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Car Culture

O Porsche 963 RSP – e o dilema do próximo hipercarro da Porsche

Depois de muita antecipação, a Porsche finalmente mostrou ao mundo a versão de rua do seu hipercarro de Le Mans, o 963 RSP. O carro foi revelado da mesma forma que foi antecipado: ao lado do 917K do Conde Rossi. Ele foi o primeiro dos três 917K convertidos para uso fora das pistas, e o mais icônico, uma vez que ele foi encomendado por Gregorio Rossi di Montelera, o Conde Rossi, fundador da Martini Racing, então operadora da equipe da Porsche no Mundial de Carros Esporte, o WSC.

A história dos Porsche 917K de rua

Agora a história se repete: RSP não vem de RennSport Prototype, como alguns sugeriram, e sim de Roger Searle Penske, o fundador da equipe que leva seu nome — e que atualmente opera os LMDh da Porsche no Mundial de Endurance (WEC). A diferença é que não foi Roger Penske quem pediu o carro à Porsche — foi ela quem fez o carro para seu parceiro técnico.

A relação entre Porsche e Penske, aliás, não é de hoje. Nos anos 1970, a Penske correu com o 917 na CanAm — uma cooperação que resultou no lendário Turbopanzer, o 917/30. Mais recentemente, nos anos 2000, a Penske correu a American Le Mans Series (ALMS) como operadora da Porsche na LMP2 com o Spyder RS — o carro que deu origem ao motor do 918 Spyder, que, por sua vez, deu origem ao motor V8 deste 963.

Transformar um protótipo LMDh em um hipercarro de rua não é um exercício de design — é uma guerra contra a homologação, a termodinâmica, a ergonomia e o próprio bom senso. A base é o monocoque de fibra de carbono fornecido pela Multimatic, idêntico ao do 963 de corrida. Não há plataforma adaptada, não há um monobloco de alumínio como no 918 Spyder: o RSP nasceu como carro de competição e foi civilizado depois pelos engenheiros da Penske e da Porsche Motorsport North America.

A suspensão também segue a lógica da pista: braços triangulares sobrepostos, pushrods e amortecedores ajustáveis com especificação de endurance, calibrados para manter o equilíbrio mesmo com as modificações aerodinâmicas necessárias para a rodagem legal. Os freios são fornecidos pela Brembo, com discos de carbono-cerâmica sob medida, pinças monobloco e sistema de regeneração acoplado ao eixo dianteiro, como no 963 de competição. O sistema dianteiro, aliás, é o que faz o carro ter tração integral. Elétrico na frente, híbrido na traseira.

O motor é o mesmo V8 biturbo de 4,6 litros montado a 90 graus, derivado diretamente do bloco MR6 desenvolvido originalmente para o 918 Spyder. No 963 RSP, ele foi levemente recalibrado para uso prolongado em regimes menos extremos — o que, na prática, significa mais linearidade na entrega e menor necessidade de trocas de óleo a cada fim de semana. A lubrificação segue sendo por cárter seco, e o virabrequim é plano, como manda a cartilha dos carros de corrida. A potência combinada deve ultrapassar os 710 cv, com torque na faixa dos 70 kgfm — números não oficiais, mas coerentes com o que se espera de um protótipo vestido para a rua.

O sistema híbrido, fornecido pela Bosch (eletrônica), Williams Advanced Engineering (bateria) e Xtrac (transmissão híbrida), também foi mantido. A unidade motriz elétrica dianteira entrega cerca de 65 a 70 kW (90 a 95 cv), e o sistema de freio regenerativo foi calibrado para ser mais progressivo em uso urbano, sem sacrificar o feedback de pedal — algo que, para a Porsche, sempre foi inegociável. O sistema eletrônico de gerenciamento — o coração invisível de qualquer hipercarro moderno — recebeu um novo mapa, desenhado especificamente para tornar a transição entre combustão e energia elétrica imperceptível, mesmo em situações de tráfego lento.

A transmissão é sequencial de sete marchas com embreagem única e paddle shift. Mas, ao contrário do 963 de competição, o RSP recebeu um sistema de engates mais suave e sincronizado, para preservar as engrenagens e os dentes em uso civil. Ainda assim, trata-se de um conjunto violento — qualquer deslize no modo Sport pode resultar em trancos dignos de GT1.

A aerodinâmica foi modificada sem desrespeitar a origem. O splitter dianteiro foi encurtado, os canards, reposicionados, e o difusor traseiro redesenhado para manter downforce funcional sem gerar aspiração em alta velocidade — o tipo de turbulência que, nas ruas, pode sugar pequenas pedras ou desestabilizar a traseira ao passar por um caminhão.

O assoalho continua plano e selado, e as tomadas de ar foram redesenhadas não para refrigerar mais, mas para as vibrações em marcha lenta — e o ruído de rodagem, uma das exigências para ser usado nas ruas. Os pneus são Michelin Pilot Sport Cup 2R, calçando rodas forjadas de 20 polegadas na frente e 21 atrás.

Onde as coisas mudam drasticamente é no cockpit. Ele foi inspirado pelo 917 do Conde Rossi, e combina couro marrom claro com Alcantara, e ganhou tapetes, forros de porta e revestimento no teto e no assoalho, tornando o cockpit mais confortável para se usar nas ruas. Do carro de corrida ficou apenas o banco, os cintos e o volante. Ele ganhou até um porta-copos, pendurado no painel.

 

O caminho para as ruas

Agora, tudo isso é muito legal mas… ele não é realmente um hipercarro para as ruas como a Porsche está sugerindo ao compará-lo com o 917K do Conde Rossi. Eu mesmo demorei um pouco para perceber, mas comecei a pensar “como foi que eles homologaram um carro desse para as ruas?”

Os faróis continuam baixos como no 963 de corrida. A legislação americana exige uma altura mínima do solo até hoje — nenhum carro pode ter os faróis principais posicionados a menos de 24 polegadas (61 cm) do chão. O 963 portanto, não passa nessa regra. Além disso, em praticamente todo o mundo os airbags são obrigatórios e o 963 RSP, evidentemente, não tem nenhum. Então como isso foi possível? Como eles colocaram uma placa no carro e saíram pelas ruas e estradas da Europa para levá-lo a Le Mans?

Com uma autorização especial.

O 963 RSP não passou por testes de impacto, airbags ou normas de segurança padrão. Ele foi autorizado para uso pontual e controlado em vias públicas com licença especial concedida pelas autoridades francesas, a mesma aplicada a protótipos de fabricantes em testes de desenvolvimento. O carro recebeu o conjunto de faróis e lanternas de acordo com as normas de trânsito locais, recebeu pneus sulcados homologados para as ruas, buzina e suportes de placas — que é o mínimo exigido para se circular com um protótipo na França. Além disso, a Porsche precisou elevar a suspensão e controlar o ruído do motor.

O Automobile Club de l’Ouest, organizador de Le Mans, colaborou como facilitadora desse acordo, garantindo que tais autorizações fossem limitadas a eventos e trajetos ligados diretamente ao circuito. Ou seja: o carro só é “de rua” na promoção desta comemoração dos 50 anos do 917K “Count Rossi”, como parte dos eventos das 24 Horas de Le Mans deste ano. Depois disso, ele precisa pedir novas autorizações para circular nas ruas, novamente em horários e percursos limitados pelas autoridades.

E isso significa que ele não terá uma produção limitada como esperávamos. Ele não será o sucessor do 918 Spyder, nem mesmo do 935 moderno. Ele é um one-off feito única e exclusivamente para Roger Penske — tal como o 917 foi feito para o Conde Rossi.

Na prática, ele está mais próximo dos carros do WRC que do 917K “Count Rossi — que foi homologado pelo estado americano do Alabama em 1975. Com as placas americanas, o Conde Rossi pôde circular pela Europa como pretendia.

O fato de 963 RSP não ser um hipercarro de rua também significa que a Porsche ainda tem um dilema: como será o sucessor do 918 Spyder? Um hipercarro baseado no 963 de Le Mans, mesmo com produção limitadíssima de 10 ou 20 exemplares, seria uma boa saída. Mas isso não vai acontecer — ao menos não da forma que quisemos imaginar ao ver os primeiros teasers do 963 RSP.

 

O dilema do próximo hipercarro da Porsche*

“Cuidado com o que você deseja, pois você pode conseguir” é um ditado popular que sugere a reflexão sobre o que desejamos em nosso dia-a-dia e para nossas vidas. É algo bastante filosófico, apesar de não parecer, pois trata sobre a forma como lidamos com as ilusões, os sonhos e a realidade.

Esse assunto já foi base para diversas obras culturais ao longo da história. “Fausto” de Goethe trata disso: o dr. Fausto é um ancião que deseja tanto a juventude de volta, que acaba assinando um pacto com Mefistófeles, o demônio em si. Em “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, o próprio Dorian Gray, orgulhoso de sua efusiva beleza, deseja mantê-la eternamente e, adivinhe só, faz um pacto com o coisa-ruim para que, em vez dele, quem envelheça é seu retrato, pintado por um amigo.

Ainda há o terrível filme de terror “O Mestre dos Desejos” de 1997, no qual uma moça acidentalmente liberta um gênio do mal, adormecido há milênios, e é convencida por ele a fazer três desejos. O problema é que, por ser malévolo, o gênio se alimenta das más intenções das pessoas e, por isso, realiza os desejos negativamente. A moça, claro, acaba desejando a beleza eterna e é transformada em… uma linda estátua — em um dos finais mais infames da história do cinema.

Estas três obras, escritas em diferentes tempos, não tratam de vaidade, mas dos desejos impulsivos que rejeitam a natureza da realidade e mostram o que acontece quando você tenta subverter o curso natural das coisas em nome de uma suposta virtude.

E o que isso tem a ver com os carros? Bem… lembram das resoluções de ano novo? Eu disse que queria dirigir mais, pegar mais a estrada. E dirigir é igual tomar banho, praticar exercícios ou abrir a geladeira: ajuda a pensar com clareza. Dirigindo, comecei a pensar sobre o tal futuro hipercarro da Porsche, que vai acontecer, mas nem mesmo a Porsche sabe quando ou como.

Pensando sobre isso, percebi a situação na qual a Porsche se encontra. É claro que ela pretende fazer um hipercarro. É bom negócio para reforçar o valor da marca e para ajudar a bancar o desenvolvimento de tecnologias que, em breve, estarão em carros mais mundanos. Quando estes carros mais mundanos chegam perto do desempenho dos hipercarros o que acontece? Você faz um hipercarro que atinge um patamar completamente novo de desempenho e tecnologia.

O problema é que você não pode crescer para sempre. Dizem que até o universo eventualmente irá parar de se expandir. E se até o universo tem seus limites, imagine a Porsche…

Imagine a Porsche, que, depois do 918 Spyder fez cinco carros mais rápidos que ele. Ok, eles não têm a tecnologia que o 918 Spyder tem. Mas podem ter e eventualmente terão. E serão ainda mais rápidos e eficientes e tecnológicos que o 918 Spyder, porque a tecnologia envelhece tão rapidamente quanto um Porsche consegue dar uma volta em Nürburgring.

Então veja só onde a Porsche se meteu: ela já tem cinco supercarros mais rápidos que seu hipercarro. O que significa que seu próximo hipercarro terá de ser muito superior a estes cinco carros — ou ele não se justificará como “halo car”.

Como ela vai fazer isso?

Quanto mais complexos e velozes os carros ficam, mais esforço é necessário para ter pequenos avanços. Sair do 959 para o Carrera GT foi relativamente fácil. Do Carrera GT para o 918 Spyder nem tanto. Do 918 Spyder para o próximo, parece quase impossível. Como lidar com os pneus? Como ir além na aerodinâmica quando se tem algo como o atual 911 GT3 RS? Como manter a famosa confiabilidade dos Porsche de rua enquanto ele faz tudo o que o próximo hipercarro da Porsche precisa fazer?

E aqui volto ao cuidado com os desejos. Primeiro, porque a Porsche quis dominar Nürburgring e fazer dos tempos de volta um argumento de venda e de reforço de sua marca. A Ferrari, por exemplo, não tem esse problema.

A Ferrari já fez cinco carros mais rápidos que a LaFerrari em Fiorano,  mas não está preocupada com isso por vários motivos. O principal deles é a divisão de sua linha em três séries distintas, sendo uma delas uma gama de modelos nascidos a partir do conceito de carros especiais como a 288GTO, a F40 e a F50, a Enzo e a LaFerrari. É a série Icona, que tem as Monza SP1 e SP2 e a Daytona SP3.

Nenhuma delas é a sucessora direta da LaFerrari, mas elas cumprem esse papel em termos de especialidade e exclusividade. E a sucessora da LaFerrari já está a caminho, e só precisa superar estas três Ferrari da série Icona. Na prática, a Ferrari apenas desviou o foco dos hipercarros: em vez do desempenho puro, o próximo hipercarro da marca terá um conjunto de exclusividade, reverência ao passado e desempenho de ponta.

A McLaren fez o mesmo — e fez antes da Ferrari. Como superar o McLaren F1? Fazendo com que seus sucessores não sejam comparáveis a ele. Foi ela a primeira fabricante a dividir sua linha em séries — os hipercarros estão na Ultimate Series. Assim, o P1 não se compara ao F1, o Senna não se compara ao P1, nem ao Speedtail, muito menos ao Elva.

A outra parte do cuidado com os desejos tem a ver com a expectativa do público: por alguma razão o público sempre espera que os carros sejam mais rápidos e mais potentes. Carroll Shelby, meses antes de partir, disse que só fez um Mustang de 1.000 cv porque 500 cv já não lhe renderiam capas de revistas.

Ele, mais do que ninguém, sabia que você não precisa de 1.000 cv para ter um Mustang matador. Ele escreveu a história do Mustang com bem menos que isso. E não estou falando do GT350 dos anos 1960, mas de suas criações mais recentes.

O mesmo aconteceu quando a Renault lançou no Brasil o Sandero RS: milhares de pilotos de teclado torceram o nariz porque “esportivo de 150 cv não é esportivo”, ignorando o fato de o RS ter sido o melhor e mais completo esportivo “mundano” fabricado no Brasil. E digo isso mantendo toda a admiração que tenho pelo Gol GTI.

Esse papo já foi tema do Podcast 37 e de uma pensata publicada aqui no site há alguns anos. Os carros nunca foram tão bons — até mesmo os antigos nunca foram tão bons —, mas chegamos a um ponto no qual um Porsche 911 capaz de subir uma rampa de condomínio precisa fazer um tempo de volta que Jackie Stewart não faria em sua temporada de estréia na Fórmula 1. E isso reflete na indecisão da Porsche sobre seu futuro hipercarro: imagine o fiasco reputacional de se lançar um hipercarro que “toma pau” do GT2 RS na pista, mesmo custando mais caro e tendo mais recursos.

Pare de reclamar! Estamos vivendo o melhor momento para curtir os carros!

Então a consequência de esperar sempre mais dos supercarros, é a mesma de quando se quer sempre mais de qualquer outra coisa: a insensibilidade, a apatia. A incapacidade de se impressionar. Extraordinário é algo que está fora do que é ordinário. Se o extraordinário se torna a nova ordem, ele naturalmente se torna ordinário. Da mesma forma o ensino superior universalizado deixa de ser superior e se torna médio. Fazer festa todo dia tira a graça das festas. E o resultado é uma espiral ascendente que te leva à beira de um abismo. Você irá querer sempre mais, mas… não é possível ter sempre mais. O próprio universo não terá sempre mais. Por que você teria?

Muita gente já acordou desse transe que é a expectativa de ter carros mais potentes e mais velozes, trocando quantidade por qualidade. A mais sólida evidência disso é o boom dos restomods e recriações — boa parte delas feitas pelas próprias fabricantes. É como aquele cara que deu a volta ao mundo para descobrir que não existe lugar melhor que o nosso lar. Você busca insanamente experiências mais intensas, para, no final, descobrir que aquilo que já conhecia era o que te satisfazia suas expectativas.

A própria Porsche já percebeu isso com o GT3 RS da geração passada, inicialmente oferecido somente com câmbio PDK, e, mais tarde, oferecido com câmbio manual. Os clientes não se importavam com os tempos mais rápidos da caixa super-rápida. Eles queriam só o bom e velho câmbio manual, o mesmo que o 911 Carrera RS usava em 1973.

*originalmente publicado em 16/12/2022


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