Pouco antes de começar este texto, coloquei minha modéstia numa gaveta, enrolada num filme plástico e a tranquei com duas voltas na chave. Porque eu quero começar dizendo que sou um bom motorista. Eu não atrapalho o trânsito, não acho que sou o sócio-majoritário da faixa da esquerda, evito exceder os limites de velocidade e o Detran não manda uma cartinha pra mim há tanto tempo que, na última vez que isso aconteceu, eu já estava em outro estado fazia sete anos. Foi o maior rolo pra resolver. Mas, divago, como diria o filósofo MAO.
O que eu quero dizer é que, apesar de dirigir sob qualquer condição adversa, no escuro, sob chuva, neblina, nuvens de poeira ou por estradas lamacentas, eu tenho um ponto fraco irremediável. Sou vítima fácil das lombadas. Lá estou eu, atento a tudo e a todos. De repente, aquele montinho de asfalto brota do chão e joga meu carro para o alto.
Foi desse jeito, aliás, que eu descobri que o conforto sobre obstáculos vem do entre-eixos, e não do curso da suspensão. Eu estava dirigindo um Land Rover Defender 90 quando uma dessas saliências apareceu na minha frente, contrariando meus reflexos, eu não colei o freio no assoalho — afinal, eu tinha um off-roader, um jipe capaz de atravessar a Amazônia no verão, eu podia simplesmente passar incólume pela lombada. O que aconteceu em seguida você deve imaginar. Vou me limitar a dizer que o Defender 90 tem entre-eixos de 90 polegadas, ou 2,30 metros.
O aprendizado, contudo, veio na semana seguinte: a mesma lombada me atacou novamente, desta vez à noite, se aproveitando da penumbra formada pelas árvores. Dessa vez eu estava com o Kia Cerato do meu pai, um sedã com 2,70 metros de entre-eixos. Não deu nem tempo de perceber o blitzkrieg da lombada. Eu só contraí os músculos e esperei o tranco… que não aconteceu. Lição aprendida na prática.
Uns anos depois, eu retomei a prática em um cruzamento aqui próximo. O semáforo estava verde, um verdadeiro milagre. Eu jamais havia dobrado a esquina e encontrado a luz verde. Então eu acelerei para aproveitar o semáforo aberto e meu carro foi transformado em um touro mecânico, quicando loucamente a traseira até se estabilizar novamente dali a 30 metros. Eu nunca, nunca havia reparado que a interseção das ruas tinha um desnível muito sutil.
Depois, numa viagem pelo sul de Minas, a caminho do Velo Città (sim, fui até Minas Gerais para chegar em Mogi-Guaçu. Rotas alternativas, meu caros. Como vocês acham que eu descubro essas coisas?) descobri que esse tipo de lombada armadeira também existe no alto da serra. Foram dois pulos na ida e um na volta. É por isso que eu costumo dizer que inventei o Mercedes GLA. Era um Classe A, mas eu o usava como se fosse um Classe G. Baita suspensão, acreditem.
Mas divaguei de novo (esse negócio contagia…). A questão é que existe uma razão pela qual um Kia Cerato “engole” a lombada e um Defender 90 sai quicando do obstáculo. Afinal, qual a ciência por trás dos saltos em lombadas e rampas? Por que alguns carros são mais propensos a decolar enquanto outros ficam no chão? Se fosse o peso, por que o Defender pulou tanto e o Cerato não?
Bem… tem a ver justamente com o entre-eixos do carro. E também tem a ver com a física que explica as decolagens dos carros em rampas, e até daquelas ondulações que causam um frio na barriga, geralmente no topo de pontes e viadutos, mas também em ladeiras com variação do ângulo de inclinação.
Para entender o porquê um carro curto pular mais que um carro longo, precisamos entender a física das rampas — ou como um carro se comporta ao passar por uma rampa e decolar.
Se você já viu um carro saltando de uma rampa, certamente notou que a dianteira sempre acaba apontada para baixo. Há quem pense que é por causa do peso do motor, mas ele não tem muita importância neste movimento. O que acontece é que a decolagem é feita em dois momentos. O primeiro é quando o eixo dianteiro perde o contato com o solo, o segundo é quando o eixo traseiro perde o contato com o solo.
Esse intervalo entre as decolagens de cada eixo tem uma fração de segundo, mas nessa fração de segundo em que o eixo dianteiro já está no ar e o eixo traseiro não está, o carro sofre uma aceleração angular (ou seja: começa a girar em seu próprio eixo) provocada pelo torque das rodas traseiras, que ainda estão em contato com a rampa.
Quando a roda traseira perde o contato com o solo, a única força atuante sobre o carro é a aceleração da gravidade (e a resistência do ar, mas vamos desconsiderá-la aqui para fins de simplificação). Desta forma, a aceleração angular do carro será constante, ou seja: ele vai girar até cair no chão ou bater em alguma coisa.
Agora… você notou que eu falei em torque das rodas traseiras, e que eles iniciam a rotação da dianteira? Pois é aqui que a distância entre os eixos entra em cena: o entre-eixos do carro é uma alavanca imaginária sobre a qual se aplica força em uma extremidade (a traseira). A força aplicada pelas rodas traseiras causa o momento de alavanca, ou torque, e a outra extremidade da alavanca inicia uma trajetória circular.
Agora é só fazer uma assimilação simples: quando você alonga a alavanca, precisa aplicar menos força à extremidade para realizar o trabalho. Como a força aplicada pelas rodas traseiras é hipoteticamente a mesma nos dois carros, o trabalho realizado sobre o eixo dianteiro do carro mais curto será maior.
Como isso se aplica à lombada, se os carros não tiram a roda do chão?
O princípio é o mesmo da rampa: porém com mais forças atuantes sobre a dianteira. Quando o carro está em repouso, a aceleração da gravidade o está “empurrando” contra o solo. Quando você passa por uma lombada, a velocidade e o ângulo da lombada projetam a dianteira para o alto, produzindo uma força contrária à aceleração da gravidade.
Só que a aceleração da gravidade continua atuante enquanto as rodas traseiras, ainda sem essa força contrária à aceleração da gravidade (pense em sustentação), forçam a rotação do eixo dianteiro da mesma forma que acontece na rampa. Em palavras simples, você terá o torque aplicado sobre a “alavanca” entre-eixos e a aceleração da gravidade “empurrando” o carro para baixo. Como a alavanca é mais curta no carro com entre-eixos mais curto, ele irá “empurrar” a dianteira contra o chão com mais força.
Além disso, há um segundo fator: o entre-eixos mais curto reduz o intervalo entre a sustentação da dianteira e a perda de contato da traseira, a suspensão dianteira ainda estará comprimindo ou distendendo quando a traseira passar pelo topo da lombada, transferindo a carga para o eixo dianteiro. Essa ação descoordenada das forças sobre o carro em tão pouco tempo é o que faz com que o carro de entre-eixos curto saia quicando ao passar em velocidades altas por uma lombada. E também é o que faz com que ele precise de velocidades menores para manter a estabilidade durante a transposição da lombada/rampa.
E os saltos? E o frio na barriga?
A ciência por trás do salto ficou clara mais acima (espero). O que não ficou muito claro é por que alguns declives causam aquela sensação de frio na barriga/espinha ou ainda causam saltos dignos do WRC em algumas vias urbanas — Frank Bullitt, estou falando com você.
O que acontece é que a rampa é, tecnicamente, uma variação súbita do ângulo da superfície sobre a qual o carro está rodando. E este ângulo não precisa ser positivo, como nas rampas que você fazia para saltar de bicicleta. Ele pode ser negativo, como um declive súbito em uma superfície plana. As famosas ladeiras de San Francisco, na Califórnia/EUA, são o melhor exemplo dessa variação negativa, mas elas existem em praticamente toda cidade que tenha um viaduto ou uma ponte mais elevada que suas cabeceiras, ou nas estradas secundárias de relevo acidentado.
A física é a mesma: a roda dianteira perde contato momentâneo com o solo, enquanto a roda traseira continua em contato, aplicando força sobre o chassi do carro. Isso causa a aceleração angular, uma trajetória circular da dianteira. Nesse caso, o carro literalmente “perde o chão” — é a mesma sensação de uma queda livre, porém por uma fração de segundo, porque a queda livre dura apenas uma fração de segundo — o intervalo entre o momento em que a suspensão distende pela perda de contato com o solo e o momento em que o restante da carroceria acompanha o movimento da roda.
É claro que existem mais variáveis envolvidas, como o centro de massa do carro, mas eu não pretendo publicar um paper acadêmico sobre movimento de projéteis (sim, o salto dos carros é explicado pelo movimento de projéteis), apenas trazer uma explicação simplificada sobre algo que acontece rotineiramente com muitos motoristas. Ou alguns. Ou talvez… bem… você entendeu.
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