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Car Culture

Como transformar o Porsche 962C em um carro de rua

Aquele era um feriado como qualquer outro, daqueles que a gente acaba cansado de não fazer nada quando olhei pela janela e vi algo que não se vê todo dia: um Porsche 962 de rua, ultrapassando um Rolls-Royce Silver Cloud III, em direção a um posto de combustível.

Na verdade, a janela à qual me refiro é a “janela para o mundo”, as redes sociais. Um vídeo curto de Simon Kidston, um dos mais conhecidos negociantes de carros clássicos do mundo, trazia um raríssimo Schuppan 962 CR acelerando como se não houvesse amanhã pelas estradas galesas.

O Schuppan 962 CR é um dos supercarros mais interessantes que a década de 1990 colocou na história. Um projeto obsoleto de Le Mans que ganhou uma segunda chance pelas mãos de quem ajudou a escrever sua própria história. Nesse caso, Vern Schuppan, piloto australiano que chegou a disputar nove Grandes Prêmios da Fórmula 1, outro punhado de corridas na Indy, mas fez sucesso mesmo no endurance, tendo chegado ao auge de sua carreira em 1983, com a vitória nas 24 Horas de Le Mans ao volante de um Porsche 956.

Sua relação com a fabricante o permitiu criar sua própria equipe, a Team Schuppan, com apoio do pessoal de Weissach para se inscrever nas 24 Horas de Le Mans de 1989 com um 962C modificado. A principal diferença entre o 962 original e o 962C de Schuppan era o monocoque feito de fibra de carbono em vez de alumínio, como o original da Porsche. Ali começou a segunda fase da carreira de Schuppan.

Entre 1989 e 1992, ele disputou o Mundial de Carros Esporte (WSC), o campeonato japonês de esportes-protótipo (AJSC) e o IMSA nos EUA. Paralelamente, para bancar a equipe, Schuppan ianda criou a VSL, uma empresa de engenharia que visava prestar serviços para equipes e fabricantes. O sucesso de Schuppan no Japão — e sua empreitada na VSL —, o levaram a uma aproximação com os japoneses da Art Sports Corporation, que era a divisão automobilística de uma holding japonesa chamada Art Plus, que atua em vários setores varejistas.

A ideia era formar uma joint venture para desenvolver um supercarro de rua baseado no 962C que Schuppan usava nas pistas. A Art Sports entraria com a grana de Schuppan com a execução. Foi assim que, em 1991, o Schuppan 962 começou a ser desenvolvido, com a missão de ser um carro de Le Mans com conforto suficiente para as ruas. A VSL comprou uma fábrica de 5.500 m² na Inglaterra, contratou mais de 20 engenheiros, formou uma equipe gerencial e uma equipe de projetistas e iniciou os trabalhos para tirar o carro das pranchetas e produzir as 50 unidades que a Art Sports planejava vender.

O primeiro protótipo ficou pronto ainda naquele ano, e tinha praticamente a mesma especificação do carro de Le Mans, com design de Norbert Singer. O chassi também foi mantido o mesmo do carro de corridas, feito pela Advanced Composite Techonology (ACT) no Reino Unido, enquanto o motor era o flat-6 biturbo de 2,65 litros também usado em Le Mans, mas entre 1983 e 1985, com 24 válvulas, 30 cv a 8.200 rpm e arrefecimento líquido dos cabeçotes. O carro foi batizado como 962 LM.

Ainda em 1991, no final do ano, a VSL começou a construir o segundo protótipo, agora com a carroceria nova e com o aporte financeiro da AS. O carro, batizado 962CR, foi baseado em um novo chassi 50 mm mais largo foi encomendado à Reynard — a mesma que fazia monopostos para diversas categorias, entre elas a Indy/CART —, contudo, um atraso na produção do chassi fez com que este segundo protótipo fosse construído sobre o chassi original da ACT.

A nova carroceria, também de fibra de carbono, foi projetada por Michael Simcoe, que havia feito carreira na Holden e, mais tarde, voltaria à fabricante australiana para desenvolver as gerações do Omega que foram vendidas por aqui entre 1999 e 2012.

Com linhas mais suaves e alguns elementos estéticos inspirados no 959, como os faróis integrados e as aletas de ventilação/tomadas de ar, ele finalmente se afastava do visual de corrida para parecer mais um supercarro de rua.

Apesar do chassi mais estreito, esse carro foi usado para as fotos de divulgação do modelo e também recebeu a configuração final do flat-6, agora com 3,4 litros, 12 válvulas, dois turbos e arrefecimento a ar no bloco e nos cabeçotes. É por isso que, apesar da cilindrada maior, ele produzia 600 cv em vez dos 630 cv do primeiro protótipo.

Ainda em 1991 a VSL construiu mais dois exemplares do 962 LM antes de fazer o primeiro protótipo do 962CR com o chassi mais largo da Reynard. O carro (esse amarelo abaixo) nasceu com vários problemas de pré-produção, dentre os quais, uma deficiência no arrefecimento do motor — algo especialmente crítico para um motor totalmente arrefecido a ar.

Com os problemas corrigidos, a VSL partiu para a primeira unidade de produção do 962CR no primeiro semestre de 1992. O carro (esse prata abaixo) foi entregue à Art Sports, que tinha exclusividade na distribuição do carro no Japão. O primeiro carro foi vendido por 195.000.000 de ienes (cerca de US$ 1.500.000 em 2023) e uma segunda unidade já estava a caminho quando algo previsível, mas inesperado aconteceu.

Na segunda metade dos anos 1980 o mercado imobiliário do Japão viu uma escalada jamais vista nos preços dos imóveis, que refletiu na subida dos preços das ações ligadas ao setor. A inflação foi tamanha que acabou se tornando uma bolha, algo insustentável que fatalmente acabaria estourando. E esse estouro aconteceu justamente em 1992, quando o Schuppan finalmente ficou pronto para ser vendido.

Como resultado, a economia japonesa mergulhou em uma crise que reverberou por mais de dez anos, um período que acabou conhecido como a década perdida. A Art Sport, claro, também foi afetada e logo após vender o primeiro carro começou a revisar o contrato com a VSL, reduzindo os pedidos de 50 unidades para 20 unidades, depois para 10 unidades. A VSL, diante da insustentabilidade financeira, foi à justiça britânica para forçar a Art Sports a cumprir o acordo de 20 carros.

Diante do processo judicial, a Art Sports se recusou a receber e pagar as duas unidades seguintes do 962 CR, o que levou a VSL a entrar com um pedido de insolvência, sendo incapaz de entrar em uma batalha judicial contra a Art Sports.

A VSL ainda conseguiu concluir o segundo 962 CR, mas ele foi objeto de uma disputa judicial que terminou de afundar a fabricante. A VSL tentou enviar o carro à Art Sports, pois o contrato previa o pagamento após o desembarque do carro no Japão.

Enquanto isso, a Art Sports foi à justiça britânica para impedir que o carro fosse enviado, e exigir que ele fosse retirado do avião no aeroporto de Heathrow, o que a eximiria de pagar pelo 962 CR. O mandado judicial, contudo, foi expedido somente após a decolagem da aeronave.

Imediatamente a Art Sport recorreu à justiça japonesa, que expediu um mandado judicial proibindo as autoridades aduaneiras de desembarcar o carro, então o 962 CR voltou para o Reino Unido. A VSL então foi à justiça para reivindicar o direito de vendê-lo a terceiros, sem violar o contrato com a Art Sports, e ganhou a causa. Desta forma, o carro foi vendido a um americano que o manteve no Reino Unido e o revendeu ao seu atual proprietário em 1995. É o carro que apareceu na janela… digo, nas redes sociais neste fim de semana.

Antes da sua falência, contudo, a VSL tentou finalizar seu último carro e disputar as 24 Horas de Le Mans de 1994. A ideia era inscrever o carro em parceria com a Porsche para reacender o interesse da Art Sport, algo que encerraria o processo judicial e salvaria a empresa. Por isso, eles pegaram o quarto e último chassi da ACT, aquele baseado no chassi original do 962, porém feito de fibra de carbono, e com ajuda da equipe ADA Racing, o adaptaram ao regulamento de Le Mans, finalizando o carro em apenas 1.500 horas entre 24 de julho e 21 de agosto de 1993.

A tentativa foi em vão. Apesar de torná-lo mais parecido com o 962 CR adotando para-choques traseiros e a asa traseira do carro de rua, era muito claro que aquele carro era um 962 LM disfarçado, e o Automobile Club de l’Ouest jamais aprovaria aquele carro como um LMGT1. Ironicamente, àquela altura já havia ao menos três unidades do LM rodando nas ruas do Reino Unido, o que provaria aos organizadores de Le Mans que aquele era um GT1 de rua se a VSL não tivesse tentado disfarçá-lo como 962 CR.

E mesmo que fosse aprovado, ele não teria conseguido correr em La Sarthe. A asa do carro de rua era mais estética do que funcional, e não produzia downforce suficiente para torná-lo competitivo. Existe uma lenda de que a VSL tentou levar este último 962 LM/CR a Le Mans para apresentá-lo aos fiscais como carro de corridas e, depois, caracterizá-lo como carro de rua para tentar driblar o regulamento, mas segundo um dos engenheiros que trabalhou nos carros, Trevor Crisp, diz que essa história é invenção.

Sem um carro para correr, sem dinheiro para a disputa judicial e sem recursos para continuar a produção, a VSL fechou as portas em 1994. Dos oito carros produzidos entre 1991 e 1993, apenas seis são conhecidos atualmente: três LM (chassis VS 962LM 01, VS 962LM 02 e AS 962CR 06/50 – os dois primeiros caracterizados com a pintura Rothmans; um deles no vídeo abaixo) e três CR, sendo um protótipo (chassis AS 962CR P1) e os dois modelos de produção (AS 962CR 05/50).

 

Houve ainda um último chassi de fibra de carbono feito pela Reynard para a VSL que jamais foi usado por ela.

Ele acabou nas mãos de um dos compradores do 962 CR e foi revendido para Jochen Dauer, que o usou para reconstruir o 962-172 Havoline Andretti (o carro preto acima), pois o chassi original de alumínio foi usado em um dos 962 de rua que o próprio Dauer fabricou. Mas esta é uma história para outro dia.


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