Nos últimos dez anos praticamente não houve discussão sobre segurança no trânsito que não mencionasse a necessidade do controle rigoroso da velocidade dos veículos. Radares foram instalados até mesmo em locais sem histórico de acidentes, geralmente acompanhados de novos limites de velocidade — quem nem sempre foram muito bem justificados. Um exercício simples de lógica elementar nos induz a crer que os radares ajudam a reduzir as mortes, afinal, eles controlam a velocidade e veículos mais lentos têm menos chances de se envolver em acidentes fatais. Mas… na prática, não é assim que funciona a segurança no trânsito.
Em São Paulo, por exemplo, o número de mortes vem diminuído gradualmente desde 2007 e teve uma queda mais expressiva a partir de 2015. A redução foi atribuída aos radares, mas como vimos anteriormente, em algumas vias com limites reduzidos e radares, o número de mortes aumentou ou não teve variação significativa. E em uma relação intrigante, o número de mortes diminuiu apesar do número de infrações por excesso de velocidade atingir níveis jamais observados, tornando-se a infração mais cometida na capital paulista.
E esse fenômeno não foi observado somente na capital paulista. Em 2017 o número de acidentes nas rodovias federais foi 7,6 % menor que em 2016, apesar do número de infrações ter aumentado 4,8%. Sabe a lógica elementar do primeiro parágrafo? Acaba de sofrer um acidente de percurso.
Se nunca tivemos tantos motoristas ultrapassando os limites de velocidade, como o trânsito pode estar mais seguro graças a limites mais baixos e radares? Não há uma resposta. Não há estudos sobre acidentes fatais, não há investigação sobre os acidentes, nem mesmo um banco de dados unificado que possa dizer com precisão quantas pessoas morreram no Brasil em determinado período. As pessoas morrem no trânsito e ninguém sabe por quê.
Mas quer ver essa história ficar ainda mais intrigante? O número de acidentes fatais nas rodovias federais diminuiu em 2017 apesar de mais de 3.000 radares terem passado o ano desativados. E tem mais: em algumas rodovias até mesmo as placas de velocidade foram cobertas por plástico preto — além da falta de fiscalização, também faltava sinalização para orientar o motorista. Qual foi a mágica que deu um nó em nossa lógica?
A resposta pode estar um pouco mais ao leste de São Paulo, em uma cidade chamada Itaquaquecetuba. Ali, como nas rodovias federais, os radares também deixaram de operar. Problemas com a licitação dos radares acabaram deixando a cidade sem nenhum tipo de fiscalização eletrônica de velocidade. Isso aconteceu em 2015 e até hoje a cidade continua sem radares.
Mas nestes três anos a cidade não testemunhou nenhuma carnificina motorizada, tampouco foi transformada em um autódromo público noturno. O que aconteceu foi… a redução dos acidentes fatais. Parece surpreendente, não? Mas quando você considera que a velocidade inadequada (ou “excesso” de velocidade) não é a maior causa de acidentes fatais no trânsito brasileiro fica fácil entender como isso foi possível.
Sem radares, a fiscalização de trânsito assumiu uma outra frente: a fiscalização por agentes da Secretaria Municipal de Transportes e pela Polícia Militar. Sem radares, fiscais humanos foram às ruas e reforçaram as leis de trânsito que não têm como ser fiscalizadas por máquinas. Motoristas ao celular, manobras perigosas de motociclistas, condutores que invadem a faixa de pedestres, que fazem conversões sem sinalizar (o que é perigoso para motociclistas, ciclistas e pedestres), que ultrapassam pela direita ou que estão claramente em velocidade incompatível com as condições da via. Além disso, como dissemos neste post, há o fator de constrangimento: uma bronca bem dada por um policial tem efeito mais educativo que o de uma multa.
A abordagem por atitudes corriqueiras perigosas e não-fiscalizadas pelas máquinas, também acaba tendo um efeito educativo. O motorista se condiciona a dirigir de forma mais segura. Isso sem contar que os condutores passam a adotar a velocidade operacional das vias, que é plenamente seguro. Onde houver a necessidade de redução de velocidade, basta usar elementos para induzir os motoristas a fazer isso naturalmente. Uma lombada, por exemplo.
Por último, como também dissemos por aqui, o excesso de fiscalização eletrônica faz os motoristas respeitarem somente as leis fiscalizadas por máquinas. O condutor fica condicionado a dirigir devagar, mas não se importa em digitar um texto no Whatsapp, ou de adiar a troca de pneus desgastados, ou de tomar uma (ou duas, ou três, ou quatro) latas de cerveja no almoço de domingo, ultrapassar em local proibido. Ou de simplesmente ignorar a faixa de pedestres adiante. O importante é respeitar os limites de velocidade, dizem as campanhas de trânsito.
Sem querer, a cidade de Itaquaquecetuba (e a PRF nas rodovias federais em 2017) mostraram ao Brasil que é possível ter um trânsito mais seguro sem radares, e que o perigo do trânsito vai muito além de velocidades 11% superiores ao limite imposto.