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Car Culture

Como as bicicletas salvaram as estradas para os carros?

Em tempos de ruas abarrotadas de pessoas e máquinas, discussões quase bélicas entre cicloativistas e motoristas de ocasião, omissão estatal em relação ao transporte coletivo e jogos de adivinhação sobre o futuro da mobilidade, por vezes esquecemos de revisitar nossa própria história para descobrir os elementos e eventos do passado que definiram o mundo moderno. Onde tudo deu errado? Como poderíamos ter feito diferente?

É frequente a noção de que as ruas e estradas lisas e pavimentadas foram criadas para que o homem pudesse dirigir essa maravilha motorizada do mundo moderno que tanto adoramos e chamamos de automóveis. Afinal, carros não sobem calçadas, não navegam, não andam sobre trilhos. O único lugar para eles é aquele espaço que concordamos em ceder em troca da possibilidade de usar o meio de transporte mais eficiente já criado quando se coloca na equação os fatores tempo, conforto, distância e liberdade. Esses espaços são mais conhecidos por mim e por vocês como ruas e estradas.

JUN 8 1963 (Date stamp) Slidestamp: SEP 63H Going-to-the-Sun Hwy. Glacier Nat. Park, Montana

Mas, como todos sabemos, as estradas não foram criadas para os carros, e sim o contrário: foram elas que permitiram a criação e o desenvolvimento dos carros. As estradas surgiram um pouco antes disso. Na verdade, até mesmo antes da invenção da roda.

 

O surgimento e a evolução das estradas

A origem exata das estradas é ainda incerta. Contudo, a maioria dos historiadores acredita que elas começaram a surgir quando homens pré-históricos criaram trilhas involuntariamente ao se deslocar pelas linhas naturais percorridas por animais (sua comida ainda viva) ou a marcar passagens por montanhas, rios e pântanos. Isso aconteceu por volta do ano 10.000 a.C.

Depois veio a invenção das rodas e domesticação dos animais e seu uso como força de tração. As trilhas precisaram ser alargadas e sua superfície suavizada para que os primeiros instrumentos de carga pudessem ser arrastados. Árvores eram derrubadas e pedras grandes foram removidas. Essa pequena evolução das trilhas resultou no início das viagens, que também deu origem à expansão do comércio. E o comércio, por sua vez, deu origem às primeiras estradas pavimentadas: por volta do ano 4.000 a.C., os habitantes de Ur, uma cidade-estado da Mesopotâmia, construíram trilhas revestidas com pedras. Nesse mesmo período, surgiram as primeiras “estradas de toras” —trilhas revestidas com toras dispostas transversalmente, como um assoalho rústico — na Grã-Bretanha. Mil anos mais tarde, os hindus começaram a pavimentar suas trilhas com tijolos.

Em 500 a.C., o imperador persa Dario I iniciou a construção de um sistema rodoviário para facilitar a ligação entre as várias cidades e regiões do Império Aquemênida. Seu eixo central era a Estrada Real Persa, uma estrada de 2.700 km entre as cidades de Susa (no atual Irã) e Sardis (na atual Turquia). Com a rodovia, os mensageiros persas eram capazes de completar a viagem entre as duas cidades em apenas sete dias — ou 385 km por dia!

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Mas foi o Império Romano quem revolucionou a história das rodovias. As famosas estradas romanas começaram a ser construídas em 312 a.C — a primeira delas foi a Via Ápia — como forma de agilizar o deslocamento das tropas romanas e, claro, auxiliar a expansão do Império e a comunicação entre suas regiões.

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Obviamente elas permitiram viagens mais rápidas e seguras para todos. Como eram bem projetadas e construídas, as estradas romanas permaneceram mesmo após a queda do Império e mesmo durante a Idade Média, período em que não havia recursos, nem conhecimento para mantê-las conservadas.

Explore o incrível (e eficiente) sistema de transporte do Império Romano

Foi somente no Período Renascentista, com enriquecimento dos Estados, que as rodovias voltaram a ser construídas. Inspirados nas antigas vias romanas, esses estados começaram a construir redes de estradas e pontes para facilitar as viagens com cavalos e carruagens. Os renascentistas tentaram emular o método romano de construir estradas, mas como se limitavam a copiá-lo, não houve grande desenvolvimento nessa época.

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As coisas só mudariam no fim do século 18, quando, em meio à Revolução Industrial, surgiu o primeiro construtor de estradas da história: John Metcalf. Segundo ele, uma boa estrada deveria ter boa fundação, ter uma boa drenagem de água e a superfície suavemente convexa para permitir o escoamento da água para pequenas valas em suas bordas. Exatamente como todas as ruas e estradas são feitas até hoje. Ele foi o primeiro engenheiro a salientar a importância da drenagem pois sabia que é a chuva que causa os maiores problemas às estradas.

Com as inovações de Metcalf e outros engenheiros da época, a construção de estradas evoluiu e a pavimentação passou a adotar macadame coberto com alcatrão, dando origem a uma forma primitiva do que chamamos de asfalto. As viagens passaram a ser mais rápidas, mais seguras e, finalmente, mais confortáveis.

 

A decadência das estradas

Apesar da rapidez e conforto nunca vistos antes, o transporte de passageiros e cargas daria um salto inimaginável até o início do século 19. A Segunda Revolução Industrial trouxe as locomotivas a vapor, capazes de transportar centenas de passageiros e toneladas de carga de forma muito mais rápida, confortável, segura e, acima de tudo, barata.

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Com isso, o transporte por carruagens e outros veículos de tração animal começou a entrar em desuso. Como as carruagens, carroças e afins eram os únicos usuários das estradas, elas acabaram abandonadas. Ou quase.

 

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Um outro invento tão recente quanto as máquinas a vapor traria um novo tipo de usuário para as estradas. Seu nome era Draisienne ou Laufmaschine. Era basicamente um cavalete de madeira com duas rodas em tandem — uma atrás da outra — com um banco e uma alavanca para direcionar a roda dianteira. Você montava no quadro de madeira e impulsionava o veículo com os pés.

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Décadas mais tarde, por volta de 1860, os franceses Pierre Michaux e Pierre Lallement perceberam que essa invenção poderia ser mais prática e rápida se houvesse uma manivela para mover as rodas. Como ela seriam acionada pelos pés, podemos chamá-las de pedivela. Sim, as alavancas que permitem pedalar esse tal velocípede.

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Só que a roda pequena na dianteira exigia esforço demais para mover o pedal, então em algum momento dessa história alguém decidiu adotar rodas maiores na dianteira, criando as penny-farthing — aquelas bicicletas com a roda dianteira enorme e uma roda menor na traseira. Aliás, estas foram as primeiras máquinas chamadas “bicicletas”.

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Mas como você já deve imaginar, elas eram difíceis de se guiar, e também um tanto perigosas por seu tamanho, Além disso, pedalava-se quase em pé, o que as tornavam desconfortáveis. Então, em 1876, um engenheiro inglês chamado Harry John Lawson projetou um biciclo com rodas de tamanho semelhante e conectou a pedivela à roda traseira por uma corrente. Nasceu assim a “safety bicycle”, ou “bicicleta de segurança”, que ganhou esse nome simplesmente por ser mais segura que as penny-farthing. Com isso, as bicicletas se popularizaram, e em vez de usar cavalos e carruagens, as pessoas passaram a usá-las para se locomover.

 

Mas como as bicicletas salvaram as estradas?

Com a popularização da bicicleta, os primeiros ciclistas simplesmente fizeram o que qualquer pessoa dotada de uma máquina com rodas faria: explorar os limites daquela máquina. Eles passaram a pedalar mais rápido e cada vez mais longe. Longe a ponto de sair das cidades e chegar às estradas e rodovias — aquelas abandonadas pela Revolução Industrial.

Cada vez mais, os ciclistas passaram a usar as rodovias para ir de uma cidade à outra, a visitar vilarejos e localidades fora das cidades. Parecia o paraíso das duas rodas, não? Estradas vazias, somente esperando os ciclistas passarem por elas.

Mas havia um problema: as estradas estavam em péssimo estado. Afinal, elas não eram necessárias para mais ninguém e, repetindo a história das vias romanas, acabariam se deteriorando pelo abandono. Então os viajantes de duas rodas começaram a se agrupar em organizações como o Cyclists’ Touring Club, da Inglaterra e a League of American Wheelmen, dos EUA. Unidos, os ciclistas conseguiram pressionar os governantes e políticos para conservar e construir novas estradas. Um dos movimentos mais influentes foi o US Good Roads, que conseguiu levar o próprio presidente dos EUA a uma de suas reuniões.

No Reino Unido, o Clube de Ciclistas também criou um movimento análogo, sob a liderança de William Rees Jeffreys, que organizava corridas no asfalto antes mesmo da popularização dos carros. Em 1885, ele e seus amigos ciclistas criaram a Associação para Melhorias de Estradas (Roads Improvement Association – RIA) e passaram a exigir a criação de rodovias 50 anos antes de o governo pensar em construí-las de fato.

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Com a ajuda de aristocratas e membros da realeza, eles organizaram a primeira Conferência de Estradas, onde discutiram a necessidade de construção de melhores estradas. E apesar de ser uma organização de ciclistas, a intenção da RIA era pressionar o governo a construir estradas não apenas para os ciclistas, mas para todos que precisassem usá-las — incluindo os carros, que começavam a entrar em cena a partir de 1896, com a criação do Benz Patent Motorwagen. Uma postura bastante conciliadora e civilizada, diga-se de passagem.

Os ciclistas ainda influenciariam o mundo automotivo no começo do século 20, quando os primeiros circuitos ovais foram construídos com madeira, inspirados nos velódromos onde os ciclistas disputavam suas provas de velocidade (uma história que contamos aqui).

A indústria automobilística, por sua vez, só faria um lobby semelhante depois dos anos 1930, quando a pavimentação asfáltica já era um padrão adotado na construção de rodovias. Tudo isso graças às pedaladas dos ciclistas vitorianos.