Se você usa apps como o Waze para enfrentar o trânsito nos horários de pico, já deve ter visto ele sugerir rotas alternativas e mais rápidas sempre que possível quando o trânsito à frente para de vez.
Aconteceu comigo na semana passada, quando topei com uma manifestação sindical que fechou uma avenida para reclamar que ciclovias roubam espaço que poderia ser destinado a motofretistas. Ao analisar a velocidade média do trânsito à frente, o app calculou que eu chegaria mais rápido ao destino passando em ruas residenciais de baixa velocidade do que me arrastando por um corredor viário entupido de veículos e sindicalistas.
Nessa hora lembrei das minhas rotas de fuga da época que usava o carro para trabalhar, e como eu andava sozinho por essas ruas enquanto conseguia ver lá embaixo o formigueiro de carros parados, esperando para pular uns metros à frente e parar de novo.
Isso tem a ver com a teoria da demanda induzida, sobre a qual já falamos aqui anteriormente. Ela é uma teoria econômica adaptada para a engenharia de tráfego, e rende uns bons minutos de leitura, mas resumidamente ela diz que o aumento da oferta de algum produto faz as pessoas procurarem mais aquilo que é ofertado. No trânsito isso significa que quando você passa a oferecer uma via expressa, as pessoas começarão a usar aquela via e logo ela estará cada vez mais cheia, até que um dia ela se torna congestionada.
Esse modelo de engenharia de tráfego, que cria grandes corredores viários para aumentar a velocidade média e reduzir o tempo de viagem, funcionou muito bem no passado, quando menos pessoas usavam carros, quando menos mulheres trabalhavam fora e, para resumir, quando o mundo tinha menos gente. Atualmente, é comum encontrar índices próximos a um carro por habitante nas grandes cidades e a necessidade de se ter casas para tanta gente também cria um círculo vicioso: precisamos de espaço para os carros de pessoas que precisam de espaço para morar e guardar seus carros que precisam de espaço para rodar.
Então, a menos que você mude radicalmente a cultura universal e as relações de trabalho, as pessoas vão morar longe e dirigir para ir ao trabalho, e usarão os grandes corredores para chegar lá. Mas elas só vão optar por dirigir e usar os grandes corredores por que isso é possível. Você não exige uma pizza quente na porta de casa em cinco minutos porque isso não é possível, mas acha que meia hora é um horário aceitável porque é um período plausível para se fazer uma pizza e entregá-la (ainda que o entregador cometa todas as infrações possíveis no trajeto).
E aqui surge uma pergunta: se um dia o mundo acordasse sem entregadores de pizza, o mundo deixaria de comer pizza? É claro que não. O que aconteceria é que teríamos que nos adaptar para a nova realidade sem entregas de pizza. O mesmo aconteceria se um dia todos os corredores viários congestionados deixassem de existir. Não, cara, não demoraríamos mais tempo para ir buscar a pizza. Teríamos que adaptar nosso trajeto à inexistência de um grande corredor viário congestionado — que até então só servia para isso: ficar congestionado.
A manifestação que fez o corredor desaparecer
Isso tem tudo a ver com aquela manifestação sindical e todas as ocorrências de trânsito que fazem o Waze mudar de ideia o tempo todo: naquele momento o corredor viário deixou de existir — ainda que por alguns minutos. Eu saí da rota e consegui reduzir meu tempo de chegada em dez minutos sem passar dos 40 km/h. Por quê? Porque eu andava devagar, passava por ruas estreitas e residenciais, esperava uma velhinha atravessar a rua, mas não ficava parado esperando a minha vez de passar pelo gargalo.
E isso não foi um caso isolado. Em primeiro lugar por que eu não fui o único motorista da cidade a tentar “fugir” do congestionamento — muita gente fez o mesmo. Só que essa muita gente não foi para o mesmo lugar que eu, e por isso cada um trilhou o seu caminho por outras das centenas — talvez milhares — de ruazinhas que passam o dia esquecidas, praticamente desertas, ainda que ofereçam uma alternativa para se chegar aonde as pessoas querem.
Em segundo lugar, por que eu descobri que os coreanos fizeram exatamente o que aconteceu comigo. E eu não estou falando de fechar uma avenida para manifestação. Na verdade eles fecharam uma via expressa inteira para sempre e no lugar construíram um parque — um dos maiores parques públicos do mundo.
Esta obra de Seul, conhecida como revitalização do córrego Cheonggyecheon, ficou famosa por sua ousadia, mas principalmente por seus resultados, pois os congestionamentos diminuíram nos arredores do novo parque. E isso não aconteceu somente por que as pessoas passaram a usar mais o transporte público, mas também por que sem o corredor viário, os motoristas passaram a fazer rotas diferentes de acordo com sua necessidade. Exatamente como o Waze me ensinou no dia da manifestação, e também como eu fazia ao evitar os congestionamentos diários quando usava o carro para trabalhar.
Logicamente isso não significa que não seja mais preciso abrir novas ruas, e também não significa que demolir tudo o que é feio e largo e feito só para carros vai resolver tudo e deixar o mundo mais bonito como em um conto de fadas urbanístico.
É preciso também fazer mudanças profundas no planejamento das cidades e até mesmo do país, e existem situações e lugares onde somente mais vias expressas e mais faixas de rolamento vão resolver o problema. Em Seul, antes da demolição desta via expressa, foi construído um anel viário para aqueles que precisavam atravessar a cidade inteira.
Mas acima de tudo, é preciso analisar cada caso separadamente e olhar também para a cidade como um todo e como parte de algo maior. No Brasil, por exemplo, a malha viária interurbana/interestadual é praticamente a mesma desde os anos 1980. Muitas rodovias ainda atravessam cidades, e a própria BR-116, uma das mais importantes do país, ainda depende das Marginais de São Paulo para ligar o Sul do Brasil ao litoral da região Sudeste e o estado do Rio de Janeiro pois o Rodoanel Governador Mário Covas ainda não é um anel completo. Outros problemas são a ausência de transporte de cargas e passageiros sobre trilhos, ou de sistemas urbanos eficientes e baratos, e a especulação imobiliária – que tende a colocar os trabalhadores longe do trabalho.
Marginal Tietê em São Paulo: a única forma de acessar a BR-116 vindo da… BR-116!
Já vimos mais de uma vez que abrir cada vez mais ruas não será a solução. Mas diminuir o que já temos sem mexer no restante das cidades também não vai mudar muita coisa. É por isso que, quando você divide uma rua entre faixas de ônibus, ciclovias e faixas de motos e deixa o resto para os carros, você não está exatamente resolvendo o problema do trânsito, nem melhorando as condições para quem não usa carro. Na verdade você só está mantendo tudo como sempre foi, porém com alguma hierarquização de veículos, além de não resolver a superlotação dos ônibus e colocar ciclistas em risco. A solução vai muito além das ruas, mas este parece ser um desafio que nenhum governante está disposto a encarar.
Por outro lado você não precisa esperar pela atitude do governo. Basta planejar suas rotas alternativas sempre que possível, sem depender dessas vias congestionadas como se elas já tivessem deixado de existir.