É curioso como a opinião pública e o imaginário coletivo podem ser facilmente modelados. No momento, as prefeituras das principais metrópoles ocidentais como Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro e Paris colocaram em pauta a segurança e os riscos dos patinetes elétricos.
No Rio de Janeiro o número de usuários “explodiu” e os acidentes “preocupam”, enquanto em Paris e em Londres o veículo já “causou” a morte de uma pessoa, em Nova York quase a metade dos acidentes foram graves, e em São Paulo a prefeitura já trata o veículo como uma praga urbana. Parece até que eles estão atrapalhando nossas vidas em vez de torná-las mais fáceis.
Mas um olhar mais atento, uma leitura além da linha-fina (aquele resumo da notícia entre o título e o corpo do texto) revela que os patinetes nem são assim tão perigosos. É a semântica da discussão pública que faz tudo parecer pior. Quer ver só?
Segundo as notícias, a “explosão” de usuários no Rio de Janeiro resultou em aproximadamente 100 acidentes atendidos pelos hospitais das regiões onde os patinetes operam. Então vamos a fundo na notícia e encontramos a seguinte informação:
O coordenador do Centro de Trauma do Hospital São Lucas, Paulo Silveira, explica que esse número pode ser ainda maior, já que muitos casos não acabam no hospital. “Talvez seja um pouco mais que 50 casos nesses meses. Nós não temos esse número muito preciso porque nem sempre o paciente informa que aquela torção ou aquele trauma leve foi ocasionado por uma queda de patinete”, disse Paulo Silveira.
“Muitos casos não acabam no hospital” exatamente como aquela “ralada” no joelho de quando você era criança. Tecnicamente uma “ralada” no joelho é uma escoriação, que, por sua vez, é um tipo de trauma leve. Você também pode sofrer uma torção jogando futebol na quadra do condomínio. Um esfolamento e uma torção no futebol de quarta-feira parecem um problema de saúde pública para você? Sem os patinetes o Brasil já registrava mais de 2 milhões de casos de torções musculares. Precisamos regulamentar a infância, pelo jeito.
Em Nova York, dos acidentes “graves” 84% são fraturas ósseas. Não são concussões ou traumatismo craniano. Evidentemente uma fratura óssea pode ser fatal em caso de perfuração de órgãos vitais, mas note que a marca corresponde a 84% dos acidentes graves. E os acidentes graves correspondem a menos de 49%. A maioria dos acidentes resultam em torções e lesões leves em tendões, músculos e ligamentos.
Em Paris e em Londres aconteceram as duas únicas mortes registradas com patinetes no trânsito. Dois adultos, um de 25 anos em Paris e uma de 35 anos em Londres, colidiram contra caminhões por não respeitarem as regras de trânsito. Nem tente usar a carta da relativização de mortes: tratam-se de atitudes irresponsáveis.
Mesmo assim, são duas mortes entre milhões de usuários e dezenas de milhões de quilômetros rodados em todo o mundo. Estatisticamente patinetes, do jeito que estão, sem as “necessárias regulamentações”, são mais seguros que motos e carros.
Acidentes com carros, motos, ônibus e caminhões ainda são muito mais frequentes e mais letais. Evidentemente, em um universo muito maior de carros, motos e ônibus, a probabilidade de acontecerem acidentes fatais é maior, mas isso explica também o “aumento do número de acidentes” com patinetes — e não muda o fato de que os acidentes de trânsito envolvendo carros, motos e caminhões matam entre 37.000 e 42.000 pessoas por ano somente no Brasil.
Nos últimos meses a discussão sobre a segurança no trânsito brasileiro se limitou aos radares e às cadeirinhas infantis. Nenhum deles foi proibido ou abolido, mas a semântica da opinião pública fez com que estes dois elementos parecessem cruciais para salvar vidas no trânsito. Quer ver só?
Eu quero meu radar!
Na época da primeira polêmica dos radares, iniciada após o anúncio do cancelamento da instalação dos radares nas rodovias federais, um famoso programa de TV foi conhecer “o estado sem radares”. Trata-se de Santa Catarina, que baniu os radares de suas rodovias em 2002 e, segundo a reportagem, viu seus acidentes aumentarem até 2010, quando as autoridades passaram a usar radares móveis e portáteis.
A matéria começa dizendo que até 2010, não havia tantos radares, mas não diz quantos. “Tantos” não é estatística. Em seguida, matéria explica que a partir daquele ano o número de aparelhos de fiscalização aumentou, sem dizer quanto foi o aumento, e faz uma correlação automática entre o aumento da fiscalização e a redução do número de acidentes. Enquanto isso, o gráfico exibido na tela (esse aí abaixo) dizia o contrário: o número cresceu com poucos radares, se estabilizou nos quatro anos conseguintes e só foi cair em 2015, ano em que voltou ao patamar de 2007.
Em 2018, segundo o mesmo gráfico, o número de radares diminuiu e o de acidentes também. Mas os radares não são a causa direta da redução de acidentes?
Coincidentemente em 2015 ocorreu a tal crise econômica e a queda do consumo de combustível em todo o Brasil, o que pode indicar (veja bem a condicional: pode indicar, não significa que indica) uma redução nas viagens (menos saídas de carro/moto), menos carros rodando ou menos quilômetros rodados. Em seguida a matéria diz que os radares reduziram os acidentes onde foram instalados — o que é fato, mas não significa necessariamente que foram os radares os responsáveis pela redução de acidentes. Pode ter sido? Sim. Pode ter sido outro fator? Também.
Segundos depois, a matéria diz que a crise econômica motivou menos viagens e que isso pode ter significado a redução dos acidentes. Usando lógica elementar fica evidente que a correlação entre radares e acidentes, da forma que é feita, é falaciosa.
Mas não pára: o governo federal declarou que apesar da redução de radares nas rodovias federais, o número de acidentes no feriadão da Semana Santa caiu 15% (17% na realidade) em relação ao ano anterior. A reportagem diz que “o movimento não pode ser atribuído à redução de radares”. Errado: ninguém está dizendo que a redução dos acidentes aconteceu porque há menos radares. Quem afirma isso está concordando com a possiblidade de a remoção de radares colaborar com a redução de acidentes. O certo seria dizer somente que “ainda é cedo para dizer que a remoção não afeta os acidentes”. E é cedo mesmo.
Em seguida vem um especialista dizer que esse argumento para justificar a retirada de radares é “uma falácia do ponto de vista científico e estatístico”. É verdade. É mesmo falacioso, da mesma forma que é falacioso atribuir a redução apenas aos radares como foi feito mais cedo na reportagem.
Voltando a Santa Catarina, a matéria diz que entre 1999 e 2002 o número de acidentes subia lentamente, mas não diz quanto. “Lentamente” não é estatística. Sem o radar, os acidentes aumentaram “muito”, mas não diz quanto. “Muito” não é estatística.
Com radares móveis adotados em 2015, “os números despencaram”. A partir de quando? 2015. Quando os números caíram no Brasil inteiro. Pode conferir no DataSUS e no DPVAT.
Novamente a reportagem desliza dizendo que foram os radares. Pode ser que sim, mas pode ser que não. Note que nos três primeiros anos com radares móveis o patamar se manteve o mesmo dos primeiros anos sem radares. Além disso a reportagem não menciona o aumento de população de 5,5 milhões em 2002 para 6,8 milhões em 2015. Porque houve uma aumento de 7.000 acidentes para 12.000 acidentes (aproximadamente 58%) mas também houve um aumento de 1,7 milhão para 4 milhões de veículos no mesmo período.
Logo, as estatísticas, para não serem falaciosas, deveriam levar em conta a relação acidentes/100.000 habitantes, acidentes/milhão de km rodados e acidentes/volume da frota.
Em seguida o comandante da polícia corrobora um argumento defendido pelo FlatOut desde 2012: o radar reduz acidentes “desde que seja ostensivo, desde que seja visível”.
Então a reportagem vai pra Blumenau/SC mostrar uma rodovia que virou avenida, e mostra um único caso de atropelamento, que não foi fatal. Não mostra estatísticas que corroboram a crítica à ausência das lombadas e ainda mostra que a solução encontrada, uma faixa de pedestres elevada, é responsável por “parar o trânsito” nos horários de entrada e saída da escola. Mas intenção é justamente essa! Parar o trânsito garante a segurança das crianças. Como isso pode ser uma crítica? Porque o “trânsito fica ruim” para os motoristas? A prioridade é a segurança das crianças, não?
Em seguida entrevistam a diretora, que é pedagoga (e não engenheira), e diz que a faixa elevada que para os carros não é suficiente e que precisa mesmo de uma lombada eletrônica. Uma lombada eletrônica que não para os carros, nem força a redução de velocidade. Para a diretora, uma faixa elevada que força a parada dos carros não é suficiente. O que seria então? Curiosamente, para a população as faixas elevadas são suficientes.
Quando o Ministério da Infraestrutura tentou suspender a instalação de novos radares nas rodovias federais não-concedidas, o Ministério Público Federal, a pedido de um senador do Espírito Santo, impediu a ação. A intenção, segundo as declarações do ministro Tarcísio de Freitas, não era liberar geral e permitir que todo motorista viajasse com o ponteiro colado no final da escala, mas impedir que radares fossem instalados indiscriminadamente, em pontos desnecessários onde não há riscos de acidentes relacionados à velocidade. Isso permite um melhor aproveitamento de verbas públicas e até mesmo melhor posicionamento dos equipamentos contratados, desde que haja um estudo técnico — que, aparentemente, é o que está sendo feito.
A suspensão foi impedida pela Justiça Federal, em uma sentença confusa que exigia estudos que comprovassem a necessidade ou não de radares em trechos de baixo risco. Se os trechos são notadamente de baixo risco, qual a necessidade de um estudo para comprovar a necessidade ou não de um radar?
Cadeirinhas e a lei que não existe
Mais recentemente tivemos a polêmica das cadeirinhas. Elas são obrigatórias há dez anos e foram fiscalizadas somente a partir de 2012. Em 2019 o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a multa pela não-utilização das cadeirinhas porque a punição com multa só pode ser instituída por lei, uma lei que não existe atualmente. Hoje, a fiscalização das cadeirinhas é baseada em uma resolução.
Evidentemente todos os outros elementos de segurança no trânsito ficaram em segundo plano e, por uma semana ou duas, a multa pela não-utilização de cadeirinhas se tornou um elemento crucial para proteger crianças de seus próprios pais e para frear a mortalidade no trânsito. Note que não estamos falando da desobrigação do uso das cadeirinhas, mas do fim da punição por multa que, atualmente, é inconstitucional.
E como é praxe nesse momento, surgiram os especialistas e suas estatísticas. No caso das cadeirinhas foi a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego, a Abramet, uma associação de médicos especializados em lesões e traumas decorrentes de acidentes de trânsito. Eles publicaram um estudo no qual sugerem que “as cadeirinhas reduziram a mortalidade de crianças em 33%. Não vou me alongar aqui pois já fizemos um post inteiro dedicado à análise dos dados e mostramos que a realidade não é exatamente como expõe o estudo dos doutores.
O estudo incompleto que virou fato comprovado
Nos últimos 10 ou 15 anos as rodovias e ruas brasileiras passaram a ser decoradas com a mais recente tendência mundial urbanística: os radares. São máquinas maravilhosas: elas dispensam os dispendiosos policiais, são infalíveis (no sentido de punir) e ainda por cima são precisas.
Nestes 10 ou 15 anos, os radares foram tratados como um equipamento mágico capaz de frear os carros — ou fazê-los andar em velocidades “seguras” — cuja presença é fundamental para que as pessoas não se matem no trânsito. É mais ou menos como se todos estivessem dispostos a sair de casa para dirigir como idiotas, matar seus semelhantes e a si mesmo, seus filhos e os filhos dos outros, e graças aos temidos radares essa carnificina holocáustica não acontece.
Nunca importou o fato de que os acidentes fatais relacionados à velocidade nunca corresponderam a mais de 15% do total. Hoje a fiscalização é majoritariamente eletrônica — na cidade de São Paulo 75% das multas são geradas por estes equipamentos.
Só que estes equipamentos são limitados. Eles registram excesso de velocidade, circulação em desacordo com as sinalização (rodízio, no caso de São Paulo) e licenciamento vencido. Só. Três infrações. As outras 263 previstas no Código de Trânsito precisam ser fiscalizadas por humanos.
Também tratamos sobre isso aqui (mais de uma vez): quando não fiscalizamos o motorista deixa de encarar aquela infração como um fator de risco e arrisca. Se não aconteceu nada ele segue em frente e continua cometendo a infração impunemente. E isso nos traz, finalmente, ao motivador desta pensata: o uso de celulares ao volante.
Você já viu um motorista usando o celular ao volante? Ele vai de um lado para o outro na faixa, dirige ora rápido ora devagar. Faz movimentos bruscos, é inconsistente. Parece um motorista embriagado. Tão perigoso quanto, porque, embora não tenha os reflexos afetados pelo álcool, isso não faz diferença alguma, porque o motorista do Whatsapp sequer está olhando para a frente. É como tentar ler ou escrever um bilhete enquanto dirige. Era uma ideia que parecia absurda 20 anos atrás, mas se tornou natural e corriqueira em 2020. Grande futuro esse.
E isso acontece por duas razões relacionadas entre si: não há fiscalização suficiente para conter os motoristas ao celular; e, por isso, o uso do celular ao volante é tratado como uma infração menor, menos perigosa que o “excesso de velocidade” — ainda que este excesso seja a velocidade permitida antes da instalação dos radares.
Veja: em 2017 a cidade de São Paulo multou 376.711 motoristas por usarem o celular ao volante. Um número imenso, que parece me contradizer. Mas guarde este número e espere. Em 2018 foram 337.739 infrações pelo mesmo motivo. Não se sabe se a queda foi resultado de menos fiscalização ou por evolução no bom-comportamento dos motoristas, sabe-se apenas que ela aconteceu. Em 2019, até abril, foram multados 114.806 motoristas.
Agora, veja quantas multas foram emitidas por excesso de velocidade em até 20%: 4.917.086 em 2017, 3.943.177 em 2018 e 1.110.158 até abril de 2019. Praticamente 50% dos motoristas paulistanos já foram multados por “excesso” de velocidade, mas menos de 10% dos motoristas foram multados por usar o celular.
Infelizmente a capital paulista não divulgou estatísticas sobre os fatores envolvidos nos acidentes fatais, mas a Polícia Rodoviária Federal diz que, no Brasil, 11% dos acidentes fatais têm relação com a velocidade inadequada (que pode ser alta demais ou baixa demais). Quantas mortes são causadas por acidentes decorrentes do uso de celulares ao volante? Ninguém sabe porque essa estatística não existe.
Segundo o estudo atribuído à Abramet, o uso do celular ao volante resulta em 150 mortes por dia em todo o país. O número me chamou a atenção porque 150 mortes por dia correspondem a 54.000 mortes por ano e o total de mortes no trânsito brasileiro varia de 37.000 a 42.000, dependendo da fonte (DPVAT/DataSUS). Se a terceira causa é responsável por 54.000 mortes, as outras duas precisam, matematicamente, corresponder a 54.001 mortes cada, o que resulta em um universo total de mais de 162.000 mortes por ano nas rodovias brasileiras.
E aqui vem a parte mais absurda: enviei um email à Abramet no qual questionava tais números. A resposta foi a seguinte: “Respondendo sua questão sobre os dados do estudo. Ele não está completo ainda, apesar de termos citações desde o ano passado na imprensa.”
Sim: alguém divulgou um estudo incompleto apresentando números incompatíveis com os dados de fontes oficiais. E isso não impediu a notícia de ser reproduzida pelos principais veículos de comunicação do País. Uma entidade respeitada, formada por profissionais especializados, divulgou uma informação incompleta e inconsistente.
A pós-verdade do trânsito
Tantas inconsistências — de especialistas e dos integrantes do debate público — não apenas banalizaram a discussão sobre a segurança no trânsito, como também a distorceram. A discussão já não se concentra mais em fatos, mas em crenças ideológicas. É a tal pós-verdade, que deu as caras em 2016, depois se escondeu, mas nunca foi embora. Não importa que a realidade impeça a relação lógica entre causa e efeito. O que importa é a boa intenção de salvar vidas — ainda que ela não esteja salvando ninguém.