Em 2014 eu mudei de casa, de cidade, de emprego e mudei a rotina. Tudo de uma vez só, ao mesmo tempo. Apesar de ser uma mudança extensa e radical, me adaptei em poucos dias. O que levou algum tempo para eu entender — e isso só aconteceu depois de muitos meses — foi o principal cruzamento da cidade.
Era uma rotatória com quatro acessos combinada a uma confluência de duas ruas com uma transversal cruzando as duas e, visto de fora, parecia insanamente caótico, especialmente porque não havia uma mísera placa indicando a preferência, parada obrigatória, sentidos de circulação permitidos ou proibidos. A única sinalização era uma faixa de pedestres meio apagada.
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Eu me aproximava da rotatória vindo de uma rodovia — que continuava na saída à direita —, mas seguia em frente para entrar na cidade. Sem sinalização alguma, a preferencial é de quem está contornando a rotatória, certo? Ou de quem vem à direita, caso não tenha ninguém lá dentro. Mas não era bem assim que funcionava. Na prática, o trânsito se adaptava: às vezes o cara da direita cedia a passagem a quem vinha à sua esquerda. Ou o cara contornando a rotatória freava para outro motorista acessar. Às vezes alguém cruzava tudo sem parar. E o mesmo valia mais acima, para a confluência, para o entroncamento e para a faixa de pedestres. Nenhuma sinalização, nenhuma regra de trânsito aplicada.
Logo no primeiro ano a prefeitura instalou placas. Dois anos depois vieram os semáforos. E foi aí que eu entendi o que acontecia naquele cruzamento.
Aposto que você imaginou dezenas de acidentes antes e um ambiente mais seguro depois da sinalização. Mas o que acontecia era exatamente o contrário.
Sem sinalização os motoristas agiam com cautela na aproximação da rotatória e no cruzamento. Eles eram obrigados a olhar para o lado e a se comunicar com os outros motoristas por que não havia uma placa para validar suas manobras. Eles não podiam acelerar e cruzar as pistas de forma agressiva porque não havia uma placa obrigando os outros a parar. Além disso, a velocidade também ajudava a travessia dos pedestres.
Agora, quem vem da rodovia tem a preferencial sobre quem está contornando a rotatória. O novo semáforo dá aos motoristas a falsa certeza de que ninguém irá cruzar a sua frente e por isso ele não se preocupa em ficar atento às ruas transversais. Ele não se preocupa mais com o outro cara, afinal, se algo der errado, a culpa será legalmente do outro cara — embora não adiante muito ter razão quando se está em um carro retorcido.
Em diversas situações cotidianas do trânsito, os motoristas e pedestres conseguem sobreviver sem uma sinalização regulando cada aspecto do ambiente viário. Pense por exemplo nas situações de semáforos desligados por pane: os motoristas que precisam fazer o cruzamento — especialmente se as duas ruas tiverem dimensões e fluxo semelhantes — serão obrigados a se comunicar e a negociar. Lampejos de luz, um sinal de mão pela janela e o impasse está resolvido. Outra situação é o estreitamento da pista em caso de obras ou acidentes. Os motoristas quase que naturalmente se organizam em “zíper”, alternando a passagem dos carros.
O mesmo acontece em espaços compartilhados, como estacionamentos de shopping, supermercados, ou mesmo as ruas da cidade em festas populares e grandes eventos de rua: quando não há uma delimitação da área do pedestre e da área do carro, quando elas se confundem, ambos agem mais atentamente.
Evidentemente não significa que devemos abolir toda e qualquer sinalização de trânsito das cidades e esperar que todos se acertem pacificamente. Mas há casos em que a sinalização pode estimular um comportamento mais agressivo dos motoristas, como aconteceu aqui perto.
Essa teoria não é minha. Infelizmente porque eu adoraria ser o autor de algo tão original e eficiente. Ela foi proposta e executada originalmente por um engenheiro de tráfego holandês chamado Hans Monderman.
Para começar, Monderman não era o tipo de engenheiro anti-carro ou obcecado por modais alternativos. Ele era, acima de tudo, um homem culto que compreendeu a natureza humana e soube usar esta compreensão para tornar o trânsito mais seguro. Para ele, quando você trata as pessoas como idiotas, elas acabam se comportando como idiotas. E foi daí que ele teve a ideia de remover a sinalização.
Em um discurso um tanto libertário, Monderman argumentava que se o governo retira a responsabilidade dos cidadãos — no sentido de isentá-los das decisões que eles escolhem tomar —, eles terão dificuldade em elaborar um juízo de valor. Para ele, se o governo pretende que os motoristas tenham consciência sobre seus atos no trânsito, a melhor forma de fazer isso não é com restrições e proibições, mas com liberdade. As sinalizações de trânsito, para Monderman, eram um convite para parar de pensar, para parar de agir de acordo com sua vontade.
Claro, você pode argumentar que a realidade não é assim, e que a algumas pessoas não estão nem aí para suas consequências e que infelizmente as restrições e limitações são o preço que os bons pagam pelos maus. Ë verdade. Mas, como ele próprio dizia, há uma parte da sociedade que não aceita as regras, que não está nem aí para as estruturas sociais mais básicas, e não há estrada, rua, avenida, radar ou placa de trânsito que possa contornar esse fato.
Além disso, o próprio Monderman sabia que essa teoria tinha limitações. Ele chegou a afirmar que não confiaria em sua própria solução para alguns cruzamentos. Sua proposta só poderia ser implementada mediante estudos aprofundados das variáveis envolvidas como o volume de automóveis, a geometria da pista e do cruzamento, e o número de ciclistas e carros. Para ele (e para o FlatOut, como bem sabe quem nos acompanha desde 2014) essa atenção ao contexto é o que falta nos planos de trânsito.
E o fato mais interessante sobre Hans Monderman é que embora seu discurso pareça o de um teórico, ele colocou suas ideias em prática. Você certamente não o reconheceu pelo nome até agora, mas irá lembrar de sua obra mais famosa, o planejamento de trânsito da cidade de Drachten, na Holanda.
No centro da cidade, em um cruzamento movimentado chamado Laweiplein, Monderman removeu todos os elementos de controle de tráfego — dos semáforos às placas de trânsito — e simplesmente fez com que todos os veículos, ciclistas e pedestres compartilhassem o espaço. Um ano depois os resultados impressionaram: os congestionamentos diminuíram no cruzamento e os acidentes pela metade enquanto o número de carros nas ruas aumentou 30%.
Esta intervenção em Drechten foi realizada em 2001, e foi a mais divulgada globalmente. 20 anos antes, nos anos 1980, Monderman era um inspetor local que foi enviado ao vilarejo de Oudehaske com um radar para medir a velocidade dos carros depois que duas crianças foram mortas em um atropelamento.
Sem recursos para adotar elementos de moderação de tráfego, ele aproveitou que a vila estava passando por uma reurbanização e sugeriu uma mudança nas ruas: em vez de separar as faixas de carro e as calçadas, ele sugeriu que as guias fossem eliminadas e a distinção fosse apenas visual — a calçada passou a usar blocos vermelhos, sem uma linha contínua para marcar o início da pista dos carros. Isso dava a impressão de que as ruas eram mais estreitas, o que fazia os motoristas diminuírem a velocidade, mas elas continuavam comportando o mesmo volume de veículos.
Como resultado desta intervenção, os motoristas estavam dirigindo em velocidades inferiores à capacidade de medição do radar. Em vez clareza e segregação, ele criara confusão e ambiguidade. Sem saber ao certo que espaço que cabia a eles, os motoristas tornaram-se mais cautelosos.
E não pense que Monderman não gostava de carros. Como mencionei mais acima, ele apenas não era afeito ao discurso fácil. Ele enxergava o trânsito como dois universos segregados: o “mundo do trânsito” formado pelas rodovias, que era padronizado e tinha objetos e sinalização dispostos de forma que fossem facilmente reconhecidos e compreendidos em altas velocidades; e o “mundo social”, que é o ambiente viário urbano, no qual pessoas vivem suas vidas e interagem com seus vizinhos, amigos, parentes e colegas.
Daí vinha outra de suas frases polêmicas: “Eu não quero ver comportamento de trânsito. Quero ver comportamento social”. Um bom exemplo de comportamento de trânsito vs. comportamento social está na agressividade com a qual motoristas em conflito se tratam. Esse tipo de agressividade não existiria se ambos estivessem na sala de espera do dentista disputando a mesma revista. Sua intenção, portanto, era fazer com que os motoristas agissem da mesma forma cordial com a qual agiam no ambiente de trabalho, no supermercado ou em casa. Exatamente como acontecia antes da prefeitura encher o cruzamento aqui ao lado de placas, faixas, lombadas e semáforos e transformá-lo no único ponto de conflito e risco da cidade.