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Car Culture

Carros que mudaram o mundo #48: o BMW X5

Até o início dos anos 1990, o SUV era um utilitário adaptado ao asfalto — não o contrário. Quase todos seguiam a mesma receita: chassi de longarina, suspensões feitas para articular em trilhas, direção lenta e uma dinâmica que exigia paciência do motorista. Eram veículos robustos, versáteis e honestos em suas prioridades, mas passavam longe de entregar uma condução prazerosa.

Mesmo os modelos que tentavam romper com a arquitetura tradicional ainda carregavam esse DNA. O Jeep Grand Cherokee e o Cherokee XJ já utilizavam construção monobloco, mas mantinham suspensões voltadas ao uso fora de estrada. Eram mais civilizados que os utilitários de chassi separado, mas ainda deviam a precisão, o controle de carroceria e o feedback de direção que se esperava de um automóvel de passeio.

No mercado de luxo, o Mercedes-Benz Classe M era o nome da vez. O ML chegou às ruas em 1997, mas seu desenvolvimento correu em paralelo ao do X5 — e não como um alvo para a BMW. O Mercedes seguia a cartilha tradicional: construção body-on-frame, posição de dirigir elevada e a robustez como prioridade absoluta. Essa escolha da Mercedes acabou sendo o empurrão que a BMW precisava para seguir o caminho oposto, confirmando que o espaço para um SUV focado em asfalto estava livre.

Esse era o cenário quando o mercado americano mudou de vez. O SUV deixou de ser o segundo carro da casa para virar o protagonista da garagem. As famílias migravam para o formato em busca de versatilidade, mas também pela sensação de segurança e pela posição de dirigir dominante. Havia a crença — fundada ou não — de que um veículo maior era simplesmente mais adequado à vida atual.

Esse cenário incomodava a BMW. A marca tinha sua identidade fincada no equilíbrio de massas, na tração traseira e na conexão direta com o motorista. O prazer de dirigir não era um item opcional; era o centro de tudo. Um SUV — alto, pesado e cheio de limitações dinâmicas — parecia o oposto do que a empresa representava.

Mas uma coisa era certa: o SUV havia vencido. Faltava, porém, um utilitário que se comportasse como um BMW. O mercado carecia de um veículo que mantivesse a estatura alta sem cobrar o preço da imprecisão dos utilitários comuns. Foi nesse vácuo — entre a função bruta e a dinâmica envolvente — que a BMW encontrou sua oportunidade.


Quando o debate sobre um utilitário BMW ganhou força, no início dos anos 1990, a reação interna foi mais filosófica do que técnica. A BMW já sabia como responder à maior crítica feita aos seus carros: a incapacidade de lidar com a neve. Desde os anos 1980, os modelos 325iX e 525iX mostravam que a tração integral podia conviver com o prazer de dirigir.

Os modelos iX entregavam o prometido. Mantinham o equilíbrio da marca com a segurança extra em pisos escorregadios, resolvendo o medo europeu de dirigir um sedã de tração traseira na neve. A engenharia tinha a resposta pronta, mas o sucesso comercial ainda estava longe.

O problema é que os modelos iX focavam apenas no inverno, ignorando a mudança de hábito que varria os Estados Unidos. Para o americano, a neve era só um detalhe. O que estava mudando era o papel do carro dentro da rotina das famílias. A filial norte-americana da BMW foi a primeira a entender o fenômeno. Ao analisar os hábitos de seus clientes, notaram um padrão: muitos donos de BMW mantinham um Ford Explorer ou um Jeep Grand Cherokee na garagem. O utilitário não substituía o sedã; ele o complementava. O BMW era o carro “para dirigir”, enquanto o SUV servia para todo o resto.

O BMW 325iX

Esse dado mostrava que o SUV não estava se popularizando por que os sedãs não eram bons o bastante, mas por que entregavam algo diferente: a posição de dirigir alta, a promessa de versatilidade e a prontidão para qualquer imprevisto. No fim, o que importava não era a tração nas quatro rodas, mas o conforto psicológico. O SUV passava a sensação de que o motorista estava sempre preparado, mesmo sem nunca sair do asfalto.

Para a BMW isso era um novo problema. Adaptar a tração integral a um sedã, como nos modelos iX, já não era o suficiente. O público queria mais do que aderência; buscava um formato de carro diferente. O desafio era criar um BMW capaz de ser o carro principal da família, mas que preservasse a dinâmica que definia a marca.

Foi nesse ponto que o debate deixou de ser puramente técnico e passou a ser estratégico. A questão não era a capacidade da BMW de fazer um carro para a neve — isso já estava provado. O desafio real era transportar o comportamento dinâmico da marca para um formato que, até então, parecia negar tudo o que um BMW deveria ser.

Esse insight — nascido da observação do mercado americano, não de uma demanda explícita — foi o ponto de partida para algo que a BMW nunca havia feito antes. E que, uma vez feito, mudaria não apenas o portfólio da marca, mas a própria definição do que um SUV poderia ser.


Se o caminho para um SUV fazia sentido comercial, dentro da BMW a ideia soava como heresia. O conflito era grande: a marca nunca havia produzido um utilitário e tinha construído sua identidade em oposição ao que esses veículos representavam. O problema ia além do peso ou do centro de gravidade; era a perda da precisão e do controle fino que os engenheiros levaram décadas para aperfeiçoar.

Havia também um temor estratégico. Com a compra do Rover Group, a BMW controlava a Land Rover, marca ligada ao universo off-road. Um SUV com a marca bávara poderia canibalizar o Range Rover ou diluir a imagem esportiva da BMW. Esse receio falou mais alto em certo momento e o projeto foi congelado.

A relação com a Land Rover, no entanto, não se limitou ao receio de sobreposição de mercado. Durante o período em que a marca britânica pertenceu à BMW, houve uma troca técnica concreta entre os times de engenharia. O X5 E53 incorporou soluções desenvolvidas em projetos da Land Rover, como o sistema de Hill Descent Control (HDC) e lógicas de gerenciamento de tração, derivadas do desenvolvimento do então futuro Range Rover L322. O botão do HDC no console central era, inclusive, um símbolo físico dessa colaboração técnica. Essa herança não moldou o caráter do X5, mas contribuiu para sua funcionalidade, especialmente em situações de baixa aderência.

Paradoxalmente, a engenharia manteve a ideia viva. Havia um incômodo entre os técnicos com a noção de que seus carros eram limitados. A frase que circulava nos corredores era direta: “Você não vai esquiar no seu BMW?” Para uma empresa orgulhosa de sua dinâmica, essa limitação era inaceitável. Mas ainda restava a pergunta fundamental: como transformar um SUV em um BMW?

Curiosamente, a resposta não veio de Munique, mas da Califórnia.

A BMW já mantinha, desde os anos 1980, uma relação próxima com a Designworks, seu estúdio de design baseado na costa oeste dos EUA. Diferentemente do centro de design europeu, a Designworks estava imersa no mercado que mais consumia SUV no planeta — e entendia o apelo cultural desses veículos melhor do que qualquer relatório interno.

Com o projeto de volta à mesa, a BMW transferiu o desafio para a Designworks. O trabalho foi entregue a Chris Chapman, designer vindo da Isuzu que trazia a bagagem de quem entendia de utilitários — algo raro entre os puristas de Munique. Enquanto os alemães tentavam encolher o carro para o tamanho de um Kia Sportage, Chapman insistiu: se era para fazer um SUV, ele precisava de porte. Ele sabia que o mercado americano não respeitaria um BMW nanico. O que ele desenhou não foi um sedã esticado, mas um utilitário de ombros largos e postura firme.

Essa visão foi decisiva. Chapman foi direto: um SUV menor que um Jeep Grand Cherokee não fazia sentido. O formato exigia presença, proporção e massa visual, ou o projeto não teria credibilidade nos EUA. O desenho que surgiu naquelas semanas já trazia quase tudo o que chegaria à linha de produção: a linha lateral forte, o pilar C robusto e a postura elevada, porém controlada. Era um SUV assumido, mas com a identidade BMW aplicada a um corpo até então estranho à marca.

Ao ver os primeiros esboços, Chris Bangle, chefe de design da marca, entendeu que não se tratava de adaptar a linguagem da BMW a um SUV, mas de criar uma nova interpretação para a empresa. Frank Stephenson também teve um papel fundamental. Ele traduziu o conceito de Chapman em uma silhueta final viável em tempo recorde. Sob pressão de Bangle, o trabalho de Stephenson foi executivo e preciso, consolidando a forma definitiva do carro.

Mesmo assim, o projeto ainda passou um tempo engavetado enquanto a BMW avaliava o risco. Quando finalmente saiu do papel, veio com uma nova categoria: o Sports Activity Vehicle (SAV). Mais do que marketing, era uma tentativa de explicar um veículo que não se encaixava no que existia. Alto para ser um carro, dinâmico demais para ser um SUV comum. A partir dali, a dúvida não era mais se a BMW deveria fazer um SUV, mas se conseguiria fazê-lo sem perder sua essência. O argumento final viria da engenharia.


Quando a BMW decidiu levar o projeto adiante pela segunda vez, a ordem era clara: o veículo precisava rodar como um BMW — não “apesar de” ser um SUV, mas por causa de sua engenharia. Para isso, atacaram a arquitetura. A equipe ignorou a tradição dos jipes e optou pela construção monobloco com uma obsessão: baixar o centro de gravidade. Motor, transmissão e diferenciais foram posicionados o mais baixo possível. Essa decisão criou um efeito visual particular: o X5 parecia um carro montado sobre outro. Da metade das rodas para baixo, ficava a massa mecânica concentrada; para cima, a cabine.

A suspensão seguiu a mesma lógica. Em vez de articulação extrema para o fora de estrada, o X5 adotou um acerto de asfalto. A suspensão traseira era praticamente a mesma do Série 5 Touring (E39), com bolsas pneumáticas para autonivelamento. A tração integral permanente mantinha um viés traseiro fixo (62% do torque atrás e 38% na frente). O objetivo era garantir que, ao acelerar na saída de uma curva, o carro empurrasse como um sedã, em vez de “puxar” a frente como um utilitário pesado.

Ali o conceito se provava. O X5 abria mão da vocação para trilhas para entregar o que nenhum SUV da época oferecia: estabilidade em alta velocidade e respostas previsíveis ao volante. Essa clareza técnica destravou o projeto internamente. O medo de canibalizar a Land Rover sumiu quando ficou óbvio que os produtos falavam línguas diferentes. O X5 não era um jipe de expedição; era um carro alto, rápido e controlado.

Com a engenharia definida, o design da Designworks passou a soar lógico. A decisão de fabricar o modelo em Spartanburg, nos EUA, reforçava o foco no mercado que gerou o insight inicial. Até o nome Sports Activity Vehicle ganhou coerência: não era marketing para esconder o que o carro era, mas uma explicação para algo novo.

Quando o X5 estreou em 1999, não parecia um experimento, mas um produto maduro. Alto demais para ser um carro, ágil demais para ser um SUV convencional. Ele funcionava porque a BMW finalmente respondeu ao seu dilema: o segredo não era se deveria fazer um SUV, mas como fazê-lo sem abrir mão da própria identidade.


Quando o BMW X5 chegou ao mercado em 1999, não trazia promessas revolucionárias ou discursos sobre reinventar o automóvel. A marca preferiu uma apresentação discreta, focada no que sempre dominou: engenharia sólida e comportamento dinâmico. O termo Sports Activity Vehicle surgiu mais como uma definição técnica do que como um golpe de marketing.

Produzido em Spartanburg, na Carolina do Sul, o X5 focava no mercado americano, que já tinha transformado os SUVs no centro de sua cultura. No entanto, o carro não se encaixava nas categorias da época. Ele não tinha a vocação off-road de um Land Rover, nem o isolamento de um Mercedes ML. Em vez disso, entregava algo inédito: um utilitário que podia ser conduzido com a confiança e a precisão de um sedã esportivo.

Essa diferença foi notada de imediato. Nos primeiros testes, a imprensa destacou a direção direta, o controle de carroceria e uma coesão dinâmica inexistente em outros SUVs do período. O X5 não era “bom para um utilitário”; ele era bom de guiar, sem ressalvas. O mercado respondeu rápido. O modelo ajudou a redefinir o consumidor de SUVs de luxo, atraindo compradores que valorizavam o prazer ao dirigir. O utilitário deixava de ser uma escolha por necessidade e passava a ser uma opção desejável.

O efeito atingiu todo o setor. Quando o X5 provou que havia demanda por um SUV focado em dinâmica, o segmento se moveu. O Porsche Cayenne, lançado poucos anos depois, foi uma resposta direta a esse novo cenário, forçando marcas que tratavam SUVs como meras ferramentas de carga a reverem seus portfólios. O recado era claro: tamanho e conforto não bastavam; o carro precisava dirigir bem.

Dentro da BMW, o impacto foi definitivo. O X5 deixou de ser um experimento para se tornar um pilar estratégico. Seu sucesso abriu caminho para os modelos X3, X1, X6 e as futuras versões M, que levaram o conceito ao limite. O SUV deixou de ser uma exceção e virou parte fundamental da identidade da marca.

Olhando hoje, o sucesso do X5 parece óbvio, mas no fim dos anos 1990 era uma aposta incerta. O mercado testemunhou o nascimento de um novo arquétipo: um utilitário que não tinha vergonha de seu porte por que ele oferecia a experiência de condução da marca. O X5 não criou o SUV de luxo, mas mostrou que ele poderia ser usado como um carro comum, e não apenas como um utilitário sofisticado.


O maior legado do BMW X5 não está apenas nas vendas ou nos recordes, mas na mudança de referência que impôs ao mercado. Depois dele, um SUV de luxo já não podia ser avaliado apenas pelo conforto ou pela capacidade fora de estrada; ele passou a ser cobrado pelo comportamento no asfalto.

Essa mudança alterou a lógica do segmento. O Jeep Wagoneer, o Range Rover e o Mercedes ML chegaram primeiro, e os Jeep Cherokee e Grand Cherokee usavam monobloco antes do X5, mas todos eles ainda eram carros off-road que adaptados para as ruas. Depois do X5, o mercado aceitou que um SUV não precisava necessariamente ter capacidade fora de estrada. Tanto a Jeep quanto a Mercedes — que se uniram nessa mesma época — acabaram seguindo o caminho aberto pelo X5.

Dentro da BMW, o impacto foi profundo. O X5 não apenas viabilizou a família X, mas redefiniu o que significava ser um BMW no século XXI. A ideia de que o prazer de dirigir dependia exclusivamente de um sedã baixo deixou de ser absoluta. Curiosamente, as discussões que cercaram o nascimento do X5 permanecem atuais: até que ponto um SUV pode crescer antes de perder seu caráter? Onde termina o carro e começa o utilitário? São perguntas que o próprio modelo continua tentando responder a cada geração.

BMW AG, For press and Social Media, Gudrun Muschalla

Talvez esse seja o sinal mais claro de seu impacto. O X5 não resolveu o dilema entre esportividade e versatilidade — ele o tornou permanente. Ao fazer isso, forçou a indústria a encarar a mesma pergunta que a BMW se fez nos anos 1990: como adaptar o automóvel às novas expectativas sem abrir mão do que o define. Vinte e cinco anos depois, o fato de essa pergunta ainda ser relevante é a prova de que o X5 mudou o mercado.


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