na historia do automovel certos modelos desempenham papeis tao decisivos que transcendem seu estado de veiculo para se tornar artefatos historicos espelhos de seu tempo simbolos socio economicos e culturais em forma de aço borracha e fogo o austin seven lançado em 1922 e um desses casos raros nao e apenas um veiculo e uma ideia tornada acessivel uma visao de mundo sobre quatro rodas e um simbolo de sua epoca o seven surgiu num momento de transiçao e incerteza o reino unido enfrentava uma profunda crise economica e social o conflito havia drenado recursos ceifado milhoes de vidas e abalado a estrutura produtiva do pais com o fim da guerra em 1918 vieram a desmobilizaçao militar o aumento do desemprego — que ultrapassava 2 milhoes de pessoas em certos meses de 1921 — e uma espiral inflacionaria que corroia o poder de compra da classe media ao mesmo tempo o setor industrial precisava se reinventar as fabricas que antes produziam armamentos agora buscavam novos mercados para garantir sua sobrevivencia [caption id= attachment_382683 align= aligncenter width= 995 ] o big ben e a trafalgar square em 1920 da para contar os carros[/caption] o automovel ate entao um privilegio de aristocratas e industriais abastados parecia inalcançavel para a classe media emergente — especialmente naquele momento os carros britanicos ainda seguiam o paradigma pre guerra grandes caros luxuosos e em sua maioria montados artesanalmente marcas como daimler napier sunbeam e rolls royce atendiam a uma elite que via o automovel como simbolo de status — nao como instrumento cotidiano de transporte o conceito de carro popular ainda era estranho naquele reino unido que so conhecia a distancia o sucesso retumbante do ford t nos eua quem colocou o automovel no imaginario dos trabalhadores britanicos — e mais tarde dos demais europeus — foi uma pequena fabrica inglesa situada em longbridge liderada por um engenheiro tao meticuloso quanto inquieto chamado herbert austin culoso e inquieto herbert austin a ideia de um carro do povo nascido em 1866 em little missenden no condado de buckinghamshire herbert austin construiu sua carreira em meio a efervescencia tecnica do final do seculo xix trabalhou no setor de engenharia na australia teve passagem pela wolseley e em 1905 fundou sua propria empresa a austin motor company ate o inicio da guerra a austin fazia automoveis de medio porte com relativo sucesso mas durante o conflito se viu forçada a participar do esforço de guerra produzindo armas e veiculos militares com mais de 20 000 trabalhadores empregados [caption id= attachment_382675 align= aligncenter width= 1089 ] herbert austin em seu escritorio[/caption] com o fim da guerra porem o retorno a produçao civil foi problematico os carros da austin eram ainda caros demais para o consumidor medio e a empresa enfrentava dificuldades financeiras foi nesse momento que herbert austin entao com mais de 50 anos decidiu apostar num projeto arriscado criar um carro pequeno barato eficiente e confiavel que pudesse competir com a motocicleta com sidecar — o principal meio de transporte das classes trabalhadoras convencido do potencial sucesso daquele projeto austin chegou a investir recursos pessoais em sua execuçao ele chegou a hipotecar sua para bancar o projeto e mais contratou stanley edge um jovem projetista de apenas 18 anos para ajuda lo a projetar o novo carro a decisao vista com desconfiança na epoca mostrou se acertada foi na mesa da casa de edge com papel manteiga lapis e uma regua t que nasceram os primeiros traços do austin seven ao mirar num segmento ainda inexistente no mercado britanico — o do carro realmente popular — austin nao apenas salvou sua empresa da falencia ele antecipou uma revoluçao silenciosa ao contrario dos grandes automoveis aristocraticos o seven nasceria para atender o pequeno comerciante o operario qualificado o funcionario publico e todos aqueles para quem o carro era ate entao um sonho inalcançavel a concepçao do austin seven foi um exercicio de engenharia ninguem havia feito um carro como aquele ate entao nao era um mundo onde bastaria comprar um ford t e copia lo por engenharia reversa o ford so foi possivel pois nasceu nos eua um pais populoso e com economia pujante o reino unido era bem diferente o projeto precisava inventar uma nova forma de fazer carros naquele pais considerando as limitaçoes economicas do momento sem perder a visao de austin sobre o futuro do transporte austin sabia que sua empresa so conseguiria sobreviver se ele rompesse o paradigma de que os carros eram um item de luxo nao era algo tao idealista quanto o ford t a revoluçao da qual austin precisava significava uma garantia para seu proprio futuro a pouca idade de stanley edge era justamente o que austin precisava sem experiencia pratica mas com uma visao nova e ate ingenua que todo jovem profissional traz consigo edge traduziu perfeitamente as ideias de austin para seu novo carro o projeto priorizou a leveza construçao simplificada e economia de materiais algo que permitiria que ele fosse produzido em larga escala sem um investimento suntuoso — algo impossivel para austin na epoca a leveza tambem permitiria o uso de um motor modesto de quatro cilindros e apenas 747 cm³ de deslocamento com arrefecimento liquido e 10 cv a 2 400 rpm como comparaçao o ford t tinha um motor de 2 9 litros e 20 cv — era um tanto ineficiente se considerarmos que ele tem um deslocamento quatro vezes maior que o austin para atingir o dobro da potencia apenas alem disso o austin tinha apenas 360 kg e por isso os 10 cv eram suficientes para leva lo aos 80 km/h como todo carro europeu da epoca ele foi batizado com o numero de sua potencia fiscal 7 hp ou seven [caption id= attachment_382676 align= aligncenter width= 1444 ] herbert austin a bordo do primeiro seven[/caption] a leveza foi obtida pelo uso de um chassi simplificado com duas longarinas paralelas e travessas simples era barato de se fazer facil de montar e suficientemente rigido a suspensao usava feixes de mola semi elipticas nos dois eixos ideal para as estradas de terra e pedras dos suburbios e das zonas rurais do reino unido naquele tempo o austin seven era tambem um carro compacto 1 90 m de entre eixos apenas e as vezes menos de 3 metros de comprimento isso fazia com que ele fosse agil e facil de estacionar mas seu maior trunfo sem duvida era a economia com um motor tao pequeno seu consumo era frugal e permitia rodar ate 25 km/l — um numero impressionante ate hoje [caption id= attachment_382677 align= aligncenter width= 2560 ] o austin seven saloon[/caption] os atributos do seven funcionaram logo no primeiro ano completo de produçao em 1923 a austin vendeu cerca de 2 500 unidades — um numero timido mas promissor para um carro totalmente novo e inovador aos poucos a medida em que as familias começaram a considerar a possiblidade de ter um carro o seven começou a ganhar traçao no mercado e em 1925 a produçao ja passava das 8 000 unidades anuais a medida em que o carro se popularizava a austin lançava novas carrocerias para ele no total foram seis tipos de carroceria — seda coupe roadster sport van e tourer — cada uma com variaçoes derivadas como o seven ulster que era um sport sem portas e sem para brisa [caption id= attachment_382678 align= aligncenter width= 2560 ] o austin seven nippy uma das versoes esportivas do modelo[/caption] a parti dali o crescimento foi exponencial em 1927 a produçao anual passou das 14 000 unidades impulsionada tambem pelo aumento das versoes oferecidas — saloons fechados vans comerciais e variantes com acabamento mais refinado dois anos depois a produçao atingiu o auge de 24 000 unidades anuais — um volume jamais visto na industria europeia ate entao em seus primeiros dez anos havia mais de 150 000 seven nas ruas do reino unido mas ele nao pararia ali a invençao do carro global mais que um carro barato ele era uma combinaçao de soluçoes de engenharia adequadas a realidade socio economica e cultural da europa na epoca como era simples de fazer ele tambem era simples de se replicar sendo assim a austin começou a licenciar a produçao do seven a fabricantes estrangeiros o primeiro deles foi a bmw na alemanha [caption id= attachment_382671 align= aligncenter width= 1280 ] austin seven alemao o bmw dixi[/caption] o tratado de versalhes de 1919 havia proibido a produçao de avioes o que teve um impacto profundo na bmw que era uma das principais fabricantes de motores aeronauticos da alemanha desesperada em busca de uma soluçao para nao quebrar a fabricante viu um novo começo no projeto do austin seven em 1928 nasceu o bmw dixi 3/15 ps uma versao alema licenciada do seven o numero 3/15 referia se a potencia fiscal 3 cv e real 15 hp segundo o sistema de calculo alemao diferente do britanico foi o primeiro carro de passeio da bmw e mais do que isso foi o embriao de uma marca que decadas depois se tornaria simbolo do puro prazer de dirigir na frança o personagem chave foi lucien rosengart — engenheiro industriario e visionario dono de uma empresa que produzia componentes para a citroen e a peugeot rosengart acreditava no futuro do automovel pequeno barato e confiavel licenciou o projeto da austin em 1928 e criou o lr2 uma versao ligeiramente adaptada ao gosto frances com acabamento mais refinado e motor ajustado para o transito urbano de paris a rosengart logo se tornaria um dos primeiros passos da industria francesa rumo a popularizaçao automotiva anos antes do surgimento do iconico citroen 2cv [caption id= attachment_382672 align= aligncenter width= 2560 ] austin seven frances o rosengart lr2[/caption] nos eua a historia foi diferente mas igualmente reveladora o pais ja tinha sua revoluçao automobilistica em andamento impulsionada pelo ford t e suas linhas de montagem quase coreografadas ainda assim houve espaço para um seven americanizado a american austin car company fundada em 1929 na pensilvania produziu versoes licenciadas do modelo britanico rebatizado como american austin e depois american bantam o carro ganhou formas mais arredondadas e acabamento levemente art deco tipico do gosto norte americano na epoca e embora suas vendas nunca tenham alcançado numeros expressivos o legado seria notavel foi sobre o chassi do american bantam que no final dos anos 1930 surgiria o projeto militar que originaria o primeiro jeep de guerra [caption id= attachment_382673 align= aligncenter width= 1800 ] o austin seven americano com cara art deco o american bantam[/caption] ate mesmo o japao foi influenciado pelo seven com uma industria nascente em um pais predominantemente rural e com pouquissimos carros o seven foi praticamente copiado pela kwaishinsha motorcar works no projeto que se tornaria o dat type 11 um mini carro leve simples e facil de manter o dat se tornaria uma marca apos a compra pela nissan e daria origem aos datsun [caption id= attachment_382674 align= aligncenter width= 1024 ] o austin seven no japao o dat sun type 11[/caption] estes desdobramentos internacionais do austin seven contam sozinhos sua importancia foi um carro que muito mais que motorizar seu pais de origem ele tambem ajudou cada pais onde foi fabricado a formar sua cultura automobilistica e ensinou suas montadoras a fabricar adaptar e simplificar para obter um produto acessivel e verdadeiramente popular ele praticamente criou o conceito de produçao sob licença antecipando um modelo de globalizaçao automotiva que so se tornaria comum decadas mais tarde a ford pode ter mostrado ao mundo como se faz milhoes de carros iguais; mas o seven mostrou que um carro pode ser feito em diferentes paises e ter diferentes sotaques sem perder sua essencia o nascimento da cultura automotiva se a missao original do austin seven era democratizar o automovel sua maior façanha talvez tenha sido despertar uma cultura a simplicidade de seu projeto em vez de limitar sua funçao abriu portas leve barato robusto e de mecanica acessivel o seven tornou se algo alem de um veiculo — tornou se um convite um convite a experimentaçao a criatividade a expressao pessoal atraves da engenharia no reino unido dos anos 1930 surgiram os austin seven specials — versoes modificadas personalizadas muitas vezes montadas por amadores que munidos apenas de ferramentas basicas peças reaproveitadas e muita criatividade que transformavam seus carros em algo inteiramente novo eram carros encurtados aliviados rebaixados com carrocerias feitas de aluminio madeira ou chapa batida a mao muitos nao tinham sequer para lamas ou teto mas todos carregavam a mesma alma o chassi do seven sua simplicidade mecanica e a ideia de que qualquer um poderia construir algo proprio — rapido leve diferente esse movimento deu origem ao mundo dos entusiastas de fim de semana das corridas de grama e terra batida dos ralis improvisados dos desafios entre vilarejos surgiam tambem as primeiras associaçoes e clubes informais como o 750 motor club fundado em 1939 que organizava competiçoes e encontros e tambem funcionava como uma escola comunitaria de mecanica onde amadores estudantes e futuros engenheiros trocavam informaçoes [caption id= attachment_382625 align= aligncenter width= 1300 ] hazel chapman esposa de colin a bordo do lotus mki que foi baseado em um chassi de austin 7[/caption] foi nesse ambiente que nomes como colin chapman e bruce mclaren começaram suas trajetorias chapman fundador da lotus e um dos projetistas mais influentes da historia do automobilismo montou seu primeiro carro de competiçao com base em um austin seven era o mark i construido em 1948 no fundo da garagem dos pais com peças reaproveitadas e um chassi alterado foi com esse carro que chapman desenvolveu pela primeira vez os principios que o tornariam famoso leveza simplicidade eficiencia estrutural [caption id= attachment_382624 align= aligncenter width= 1276 ] bruce mclaren e seu pai leslie mclaren com o austin seven[/caption] o caso de bruce mclaren e ainda mais simbolico na nova zelandia do outro lado do mundo o jovem bruce teve seu primeiro contato com mecanica automobilistica mexendo em um seven desmontado com o pai nas horas vagas aquele carro velho e modesto era um objeto de aprendizado e foi a base de sua primeira experiencia competitiva decadas depois mclaren fundaria a equipe que leva seu nome e se tornaria um icone da formula 1 um carro atual durante os anos 1930 com a chegada de concorrentes diretos como o morris minor e o singer nine a produçao começou a se estabilizar — e posteriormente a cair gradualmente mas isso nao significava perda de relevancia o modelo ja estava tao estabelecido que virara uma plataforma global ao longo dos anos 1930 ainda se produziam entre 10 000 e 15 000 unidades anuais mesmo com a chegada de sucessores naturais como o austin big seven e os modelos da serie ruby o ultimo austin seven original saiu da linha em 1939 as vesperas da segunda guerra mundial encerrando uma produçao total de aproximadamente 290 000 unidades somente no mercado britanico o bmw dixi sua versao licenciada mais bem sucedida teve outras 30 000 unidades produzidas entre 1927 e 1932 esse volume consolidava o seven como o primeiro carro britanico verdadeiramente popular equivalente europeu ao ford t mas com uma filosofia tecnica distinta menor mais leve mais economico e melhor adaptado a malha urbana da europa ocidental — algo que fez do seven o carro perfeito para familias de classe media que ainda se recuperavam dos efeitos da guerra e mais como ele usava o mesmo arranjo de controles do cadillac type 53 foi ele o responsavel pela consolidaçao da posiçao de controles que usamos ate hoje com a embreagem a esquerda freio no meio acelerador a direita e alavanca de cambio centralizada mas o mais importante e que o apelo popular do seven o transformou em uma ferramenta familiar e nao mais um item de status mais do que isso com a cultura automobilistica formada ao redor do seven ele tambem deu origem a ideia de que o carro nao precisava ser apenas utilitario ele podia ser pessoal e podia ser divertido ele nao era bonito no sentido aristocratico da palavra mas seu visual simples com linhas arredondadas e proporçoes humanas evocava simpatia e proximidade como um objeto domestico ele parecia pertencer a vida cotidiana — ao contrario dos carros da elite que pareciam pertencer a outro mundo era um carro com a cara de seu povo mesmo depois de atravessar oceanos idiomas moedas e contextos geopoliticos ele adaptava se como um bom imigrante conservando o essencial e acolhendo o novo era um carro global antes da globalizaçao por isso engana se quem coloca o austin seven na prateleira dos carros populares e encerrar o assunto ali mesmo como se ele fosse apenas a resposta britanica ao ford t isso seria empobrecer uma historia muito mais rica e muito mais viva porque o seven nao foi so um carro pequeno barato e funcional ele foi um divisor de aguas industrial cultural e emocional hoje num mundo que vive mais uma transiçao — rumo ao eletrico ao compartilhado ao urbano ao automatizado — talvez seja o momento certo de redescobrir o espirito do seven nao no sentido literal claro mas a ideia que ele representa a crença de que o carro pode ser eficiente sem ser entediante simples sem ser banal acessivel sem ser descartavel que pode sim continuar sendo parte da vida — e nao apenas uma linha de codigo ou uma assinatura mensal num aplicativo de mobilidade o austin seven envelheceu foi substituido modernizado arquivado em museus mas o que ele representava continua atual mobilidade com proposito engenharia com personalidade e transporte com humanidade clique e veja os capitulos anteriores da serie 50 carros que mudaram o mundo
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