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Automobilismo

Como um Camaro da Nascar completou as 24 Horas de Le Mans?

Lembra do Nissan Delta Wing, aquele carro de bico fino e traseira larga, em formato de delta, que correu nas 24 Horas de Le Mans de 2012? Ele não era um LMP1, nem um LMP2. Muito menos um GTE, afinal, não existe nenhum esportivo em forma de asa delta feito pela Nissan. O Delta Wing foi o primeiro carro de Le Mans a competir pelas regras “Garage 56”.

Pois é, “Garage 56” não é um nome de equipe, como pode parecer à primeira vista (seria um nome bacana, não?). Trata-se de um regulamento específico para carros experimentais, que não se enquadram em nenhuma das quatro categorias e que desejam disputar a corrida para desenvolvimento tecnológico, ou para carros de exibição. O nome vem da própria estrutura de Le Mans na época em que a regra foi criada (2012), que tinha 55 garagens para as equipes. Esta inscrição especial ocuparia uma nova garagem, a “Garage 56” — hoje o circuito tem 62 garagens e planos para expandir para 70, mas o nome permaneceu.

Além do Delta Wing, a Garage 56 já teve o Green GT H2, um protótipo movido a célula de hidrogênio, e o SRT 71, um protótipo Oreca com um sistema de adaptação para instalação de pilotos com deficiência física, e uma versão híbrida do Delta Wing, o ZEOD RC e o Panoz Green4U. Na edição deste ano, como você deve ter percebido, o carro que correu pela Garage 56 foi um Chevrolet Camaro ZL1 Next Gen, da Nascar.

Sim, um Nascar em Le Mans. Um carro que “só faz curva para a esquerda”, com aerodinâmica simplória, pesado, enorme e desajeitado perto dos refinados GT e protótipos que dominam a prova. Que chance ele teria? Aparentemente não muitas, mas logo na classificação ele surpreendeu muita gente ao fazer sua melhor volta em 3:47,976 e superar todos (sim: todos) GTE e e alguns LMP2 — o pole position da GTE-Am foi Corvette C8.R, com 3:52,376; quase 4,5 segundos mais lento que o parrudo Corvette Next Gen, que só largou no final por ser “Garage 56”.

O desempenho do Camaro não foi surpreendente apenas na classificação. Enquanto sua melhor volta na corrida foi 3:50,512, a volta mais rápida dos GTE-Am foi de uma Ferrari 488, com 3:54,827. Ele estava claramente mais rápido que os GTE, embora muito atrás dos LMP2, que giravam na casa dos 3:40.

Agora… como um Camaro da Nascar conseguiu um feito desse? Bem… não sendo exatamente um Camaro da Nascar. É claro que ele tem o chassi e a carenagem dos Nascar originais, mas ele passou por uma série de medidas de alívio de peso (que infelizmente não foram reveladas) que reduziram o peso do carro original da Nascar de 1.581 kg para 1.342 kg, apesar de tê-lo alongado em 50 mm.

Entre as modificações estão os discos de freio de carbono cerâmica e a célula de combustível, capaz de comportar 50 litros a mais que a original de 70 litros — totalizando 120 litros. Os pneus também foram desenvolvidos especialmente para o uso em Le Mans, visto que os pneus da Nascar são desenvolvidos especificamente para o tipo de prova da categoria.

Um fato curioso e pouco mencionado, é que o Camaro não correu com gasolina de competição americana, como alguns poderiam imaginar. Em vez disso, ele usou etanol como os demais carros de Le Mans — e etanol feito de resíduo de vinícolas francesas, feito pelos franceses da Total. Sim, um Camaro de corrida movido a “vinho”.

Depois há as alterações na carenagem do carro. Carros da Nascar não têm faróis e lanternas, então foi preciso providenciar um conjunto óptico para este Camaro atravessar as quase 12 horas escuras de Le Mans.

Além disso, ele precisa carregar a velocidade para dentro das curvas para ter alguma chance de fazer bonito em La Sarthe e, por isso, ganhou um spoiler mais alto, de 6 polegadas (o original tem 4 polegadas) e aletas nos quatro cantos da carenagem — as chamadas “dive planes” ou “canards”, que ajudam a equilibrar a downforce na dianteira em conjunto com o splitter na dianteira, e complementam a ação anti-arrasto e do spoiler na traseira.

Mais impressionante é que, em vez de usar o motor V8 do Corvette C8.R, o Gemini LT6 de 5,5 litros/336 pol³, eles mantiveram como base o R07 original do Camaro Next Gen da Nascar. Trata-se de um 358 (uma variação do 350) baseado no atual small block da Chevrolet, com apenas duas válvulas por cilindro e comando no bloco, vareteiro, com bloco de ferro fundido e cabeçotes de alumínio.

Os componentes internos foram modificados (como seria de se esperar) para que ele durasse até 30 horas de uso em regime total. Para Le Mans os restritores de admissão exigidos pelo regulamento da Nascar foram removidos, mas o limite de rotações foi reduzido para preservar o motor.  Com os restritores a potência fica na casa dos 510 hp, porém pode chegar aos 670 hp sem eles. Em Le Mans o Camaro correu com 650 hp.

Pilotado pelo campeão de F1 Jenson Button, pelo heptacampeão da Nascar Jimmie Johnson e pelo vencedor de Le Mans Mike Rockenfeller, o Camaro ZL1 fez bonito até a 22ª hora da prova. Depois de chegar à 27ª posição, à frente de todos os GTE Am e de alguns LMP2, o carro começou a apresentar problemas na transmissão (vídeo abaixo) e precisou entrar na garagem para uma série de reparos que incluíram a troca do câmbio e duraram 1 hora e 21 minutos. Àquela altura o carro já havia completado 254 voltas. Depois da troca do câmbio, o carro saiu e recolheu por mais 15 minutos para verificações.

O Camaro voltou à pista nos últimos minutos da prova, agora na penúltima colocação, à frente do Porsche 963 número 38, que também teve uma série de problemas e estava 98 voltas atrás dos líderes da prova. No final da corrida, Mike Rockenfeller ainda levou o Camaro ao seu limite, fazendo a volta mais rápida (os já citados 3:50,512), recebendo a bandeira quadriculada depois de 24 horas e alguns minutos, com um total de 285 voltas completadas. Foi a primeira vez que um carro da Nascar completou a prova.

Sim, a primeira vez, pois em 1976, há 47 anos, houve uma outra incursão americana em La Sarthe: um Ford Torino e um Dodge Charger da Nascar foram levados à França para disputar as 24 Horas de Le Mans.

 

Os primeiros Nascar de Le Mans

Em 1975, quando o automobilismo ainda estava sofrendo com a crise do petróleo. Na época, o Automobile Club de l’Ouest, o ACO, decidiu modificar o regulamento das provas de longa duração a fim de estabelecer um limite de consumo de combustível.

Era um esforço duplo: ao exigir que os carros fossem capazes de dar ao menos 20 voltas em La Sarthe antes de abastecer, a organização das 24 Horas de Le Mans reduziria o consumo de combustível e acabaria obrigando as equipes a utilizar motores menos potentes e beberrões. Esperava-se, com isso, que a diferença de velocidade entre os carros mais rápidos e os mais lentos fosse um pouco menor, o que em tese ajudaria a tornar as corridas mais seguras.

As fabricantes europeias não gostaram nem um pouco disso. Alfa Romeo, Matra, Ferrari e Alpine simplesmente abandonaram a competição, o que tornou as coisas bem tranquilas para a Gulf, que venceu as 24 Horas de Le Mans daquele ano sem muito esforço.

Só havia um detalhe: a edição de 1975 não fazia parte do campeonato mundial de carros esporte (WSC) e a prova foi um fiasco de público. Com pouco público e poucos carros, os organizadores entraram em pânico: havia o risco de a edição de 1976 ser um fracasso ainda maior.

O Automobile Club de l’Ouest (ACO) teve uma ideia: levar algo novo para a pista e assim, garantir um grid cheio e diversificado. Eles entraram em contato com “Big” Bill France, o fundador da Nascar, para um pequeno “intercâmbio”: uma categoria nas 24 Horas de Le Mans feita especialmente para carros americanos. Era a Grand International, que fez sua estreia nas 24 Horas de Le Mans do ano seguinte.

Entre protótipos Porsche, exemplares do BMW 3.0 CSL e até mesmo um Lancia Stratos, dois estranhos no ninho: um Ford Torino 1975, comandado pelo piloto independente Junie Donlavey e pelos colegas Richard Brooks e Dick Hutcherson; e um Dodge Charger 1972 da dupla formada por Herschel e Doug McGriff, pai e filho. Todas as despesas de transporte, hospedagem e logística das duas equipes foram pagas pela Nascar e pelo Automobile Club de l’Ouest.

As duas equipes foram escolhidas pessoalmente por Big Bill. Seus carros eram o que havia de melhor nos ovais da Nascar – o Torino era movido por um V8 Boss 429 com cárter seco e mais de 600 cv, enquanto o Charger era movido por um V8 Hemi 426 também com cerca de 600 cv.

Dois cupês enormes, com motores de mais de sete litros, no meio dos esportivos leves e dos protótipos europeus – é óbvio que a estratégia de chamar a atenção deu certo: o público ficou enlouquecido com os muscle cars e, segundo relatos da época, seguia as equipes e seus membros por todos os cantos. A imprensa francesa apelidou o Charger e o Torino de Les Deux Monstres, ou “Os Dois Monstros” em tradução literal.

Big Bill acreditava que seus muscle cars tinham boas chances de se sair bem nas 24 Horas de Le Mans. Ele não chamou Donlavey por acaso, por exemplo: um de seus pilotos, Hutcherson, esteve ao volante do Ford GT40 que terminou em terceiro lugar nas 24 Horas de Le Mans de 1966, dez anos antes, e foi convencido a interromper sua aposentadoria para correr na França.

Os muscle cars, apesar de seu excelente desempenho bruto, simplesmente não haviam sido feitos para correr por 24 horas em um circuito de rua na Europa, então não aguentaram muito tempo.

O Dodge Charger teve problemas com a diferença entre os combustíveis europeu e americano. O motor sofreu com detonação e, por isso, um dos pistões do Hemi abriu o bico depois de duas voltas, logo depois de atingir 340 km/h na reta Hunaudières/Mulsanne. Ele havia largado na 47ª posição entre 60 carros, depois de se classificar com 4:29,7.

O Ford Torino também não aguentou o enduro francês: na 12ª hora de prova, o câmbio manual de quatro marchas não aguentou mais e desistiu de funcionar. Diante do fiasco, o acordo entre a Nascar e o ACO foi revogado para o ano seguinte.


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