toyota, ela perderia um dos pilares de sua imagem no mercado americano. Eiji Toyoda estava certo: a Toyota era um dinossauro perfeitamente eficiente, aguardando um asteróide. Eles precisavam evoluir, e rápido.
No início de 1994, o projeto G21 mudou de status. A diretoria deu o sinal verde para que aquele estudo teórico se tornasse um carro de produção real, mas a diretoria percebeu que um carro desenvolvido com foco extremo na eficiência corria um risco enorme de se tornar um produto barulhento, áspero e desconfortável. Eles precisavam de alguém que olhasse para o carro como um produto final, não como um experimento científico. O projeto não poderia mais ser liderado por Kinebuchi — ele precisava de alguém com um olhar diferente. Esse alguém era Takeshi Uchiyamada.

Uchiyamada era um estranho no ninho. Tinha 47 anos e era novato em termos de liderança: jamais havia sido Chief Engineer de um carro antes. Além disso, sua especialidade técnica não era motores, nem suspensão, nem aerodinâmica. Ele vinha do setor de NVH (Noise, Vibration, and Harshness — ruído, vibração e aspereza) e, por isso, não tinha lealdade a nenhum setor da engenharia (motores vs. chassi). Ele era um generalista, um integrador de sistemas. Era o cara certo para o projeto.
O problema é que ele discordava disso. Quando o vice-presidente da Toyota, Masami Iwasaki, o chamou em sua sala para oferecer a liderança do G21, sua primeira reação foi recusar a oferta.
“Eu não posso aceitar. Eu sou um engenheiro de testes e NVH. Eu nunca desenvolvi um carro inteiro. Eu não sei como projetar uma suspensão ou desenhar um motor. Vocês precisam de um Chief Engineer de verdade.”
Ele tinha razão. Na Toyota, os Chief Engineers eram como deuses que conheciam cada parafuso de cada sistema do carro. Uchiyamada sentia que não teria autoridade técnica para comandar os veteranos de Powertrain e Chassis. Mas Iwasaki tinha uma visão que Uchiyamada não enxergava. A resposta do vice-presidente foi a definição da missão:
“Exatamente. Eu não preciso de alguém que saiba desenhar uma suspensão melhor que o departamento de Chassis. Se eu colocar um cara de motor no comando, o carro será apenas um motor. Se eu colocar um cara de chassi, será apenas um chassi. O G21 precisa de integração. Eu preciso de um gerente que faça todos esses departamentos, que se odeiam, trabalharem juntos.”
Uchiyamada foi, essencialmente, “empossado à força”: saiu da sala com o cargo, mas carregando a insegurança de quem sabe que comandaria uma equipe de engenheiros céticos e uma meta difícil. Mal sabia ele que sua primeira grande tarefa seria ainda mais difícil.
No início do segundo semestre de 1994, Uchiyamada e sua equipe estavam confiantes. Eles não haviam reinventado a roda, mas haviam otimizado cada milímetro dela. O pacote combinava o futuro motor 1.5 com injeção direta, uma nova transmissão CVT de atrito reduzido e um sistema que desligava e religava o motor em paradas de trânsito (sim, o atual stop-start). As simulações mostravam que eles atingiriam um consumo de 20 km/l — o que representava uma melhora de 50% sobre um Corolla. Na indústria automotiva, onde se mata e morre por 3% de eficiência, entregar 50% era uma realização hercúlea.
Uchiyamada entrou na sala de Akihiro Wada, o todo-poderoso Vice-Presidente Executivo de P&D, esperando um aperto de mão e a luz verde para construir os protótipos. Wada ouviu a apresentação. Olhou os gráficos. E então, com a calma de quem prepara uma surpresa perfeita, destruiu o projeto:
“Sua meta de 50% é insuficiente para o século 21. Rejeitado.”
Uchiyamada tentou argumentar com a física. Explicou que o motor a combustão interna tem um teto teórico e que, com a tecnologia atual, 50% era o limite da realidade. A resposta de Wada foi pegar o próprio relatório da equipe, apontar para uma opção que eles haviam listado como “inviável”:
“Se a abordagem convencional não entrega o dobro, então parem de insistir nela. Vocês listaram o sistema híbrido como uma possibilidade teórica. Transformem isso em realidade.”
Uchiyamada saiu daquela reunião desnorteado, e com um problema existencial. O “Super Corolla” estava morto. O prazo para o Salão de Tóquio era de apenas 12 meses. E ele, um engenheiro de acústica que nunca havia liderado um carro, agora tinha que liderar o desenvolvimento de uma tecnologia que a Toyota não dominava. Wada sabia disso, mas com o PGNV mirando quase 35 km/l, ele não estava exigindo o impossível porque era sádico, e sim por que a sobrevivência da Toyota dependia daquilo.
A ordem de Wada deixou a equipe desnorteada. Dizer “façam um híbrido” é fácil; fazer funcionar é o problema. Na época, os sistemas conhecidos eram problemáticos: os híbridos em “série” (onde o motor só carrega bateria) eram ineficientes em alta velocidade, e os híbridos “paralelos” (onde ambos movem o carro) eram complexos e davam trancos nas mudanças de motorização. A própria Toyota havia feito um protótipo híbrido em 1968 e desistido por causa da complexidade.

Ao longo daquele semestre, a equipe avaliou teoricamente nada menos que 80 layouts diferentes de transmissão. Todos foram descartados um após o outro. Eles precisavam de um “caminho do meio”, um sistema que dividisse a força de forma inteligente, sem a complexidade de dezenas de embreagens. Foi essa busca pelo “elo mecânico perdido” eles começaram a pesquisar o que já havia sido estudado até então.
No início de 1995, a equipe de transmissão fez uma viagem no tempo na biblioteca da Toyota. Enquanto tentavam inventar o futuro, o engenheiro Koichi Ogawa e sua equipe perceberam que a resposta não estava na eletrônica, mas na mecânica. Eles encontraram papers da TRW dos anos 1970 e manuais de engenharia de transmissões da década de 1940. A resposta estava lá, escondida à vista de todos: a transmissão planetária.

A transmissão planetária era o câmbio do Ford Model T e dos tanques da Segunda Guerra, mas Ogawa percebeu que, se conectasse o motor a combustão, um gerador e um motor elétrico às três partes móveis da planetária, ele não precisaria de embreagem, nem de conversor de torque, nem de correias — ele teria um câmbio continuamente variável (CVT) sem correias, apenas controlando a velocidade do gerador elétrico. Assim nasceu o conceito básico do Toyota Hybrid System (THS).
Com a concepção do THS, a equipe do G21 começou a correr contra o relógio: a Toyota tinha se comprometido a apresentar o conceito do “carro do século 21” no Salão de Tóquio em outubro daquele ano. Uchiyamada e sua equipe tinham tinham o arranjo do THS, o motor a combustão e um motor elétrico. Só faltava um detalhe fundamental: a bateria.

Para um híbrido funcionar como o planejado — recuperando energia nas frenagens e ajudando na aceleração —, você precisa de uma bateria capaz de tolerar cargas e descargas violentas em segundos. A tecnologia escolhida pela Toyota eram as baterias de Níquel-Hidreto Metálico (NiMH). Era a única química que oferecia um equilíbrio aceitável entre densidade de energia e durabilidade — era superior às baterias de chumbo-ácido e mais seguras que as baterias de íons de lítio da época.
O problema era que ninguém no mundo fabricava baterias de NiMH suficientemente grandes para um carro, com a confiabilidade necessária para produção em massa. As células experimentais superaqueciam, vazavam ou simplesmente morriam após alguns ciclos de carga rápida. A joint-venture com a Panasonic (que viria a ser a PEVE) estava trabalhando dia e noite, mas a física não colaborava. Eles não estariam prontos para outubro de 1995.

Sem baterias viáveis, a equipe recorreu ao bom e velho improviso: usar supercapacitores. Eles não armazenam muita energia, mas a Toyota não precisava disso. Só precisava fazer o carro funcionar, subir ao palco, fazer uma demonstração curta de aceleração elétrica e impressionar público e imprensa. Era inútil para o mundo real — o carro teria uma autonomia ridícula e não conseguiria sustentar velocidades de cruzeiro — mas para o Salão estava perfeito.
Foi uma “mentira funcional”. O Toyota Prius Concept apresentado no Salão de Tóquio de 1995, com sua carroceria azul e design estranho, não era um mock-up de argila. Ele andava. O sistema híbrido com a planetária estava lá, funcionando. Os detalhes? Ora, são meros detalhes.

Quando as capas foram retiradas no Makuhari Messe em outubro de 1995, a imprensa mundial aplaudiu. A Toyota prometia um consumo de 30 km/l (o dobro da média do mercado). O design era questionável, mas a tecnologia sob o capô parecia mágica. O sistema EMS (Energy Management System) gerenciava a troca de energia entre motor e rodas de forma imperceptível.
O público viu o futuro. A diretoria da Toyota viu o sucesso de marketing. Mas Uchiyamada e a equipe de engenharia, parados nos bastidores, suavam frio. Eles sabiam a verdade que o público ignorava: aquilo não era um produto viável.

Para piorar, a diretoria mudou. Em 1996, a Toyota ganhou um novo presidente: Hiroshi Okuda. Okuda era agressivo, impaciente e tinha um faro político aguçado. Ele olhou para o cronograma do G21, que previa o lançamento para o final de 1998 ou 1999, e riscou a data.
“Muito tarde. A Conferência do Clima da ONU (COP3) será em Kyoto em dezembro de 1997. O mundo inteiro estará olhando para o Japão falando sobre meio ambiente. Eu quero esse carro à venda em dezembro de 1997.”
Uchiyamada perdeu um ano inteiro de desenvolvimento em uma canetada. Em dois anos, eles precisavam fazer as baterias NiMH funcionarem sem explodir, miniaturizar os inversores e criar um software de controle que não existia. O inferno do desenvolvimento estava apenas começando.
Sob essa pressão esmagadora, a equipe correu para construir o primeiro protótipo funcional “real”, já equipado com as baterias de NiMH (Níquel-Hidreto Metálico) que estavam sendo desenvolvidas às pressas pela joint venture com a Panasonic. Em novembro de 1996, o primeiro protótipo ficou pronto. A equipe inteira se reuniu no galpão de testes. O piloto de testes entrou, ajustou o cinto e girou a chave.
Nada aconteceu. O carro não ligou. O painel não acendeu. Silêncio absoluto.
Na engenharia automotiva, quando um protótipo não liga, geralmente é um fio solto ou um fusível queimado. Mas o Prius era diferente. O problema não era mecânico; era lógico. As ECU dos diferentes sistemas (bateria, inversor, motor) não estavam conversando. O sistema de segurança da bateria cortava a força porque achava que havia um curto. O inversor não armava porque não recebia sinal do motor.
A equipe de Uchiyamada passou 49 dias consecutivos trabalhando dia e noite apenas para fazer o carro se mover. Eles reescreviam códigos de madrugada, trocavam placas de circuito pela manhã e tentavam ligar o carro à tarde. E nada. Foram quase dois meses de um carro morto ocupando o centro do laboratório, zombando da equipe de elite da Toyota.
Finalmente, no 50º dia, o carro ligou. O motor elétrico zumbiu, o motor a gasolina entrou em ação. O piloto engatou o “D” e o carro saiu do lugar. Rodou 500 metros e morreu. Apagou e se recusou a ligar novamente. A equipe teve que empurrar o protótipo revolucionário de volta para a garagem. O diagnóstico revelou o calcanhar de Aquiles do projeto: os Inversores.
O sistema híbrido exige que a corrente contínua (DC) da bateria seja convertida em corrente alternada (AC) para os motores, e vice-versa, milhares de vezes por segundo, lidando com centenas de Volts. Quem faz esse trabalho sujo são os transistores de potência, os IGBTs (Insulated Gate Bipolar Transistors).

Os IGBTs da época simplesmente não aguentavam o tranco. Eles superaqueciam e estouravam sob a carga de acelerar um carro de 1.200 kg. A Toyota estava queimando inversores como se fossem fusíveis. Cada vez que o piloto pisava fundo, um módulo de potência virava fumaça.
A equipe de Uchiyamada percebeu que não poderia comprar essa peça de fornecedores. Ninguém tinha IGBTs robustos o suficiente para uso automotivo pesado. A Toyota teve que fabricar seus próprios semicondutores — foi preciso construir uma fábrica de eletrônicos dentro da fábrica de carros para fazer transistores capazes de sobreviver ao inferno térmico de um sistema híbrido propulsor.
Àquela altura, o calendário indicava o início de 1997. O lançamento seria em dezembro. E o carro mal conseguia dar uma volta na pista de testes sem se autodestruir.
Faltando menos de 10 meses para o prazo final — a Conferência de Kyoto — a Toyota tinha resolvido o problema dos IGBTs fabricando seus próprios semicondutores e o carro já conseguia andar sem queimar circuitos. Mas “andar” é uma palavra forte para esta fase do projeto. O protótipo era uma experiência terrível.
O sistema híbrido não tem embreagem nem conversor de torque, então a conexão é mecânica, direta. Metal contra metal na engrenagem planetária. Quando o motorista pisava no acelerador, o motor elétrico reagia com o torque máximo imediato. Meio segundo depois, a ECU decidia ligar o motor a gasolina para ajudar. O motor 1.5 Atkinson entrava em ação dando um tranco forte.
Nas frenagens, era ainda pior. O sistema tentava recuperar energia (freio regenerativo), mas quando a velocidade caía e o freio hidráulico precisava assumir, a transição era desajeitada. O carro ora freava demais, ora parecia solto. Os pilotos de teste da Toyota saíam dos carros balançando a cabeça.
Enquanto a equipe de calibração lutava para suavizar os trancos via software, uma batalha ainda maior acontecia no porta-malas: a bateria. A joint venture com a Panasonic (PEVE) entregou as células de Níquel-Hidreto Metálico que eram, essencialmente, pilhas grandes, parecidas com as pilhas “D”, soldadas em bastões. O problema desse tipo de bateria é que, se carregar demais (100%), ela superaquece e degrada rápido; se descarregar demais (0%) ela inverte a polaridade e morre. Se não for ciclada corretamente, ela degrada e perde capacidade de armazenamento.

A Toyota sabia que se a bateria precisasse ser trocada a cada dois ou três anos (como a do seu celular ou laptop), o projeto seria um fracasso comercial e ambiental. A bateria precisava durar a vida útil do carro. A solução foi uma obra-prima de gerenciamento de software que define o Prius até hoje: a ciclagem rasa (Shallow Cycling).
Resumidamente, os engenheiros programaram a ECU da bateria para ser paranóica. O sistema jamais permite que a carga real suba acima de 80% ou caia abaixo de 40% (os valores exatos variam conforme a geração, mas o princípio é esse). O painel do carro mente para você. Quando ele mostra “Bateria Cheia”, ela está, na verdade, em 80%. Quando mostra “Vazia”, ainda tem 40%. Ao manter a bateria sempre nesse “sweet spot” térmico e químico, a Toyota conseguiu fazer uma tecnologia instável durar 10, 15, 20 anos.
Em agosto de 1997, a quatro meses do lançamento, a calibração chegou ao nível aceitável para colocar o carro em produção. O problema agora era fabricá-lo em grande volume. Como montar um carro que tem dois motores, uma bateria de alta tensão e quilômetros de fiação laranja em uma linha de produção comum? Não havia tempo para automação total. Os primeiros Prius foram montados com um nível absurdo de trabalho manual. Era quase uma manufatura. Engenheiros de processo montavam as baterias com luvas de alta tensão, checando conexões manualmente uma a uma.
Em dezembro de 1997, contra todas as probabilidades, contra a física, contra o bom senso financeiro e contra o cronograma, o primeiro Toyota Prius produzido em série (código NHW10) saiu da linha de produção.
Em 10 de dezembro de 1997, um dia antes da assinatura do histórico Protocolo de Kyoto, o Toyota Prius começou a ser vendido no Japão. O slogan era “Just in time for the 21st Century” (“Bem a tempo do Século 21”, mas também um trocadilho com o modelo administrativo “just in time” do sistema de produção da Toyota — TPS ou “toyotismo”).

A verdadeira surpresa no lançamento não foi o slogan, nem os 28 km/l, e sim seu preço. O carro chegou às lojas custando ¥2.15 milhões (equivalente a US$ 16.500, na época) enquanto um Corolla custava cerca de ¥1.5 milhão (US$ 11.500, na época). Para o consumidor comum parecia caro — ainda que a diferença compensasse pelo consumo menor do Prius. Para os executivos da concorrência, contudo, aquele preço era um mistério.

Ao somar o custo do motor elétrico, do gerador, do pacote de baterias NiMH, dos inversores com semicondutores proprietários e da transmissão planetária, a conta não fechava. Estima-se que o custo de produção de cada Prius da primeira geração fosse o dobro do preço de venda. A cada Prius vendido a fabricante perdia, segundo estimativas de analistas de mercado, entre US$ 10.000 e US$ 30.000 — um caso evidente de loss leading para testar a tecnologia no mundo real e criar uma barreira de entrada intransponível para os rivais.

É por isso também que esta primeira geração (NHW10) foi vendida exclusivamente no Japão. A Toyota sabia que o carro ainda era, na prática, um “beta público”. Se as baterias começassem a queimar ou o carro começasse a fritar inversores, seria melhor que isso acontecesse perto da fábrica.
Para garantir que o experimento não virasse um desastre de PR, a Toyota montou uma “Força Tarefa de Qualidade” com uma única regra clara: se um Prius acendesse uma luz de alerta em qualquer lugar do Japão, a concessionária não deveria “tentar consertar”. Eles ligavam para a sede e os engenheiros da equipe de desenvolvimento viajavam pessoalmente para diagnosticar o carro. O cliente recebia um carro reserva de luxo, mil desculpas e, dias depois, seu Prius devolvido com componentes atualizados — e todos os dados do carro coletados pela Toyota. E esses dados foram providenciais, por que revelaram um problema sério do NHW10: ele era excelente para o trânsito travado de Tóquio, mas inadequado para o resto do mundo.
Entre 1997 e 2000, enquanto o Prius era testado pelo Japão, a engenharia da Toyota fazia a adaptação para o mercado global. O maior desafio dessa etapa foi revelado pelos dados coletados no Japão: o sistema híbrido original foi calibrado para o “anda e para” das cidades japonesas, com regeneração constante e baixa carga térmica. Os EUA, contudo, são o oposto. Lá, o carro precisa entrar em uma Interstate, acelerar até 120 km/h (75 mph) e manter essa velocidade por horas, às vezes sob o sol escaldante da Califórnia ou do deserto.
Nos testes de validação, contudo, ficou claro que, para o mercado americano, o motor 1.5 Atkinson de 58 cv era fraco demais e precisaria operar em regimes elevados de rotação para manter 120 km/h — o que acabaria com a economia de combustível e com o conforto de rodagem. Mas isso seria apenas a parte mais perceptível. A falta de potência faria o motor elétrico tentar compensar a entrega, descarregando e superaquecendo a bateria.

A partir destes testes, nasceu o NHW11, o Prius de exportação. Ele ficou pronto em 2000, e estreou com o facelift do Prius original. Sob a carroceria, contudo, era um carro significativamente diferente. Começando pelo motor, que recebeu um comando variável de válvulas (VVT-i), fazendo a potência aumentar de 58 cv para 70 cv e permitindo ao carro viajar em velocidades rodoviárias. A bateria também foi atualizada: um pacote menor, mais leve e com arrefecimento otimizado — isso, claro, além da reprogramação da ECU.

O NHW11 desembarcou nos EUA em 2000 com uma estratégia de marketing cirúrgica. A Toyota sabia que não venderia o carro para o cliente convencional da marca. Quem compraria o Prius eram os geeks, os “early adopters”. Ele era um carro econômico como no Japão, mas nos EUA ele era também um “gadget” sobre rodas. Dirigir um Prius em 2001, no Vale do Silício, era como ter o iPhone 18 antes de todo mundo.

Houve ainda um segundo perfil de comprador: o cliente com consciência ambiental. Não apenas por que ele queria economizar, mas também por que ele queria mostrar ao mundo que esta consciente sobre a preservação de recursos e emissões. Foi o começo de um fenômeno cultural tão improvável quanto duradouro. Leonardo DiCaprio e Cameron Diaz começaram a aparecer nas páginas de paparazzi dirigindo o Prius. Logo o carro deixou de ser uma excentricidade de engenharia para se tornar um acessório de moda intelectual e política.

A Toyota pretendia vender apenas 1.000 unidades do Prius por ano. Em seis anos, vendeu 123.000 carros — 1.700 por mês. Em junho de 2003, a primeira geração do Prius cumpria sua missão: provou que a tecnologia funcionava onde quer que fosse usada. Preparou o e garantiu a segurança para que, em 2003, a verdadeira revolução chegasse com a segunda geração — desta vez sem perder dinheiro.
Durante quase três décadas, analistas e entusiastas rotularam o híbrido como uma “tecnologia de transição”. A narrativa era clara: o Prius seria apenas uma ponte temporária, um mal necessário até o dia em que baterias perfeitas e carregadores onipresentes tornassem o motor a combustão obsoleto. A ironia final da saga de Eiji Toyoda, Akihiro Wada e Takeshi Uchiyamada é que, 30 anos depois, a “ponte” se revelou o terreno mais sólido de todos.
O Toyota Prius se consolidou como o meio-termo viável para o mundo moderno. Enquanto a indústria mergulhava na corrida do ouro dos elétricos puros (BEV), enfrentando gargalos de mineração de lítio, redes de energia sobrecarregadas, custos proibitivos e, principalmente, falta de interesse do público, o sistema híbrido da Toyota permaneceu como a solução sustentável baseada na realidade.
Sob o ponto de vista analítico, o Prius consolidou a lógica de alocação de recursos da Toyota, a regra do 1:6:90: com a quantidade de matéria-prima necessária para construir a bateria gigante de um carro 100% elétrico, é possível fabricar baterias para seis híbridos plug-in ou noventa híbridos convencionais como o Prius original.

Ao escolher o caminho híbrido, o Prius democratizou a eficiência. Ele permitiu que milhões de motoristas reduzissem seu consumo pela metade hoje, sem exigir que mudassem seu estilo de vida, sem exigir reformas na rede elétrica das cidades e sem depender de subsídios estatais eternos para serem comprados. O Prius provou que a revolução não precisa ser uma ruptura dolorosa. Ele entregou o que o Projeto G21 prometeu lá em 1993: um carro que usa a tecnologia para otimizar o uso de recursos naturais.
O Prius matou o argumento de que eficiência exige sacrifício. Ele financiou a cadeia de suprimentos de eletrificação global, pagou pelo desenvolvimento dos motores elétricos e inversores que hoje equipam seus rivais, e fez tudo isso mantendo a liberdade de ir e vir que define o automóvel.

No fim, o “carro do século 21” que Eiji Toyoda tanto temia não construir não era uma nave espacial elétrica e autônoma. Era apenas um sedã inteligente, que sabia quando desligar o motor e quando acelerar, equilibrando-se perfeitamente na linha tênue entre o idealismo ambiental, a realidade econômica e a vontade do motorista.


