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Viagens e Aventuras

De carro pela Alemanha: almoçando com fantasmas no lendário circuito de AVUS

Amanheceu um dia frio em Berlin. Céu cinza, os termômetros de rua não passavam de nove graus – mas a sensação era pior devido ao vento cortante e garoa inclemente. Todos aqueles dias foram muito intensos e cobravam seu preço. Apesar da boa noite de sono acordei me sentindo cansado. Após chegar na Alexanderplatz, tomei calmamente meu café da manhã enquanto checava as notícias no meu smartphone. Tinha um destino incomum para turistas, mas muito caro a quem gosta de automobilismo. Iria visitar a arquibancada abandonada e a torre de cronometragem do circuito de Avus.

Aqui creio que cabe uma breve explicação: Avus é a sigla para Automobil Verkehrs und Übungs-Straße, em uma tradução tosca livre: Estrada para Treinamento e Tráfego de Automóveis. É um conjunto de viadutos que ligam algumas estradas no subúrbio de Berlin, onde parte desta estrutura foi utilizada para corridas de automóveis e motocicletas. Hoje o que era o circuito faz parte da Bundesautobahn 115.

Seu traçado era basicamente duas retas com dois grampos (norte e sul). No grampo norte ficava a torre de cronometragem e a famosa curva com inclinação de absurdos 43 graus, sem proteções externas – apelidada de “muro da morte”. Em seu início possuía aproximadamente 19,5 km, porém como o grampo sul era basicamente um retorno improvisado, a distância total variava. Antes de ser descomissionado, esta extensão variou entre 8,3 km a 2,6 km.

Insano, não?

Na Alexanderplatz, peguei o trem da linha S3 em direção à Spandau. Desci na estação “Messe Süd”, e de lá vagaria até achar a arquibancada e a torre. A garoa havia piorado, parecia até que Jean Behra não estava afim de me receber lá.

Já ao terminar de subir as escadas para chegar ao nível da rua, enxerguei o que procurava naquela manhã. A arquibancada estava ao fundo do estacionamento do Centro de Convenções de Berlin. A torre também estava ali perto, e já conseguia ver o famoso símbolo da Mercedes-Benz ao fundo. Por um momento, após alcançar a arquibancada, pensei em pular as grades para me sentar ali. Desisti ao ver a quantidade de arame farpado enferrujado e a proximidade que ficaria da A115 para poder fazer isso. Utilizar dos préstimos do seguro-viagem e/ou ser preso pela polizei definitivamente não estavam nos meus programas de viagem.

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Isso, porém, não me impedia de admirar a obra ali na minha frente. Apesar do abandono (a última corrida fora realizada em 1998), a construção estava relativamente bem conservada. Paredes pintadas, dezoito entradas numeradas (e portas devidamente lacradas com solda, testei todas), bilheteria. A aparente boa conservação contrastava com a calçada cheia de folhas secas, as laterais pichadas, com arames farpados enferrujados, cercas em mau estado de conservação e mato já alto, o que era um indicativo do tempo sem manutenção.

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É uma sensação meio estranha quando se está lá, ainda mais voando solo, como eu. Os carros passam indiferentes, as pessoas se acostumam e sequer dão conta da importância daquele local. Provavelmente porque ali não é importante para elas mesmo. Apenas um conjunto de estradas chegando e saindo de Berlin, e aquela arquibancada completamente deslocada da arquitetura local, testemunhando, vazia, o Grand Prix das pessoas. Por uns minutos, fiquei ali, à beira da A115, ao lado daquela construção, assistindo os veículos passando apressadamente nessa corrida maluca. E ali deixei meu pensamento correr junto com os carros, imaginando que eram Auto Unions, Mercedes Benz, Alfas Romeo e Maseratis a passar por ali.

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Depois de um tempo, decidi que era hora de ir para a Torre. Ela estava bem perto de mim, mas seis faixas movimentadas e um resquício de juízo me impediam de pular o guard rail e sair correndo para chegar logo lá. Não estava afim de brincar de Freeway nem de ser preso, muito menos de virar carne moída. Precisava pegar o mesmo S3 e descer uma estação adiante, “Westkreuz”, e caminhar um bocado, mas pelo menos passaria por semáforos que me permitiriam atravessar a rua sem chance de game over.

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Quando fui chegando perto do prédio, avistei uma escultura numa praça. Estavam representados dois motociclistas percorrendo a “parede da morte” na disputa de uma corrida. Muito bonita, mas praticamente invisível para os motoristas, é um indício que algo aconteceu ali. Mas só pessoas curiosas reparariam na escultura e se perguntariam o porquê dela estar ali. Ou algum petrolhead que gosta de história, caso deste que humildemente vos escreve.

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Continuei caminhando até chegar no prédio, pelos fundos. Hoje ali funciona um posto de gasolina e motel com restaurante. Lá, assim como nos EUA – onde o conceito nasceu – motel significa motor hotel, um hotel para motoristas na beira da estrada.

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A torre apresenta o mesmo aspecto meio decadente da arquibancada. Os anúncios dos patrocinadores de outrora foram substituídos por letreiros da Agip (bandeira do posto que funciona ao fundo) e de uma cervejaria. O único resquício do tempo das corridas é o enorme logo da Mercedes-Benz. A infame curva inclinada foi demolida em 1961 e hoje resta como um estacionamento.

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Estava com fome e entrei no restaurante para almoçar. Não havia absolutamente nenhum cliente lá dentro. Apenas eu e duas senhoras estávamos na parte redonda da torre. Ocupei uma mesa de canto e a sensação que tinha é que os carros passavam praticamente abaixo dos meus pés. Uma das senhoras veio me atender, pedi Schweineschnitzel (uma espécie de empanado de lombo de porco) com vegetais refogados na manteiga. Em 15 minutos meu prato chegou. A decoração do local faz alguma menção aos tempos áureos vividos ali.

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Tive a sensação de estar almoçando com um fantasma.

Não sei se o espírito de Jean Behra ainda vaga por aquele local ou se é pela aparência e atual uso do prédio. Me senti meio melancólico ali. O prédio me pareceu um velho já no fim de sua vida que, ao falar e lembrar de sua juventude, estufa o peito, muda a postura e ainda tenta manter um mínimo de altivez. E acho que não só o espírito do senhor Behra vaga por ali, mas o do senhor Stuck, Rosemeyer, Caracciola, Nuvolari e tantos outros malucos que dirigiam carros espantosamente rápidos ainda passem de vez em quando, para relembrar a doideira que era pilotar naquele tempo e relembrar causos da época. Talvez até tenha uma garçonete servindo cerveja para eles, enquanto conversam e riem animadamente na mesa ao lado. Torço para que seja uma jovem bonita e sorridente.

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Três dias depois, estaria desembarcando em casa. Talvez isso e o tempo frio e úmido tenham acentuado tudo que senti ali. No fim, foi uma boa visita e um bom passeio. A viagem dos meus sonhos estava acabando.

No dia seguinte, embarquei para Nuremberg. Cidade histórica importantíssima para se entender o que se passou no período de ascensão e queda do nazismo. Visita obrigatória para quem vai à Alemanha. Lá não teve nada relacionado a carros ou motos, porém o tempo que passei lá foi muito enriquecedor. É essa última parte que contarei no próximo texto. Até lá!

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